Pandemia

Coronavírus: o Direito, a Medicina e a tradução de paradigmas

É importante que se intensifique o ambiente de diálogo e as práticas de tradução recíprocas entre as duas ciências

Foto: Divulgação SMSUrbl/PMPA

No início da década de 1960, Thomas Khun publicou um livro que se tornou um marco na filosofia da ciência. Trata-se de “A Estrutura das Revoluções Científicas”, no qual, dentre outras ideias originais, Kuhn propôs que cada campo científico é governado por teorias hegemônicas que vencem um jogo de legitimação.

Com isso, cada “ciência”, por assim dizer, conta com seus princípios, regras gerais, protocolos, linguagem especificamente legítima e autoridades reconhecidas no próprio campo como aquelas que atestam essa legitimidade e, ao fim, reproduzem essas coisas.

A isso ele chamou de “paradigma”, uma palavra cujo sentido específico para Khun diz respeito à competição que se estabelece em cada campo teórico-científico pela adoção de uma determinada massa de conhecimento hegemônico que estrutura e regula o funcionamento do campo.

Ou seja, os princípios que estruturam, regulam e legitimam cada ciência são forjados não somente pela capacidade explicativa e operativa de uma determinada teoria, mas também, e com grande intensidade, pela disputa política dos cientistas por prestígio e notoriedade, o que implica que suas ideias sejam mais conhecidas, reconhecidas e utilizadas como os modelos explicativos e operativos vigentes. Khun oferece vários exemplos dessa dinâmica ao longo de seu livro.

Campos de saber e de prática profissionais tão distintos como o Direito e a Medicina, evidentemente, operam segundo paradigmas bem diferentes.

De maneira bastante sucinta, podemos dizer que o Direito é um saber normativo, prático, hermenêutico, que supõe uma determinada racionalidade argumentativa e que sustenta seu sentido de existir no princípio da justiça.

Já a Medicina é um saber técnico, instrumental, que opera segundo as evidências empíricas, que segue protocolos rigorosos, próprios das ciências exatas e biológicas e que lida com dados e fatos da natureza. Nesse sentido, a Medicina não é contrafática, não é, portanto, normativa no seu resultado final. Dois exemplos podem facilitar o entendimento do argumento:

a) Em um evento em que um homem mata outro, a Medicina reconhece a evidência empírica do fim da vida e o direito qualifica normativamente o fato como algo reprovável e impõe uma sanção ao homicida.

b) O diálogo hipotético a seguir é entre uma jurista e uma médica, no contexto da sugestão de que a hidroxicloroquina possa ser efetiva no tratamento da Covid-19:

Jurista: – Dr.ª Médica, hoje eles estão tratando com o que nos hospitais? Estão usando algo efetivo? Estão usando hidroxicloroquina? Temos de ter informações para lidar com as demandas judiciais.

Médica: – Dr.ª Jurista, a respeito da hidroxicloroquina, está sendo utilizada, mas ainda não há nenhum tratamento específico cujo benefício tenha sido comprovado, segundo os protocolos da ciência médica. Como uso excepcional, num caso individual de ameaça real à vida, em que o paciente esteja em UTI e a critério do médico assistente poderia ser usado, mesmo sem evidências robustas.
O uso jamais poderia ser uma regra de recomendação na Saúde Pública, no estado atual em que a pesquisa se encontra.

Jurista: – Dr.ª Médica, esse é exatamente o fundamento padrão das decisões concessivas. A não ser a parte em que você faz a ressalva sobre não ser uma recomendação como regra na Saúde Pública, ou seja, como parte da política pública.

Passamos, portanto, do exemplo simples para uma situação em que a Medicina e o Direito se encontram de maneira mais dramática: as políticas públicas de saúde, nas quais há limites de recursos materiais e humanos e premissas de uso de medicamentos, em alguma medida, distintas.

Evidentemente estamos pensando na pandemia de coronavírus e no virtual esgotamento de recursos materiais e humanos do sistema de saúde brasileiro. Oxalá não chegue a ocorrer a lotação dos leitos em hospitais e em UTI, mas essa é uma possibilidade relativamente plausível, infelizmente.

A jurisprudência que atualmente prevalece nos tribunais brasileiros é no sentido de que o valor constitucional da vida humana é soberano, vida essa considerada na perspectiva individual. Cada vida, tomado o indivíduo como um sujeito de direitos, é igualmente importante e, novamente segundo a retórica legítima dominante, o direito à saúde, significando todos os recursos possíveis de serem aplicados para curar um doente ou manter-lhe a vida, não pode sofrer limitação por conta de recursos materiais.

Não se desconhece a decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de limitar a concessão de medicamentos de alto custo que não estejam na lista do SUS[1]. O que se está a sustentar é que, na visão dos que julgam os casos individuais no dia a dia, essa retórica de que o direito à vida “não tem preço”, é significativamente efetiva, o que pode levar, em casos de pedido de vaga em UTI, a decisões determinando a internação, independentemente dos critérios médicos.

A Medicina, por sua vez, tende a ver o problema dos recursos limitados como um dado de realidade sobre o qual o médico deverá tomar uma decisão segundo critérios técnicos, observadas as regras éticas aplicáveis a esses casos. Isso pode levar, por exemplo, a escolhas dos médicos na linha de frente a ocupar leitos escassos com sujeitos que tenham mais chances de sobrevivência, por critérios e protocolos aceitos no campo como os legítimos, algo que é, para dizer o mínimo, “estranho” ao raciocínio usual no Direito.

Uma escolha baseada na eventual otimização das chances de sobrevida também levaria a problemas éticos, no mínimo, altamente debatíveis. Diferentes paradigmas, diferentes premissas, diferentes práticas decisórias tradicionalmente adotadas nos dois campos.

Embora seja normal a competição entre paradigmas em um determinado campo do conhecimento, no momento em que a saúde é um problema simultaneamente importante e, sobretudo, urgente, para dois campos nos quais as premissas são tão distintas, a competição pela prevalência de um modelo de tratamento do problema em detrimento do outro pode ser desastrosa e resultar em impasses e disfuncionalidades graves. Uma não compreender a forma como a outra enfoca a questão e vice-versa pode levar a resultados pouco justos e pouco efetivos.

Não há uma receita para lidar com essas diferenças e aqui não se propõe que um ou outro modelo de decisão seja o melhor. O momento atual não permite que disputas institucionais, egoicas ou, na melhor das hipóteses, epistêmicas, tornem opaco o foco absoluto na preservação de vidas dos que, infectados, vierem a manifestar gravidade.

É extremamente importante que não se instaure uma guerra de paradigmas entre os juristas e médicos e que se possa intensificar o ambiente de diálogo, assim como as práticas de tradução recíprocas entre as duas ciências, para que tomemos, todos, as melhores decisões possíveis.

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