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Coronavírus e federalismo: o cálculo político do conflito no combate à pandemia

Só existem saídas para a crise com respeito à Constituição

Foto: Roberto Parizotti.

A forma como compreendemos os nossos problemas é determinante para apresentarmos respostas adequadas para sua solução.

Nas duas últimas semanas temos visto no Brasil um conflito político entre diversas autoridades públicas sobre quais as medidas mais adequadas a serem adotadas para enfrentar a pandemia do coronavírus, COVID-19. Alguns analistas chegaram a afirmar que a pandemia do COVID-19 fez renascer a federação.

Nada mais equivocado.

Em verdade, a pandemia escancarou a necessidade de revisarmos a nossa compreensão sobre federalismo, que ficou parada no século passado. Mudanças na infraestrutura da federação podem ser vistas desde a criação do consórcio do Brasil Central em 2015, e, mais recentemente, o Consórcio do Nordeste. Fala-se muito em federalismo cooperativo, mas pouco em como essa cooperação pode ou deve ocorrer.

Para romper com essa repetição de ideais, apresento reflexões sobre dois pontos: (i) o conflito político e (ii) as possíveis medidas jurídicas e políticas que podem ser tomadas principalmente pelos Estados e Municípios, tanto em caráter cooperativo (agindo com a União), como em caráter competitivo, propondo melhores medidas que as federais ou desafiando-as.

Em primeiro lugar é necessário compreender que a estrutura federativa não funciona como uma arena de disputa estática, cujos limites claros estão estabelecidos na Constituição. Além dos resultados eleitorais, os atores políticos disputam entre si a interpretação da Constituição, o que pode lhes assegurar mais poder ao proteger os valores que lhes são caros, ao ampliar as suas competências, ou dar uma resposta a suas bases eleitorais.

Por isso, tenho ressaltado que a própria estrutura federativa faz parte do jogo e da dinâmica política por mais poder1. Porém, num momento de crise ou de calamidade, esse aspecto se sobressai, pois os atores podem agir de forma coordenada para enfrentar o vírus, ou não. Ao competirem entre si as razões podem ser as mais diversas, sejam elas altruístas, republicanas ou mesquinhas.

Para enfrentar o vírus, a União editou a Lei nº 13.979 de 06 de fevereiro de 2020, que autorizou o uso de diversas ações para combater o coronavírus. Baseada nela os Estados da Federação, o Distrito Federal e diversos Municípios adotaram atitudes no sentido de restringir a circulação de pessoas, para evitar o alastramento do vírus, seguindo as práticas adotadas no mundo todo e recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

No mesmo sentido, do ponto de vista da separação de poderes houve coordenação por parte dos Legislativos, tanto o Congresso Nacional, como as Assembleias Legislativas, os quais tomaram medidas para decretar calamidade pública e suspender alguns dos prazos da Lei de Responsabilidade Fiscal, bem como autorizaram a liberação de recursos para o enfrentamento dos problemas sanitários e sociais causados pela crise.

Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal tem proferido decisões que têm facilitado a atuação dos entes federativos e têm assegurado mais recursos para o combate a pandemia2.

Agiram os governadores e os prefeitos de muitas cidades na mesma linha dos protocolos e das recomendações adotadas pelo Ministério da Saúde.

A princípio, o federalismo cooperativo e a separação dos poderes estavam funcionando bem.

Não obstante, vimos nas últimas semanas o presidente da República contrariar o seu auxiliar, o Ministro da Saúde, afirmando em diversas entrevistas e em pronunciamento de televisão que o coronavírus se trata de uma “gripezinha” e de que as pessoas poderiam voltar a trabalhar, pois o isolamento só protegeria os mais idosos e as pessoas do grupo de risco.

Contrariando as recomendações adotadas pelo mundo todo, o presidente insistiu nessa ideia e criou um conflito com governadores e prefeitos que adotaram medidas mais restritivas, as quais, segundo ele, seriam exageradas. Tais declarações aumentaram a pressão, sobretudo de prefeitos de localidades pequenas que precisam dar respostas à população mais pobre das cidades e às elites locais que pressionam para que os mais pobres retornem ao trabalho.

A criação de tal conflito viola as expectativas de que as lideranças ajam de forma coordenada em situações de crise. Contraria a lógica pressuposta pela interpretação tradicional do federalismo brasileiro – e a história, segundo a qual caberia a União coordenar os esforços nacionais para enfrentar a calamidade que tem proporções idênticas a guerras, seja pelo número de mortos no mundo, seja pela recessão econômica que ela já produziu no mundo todo.

O presidente amplia o conflito político-federativo com o objetivo de ampliar os seus poderes, enfraquecendo seus adversários. Essa aposta do presidente Bolsonaro é populista, pois joga a população contra os governantes locais e estaduais. É também medida arriscada do ponto de vista jurídico, porque corre-se o risco de causar milhares de mortos em nome de um projeto político, o que não é respaldado pela Constituição e, inclusive, pode ser punida como uma afronta a ela.

Todos já sabemos o cálculo político do presidente da República: se as medidas mais restritivas impostas por Estados, Distrito Federal e Municípios derem certo, o presidente teria razão em afirmar que era uma gripezinha e a quarentena apresentou-se como uma medida extremada que quebrou a economia e causou o caos social.

Porém, o fato é que o próprio presidente tem agido para causar o caos social e econômico que ele supostamente critica em entrevistas e pronunciamentos. Isso ficou evidente com o retardamento para editar as medidas provisórias e decretos que vão permitir à população mais pobre alguma renda durante o isolamento social.

Essa demora para agir, contrasta com a ação e a coalizão formada por ministros, integrantes das forças armadas e outras autoridades que têm agido para reforçar as recomendações do Ministro da Saúde, minimizando as declarações presidenciais e respaldando a ação dos governos regionais e locais.

Segundo o cálculo presidencial cria-se a dificuldade para vender a “única” solução: a retomada das atividades. Ao invés de tomar medidas econômicas como diversos países desenvolvidos do mundo fizeram, o presidente joga politicamente com as vidas e com a economia das pessoas e do país, fazendo com que os cidadãos pressionem e se revoltem contra os seus governantes estaduais e municipais. Especialmente os prefeitos que estão de olho na eleição que se avizinha e não querem contrariar grupos que se mobilizam rápida e eficazmente pelo WhatsApp.

A fome não pode esperar, mas, no jogo político, a espera pode ser rentável.

Entretanto, esse cálculo não é permitido pelas normas constitucionais que todos os agentes políticos juram cumprir. E de seus cálculos, todos os agentes políticos devem prestar contas, antes e após a crise.

Há que se dizer de formar clara: não há respaldo constitucional para a falsa dicotomia entre “economia” e a saúde e a vida das pessoas, sobretudo nesta situação de pandemia.

Não é necessário esforço interpretativo para reconhecer isso, inclusive o compromisso da Ordem Econômica e do mercado interno com a vida, bem-estar e a dignidade das pessoas (vide art. 170 e 219 da CRFB/88), bem como a proteção da saúde e da vida de todos, inclusive dos mais idosos (art. 230, CRFB/88). Isso sem levar em conta os objetivos da República Federativa do Brasil, prescritos no artigo 3º da Constituição.

Além disso, conforme já ressaltado por outros analistas, a proteção à saúde é competência comum (art. 23, II) e de legislação concorrente (art. 24, XII) devendo cada ente federado atuar para protegê-la. O que foi, inclusive, reforçado pela decisão do ministro Marco Aurélio na medida cautelar na ADI 6.341, proferida em 24 de março.

Devem os entes agir para produzir uma proteção adequada aos direitos fundamentais à vida e à saúde. É justamente nesta situação que deve ser aplicada a máxima da proporcionalidade na sua acepção de proibição de proteção insuficiente.

As medidas a serem adotadas podem variar de acordo com as necessidades da localidade, mas a ciência e a experiência internacional devem ser consideradas no que diz respeito a três pontos: dar preferência ao isolamento social, a aplicação massiva de testes e a construção de leitos para atender os enfermos. Trata-se de um raro caso de consenso técnico e político, que não pode e nem deve ser menosprezado, sob pena de futura responsabilização política ou civil, pelas ações e omissões cometidas.

Neste momento, há justificativas baseadas em amplas evidências internacionais (caso da Itália, da Espanha etc.) de que o isolamento é a medida menos restritiva. Tais medidas podem e devem ser revistas e justificadas racionalmente – com dados, evidências e resultados – para que elas possuam legitimidade política e jurídica.

No caso de medidas autoritárias ou de constitucionalidade duvidosa que fomentem o risco à saúde da população, caberá aos entes federativos, às associações, às Defensorias e ao Ministério Público, recorrerem ao Judiciário para verem asseguradas a melhor proteção dos direitos fundamentais, de modo a garantir que não haja a proteção deficiente destes direitos.

Por fim, caso a União edite atos que claramente violem as autonomias e competências dos entes federados e os direitos fundamentais dos cidadãos, deverão os chefes dos Executivos buscar o diálogo para construir politicamente uma saída concertada. E, se isso não for possível, é recomendável a desobediência do ato inconstitucional por chefe dos Executivos estaduais, possibilidade reconhecida há anos pela doutrina3. A desobediência ao ato inconstitucional reforça o compromisso de todos com a ordem constitucional.

Assim, só existem saídas para a crise com respeito à Constituição. Pois a ação, a omissão ou a demora para agir implicará na perda de mais vidas agora e, provavelmente, acarretará num péssimo julgamento pela história e pelas urnas. Eis um cálculo arriscado, mas do qual nenhum político poderá escapar.

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1 Afirmei isto – e outras das ideais que seguem neste texto – em minha tese de doutorado, defendida no PPGD da UFPR, “Encruzilhadas do Federalismo: transfederalismo, cooperação, constitucionalismo e democracia”, em processo de edição e publicação. Enquanto isso, ela pode ser gratuitamente acessada pelo Academia.edu ou pelo sistema de bibliotecas da UFPR.

2 Cf. as decisões na ADI nº 6341 e na ADPF nº 568 o STF autorizou o requerimento do Ministério Público Federal, com a anuência de outras autoridades, para destinar R$ 1.601.941.554, 97 (um bilhão, seiscentos e um milhões, novecentos e quarenta e um mil e quinhentos e cinquenta e quatro reais e noventa e sete centavos ao combate da pandemia.

3 BARROSO, Luis Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 69 e ss e BINENBOJM, Gustavo. A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira: Legitimidade democrática e Instrumentos de realização. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 266 e ss.