Coronavírus

Controvérsias sobre ciência e direito na Itália durante a pandemia

As escolhas do governo contra o novo coronavírus

Itália Fotos Públicas
Foto: Filippo Attili/ Fotos Públicas

A Itália foi o primeiro país ocidental a ter que lidar com as agruras do novo coronavírus (Covid-19). Em 30/01/2020, dia em que a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou a epidemia como emergência de saúde pública de interesse internacional, o Governo italiano confirmou dois casos de contágio de turistas chineses em Roma que foram prontamente colocados em isolamento. No dia seguinte, declarou estado de emergência e o presidente do Conselho de Ministros, Giuseppe Conte, e o ministro da Saúde, Roberto Speranza, anunciaram medidas de precaução.

De lá pra cá, a Itália viveu momentos duros e difíceis de serem esquecidos, mas hoje apresenta melhores resultados na proteção do direito à saúde em comparação a países vizinhos. É um dos que mais fazem testes por 1 milhão de pessoas (209,313) e com um dos menores índices de contágio (359,569) e mortes (36,205). Apesar do desafio inicial de mapear o comportamento do Covid-19 e de descobrir as alternativas de tratamento, pode-se dizer que a Itália se saiu melhor do que o Reino Unido (617,688 x 42,875), a França (743,479 x 32,779) e a Espanha (918,223 x 33,124).[1]

Quais foram, então, os principais aliados dos italianos na pandemia? Após oito meses do alerta global, é possível ver que nem todas as escolhas foram acertadas ou unânimes, mas, ao fim e ao cabo, transparecem um forte respeito à ciência e foram baseadas em uma série de instrumentos jurídicos pensados para momentos de crise. É oportuno rever essa experiência italiana, que ainda desperta debates acalorados, para saber o que o mundo aprendeu ou deveria ter aprendido com a Itália.

Excesso e abuso de atos administrativos?

Na Itália, o direito à saúde tem status constitucional. Consta no art. 32 que a República italiana tutela a saúde como direito fundamental do indivíduo e interesse da coletividade[2]. O art. 117, por sua vez, dispõe que a competência para legislar a respeito é concorrente; cabe às Regiões exercer a atividade legiferante e ao Estado italiano determinar os princípios fundamentais correlatos. Há outras duas referências à saúde ao longo da Constituição, mas que não tratam especificamente do tema.

Em casos de pandemia, contudo, por envolver diretamente a proteção das fronteiras nacionais e a profilaxia internacional, enquadram-se no item “q” do mesmo art. 117. Assim, atrai a competência exclusiva do Estado italiano, de modo que o Governo – composto pelo presidente do Conselho (primeiro-ministro) e pelos ministros que, juntos, constituem o Conselho de Ministros (art. 92 da Constituição italiana) – passa a assumir um papel centralizador de gestão da crise sanitária.

A providência mais incisiva de iniciativa do Governo italiano foi o Decreto-legge (DL) nº 6/2020, de 23/02/2020, tendo em vista os focos de contaminação nas Regiões da Lombardia e do Veneto. Após ser expedido pelo presidente da República, Sergio Mattarella, e publicado nos meios oficiais, foi submetido ao crivo das Câmaras alta (Senado da República) e baixa (Câmara dos Deputados) e convertido na Legge nº 13/2020, de 05/03/2020, por força dos arts. 77 e 87 da Constituição italiana.

O Decreto-legge italiano assemelha-se à Medida Provisória (MP) brasileira (art. 62 da CF/88). São prerrogativas do Poder Executivo (na Itália, do Conselho de Ministros; no Brasil, do presidente da República) e devem apreciadas pelo Poder Legislativo para que possam ser convertidas em leis, nos moldes e nos prazos estabelecidos pelas respectivas cartas constitucionais. Do contrário, perdem eficácia. Pressupõem, ainda, necessidade (Itália), relevância (Brasil) e urgência (Brasil e Itália).

Entre as possíveis ações a serem adotadas logo no início da pandemia estavam a proibição de acesso e de remoção das “zonas vermelhas”, bem como (i) suspensão de eventos de qualquer natureza, (ii) fechamento de escolas, universidades e museus, (iii) quarentena para os que tiveram contato próximo com casos de contágio confirmados, (iv) fechamento das atividades comerciais, salvo se destinadas à aquisição de bens de primeira necessidade, (v) suspensão ou limitação do funcionamento dos órgãos públicos, (vi) suspensão das atividades empresariais, salvo das que prestavam serviços essenciais e de utilidade pública.

No mesmo dia 23/02/2020, o primeiro-ministro Giuseppe Conte expediu um Decreto del Presidente del Consiglio dei Ministri (DPCM), introduzindo medidas ainda mais restritivas. Juristas alegaram, no entanto, que o DL nº 6/20 – norma utilizada como base legal – não poderia ter delegado à autoridade administrativa uma autorização “em branco” para interferir nas liberdades fundamentais, por esbarrar em clara reserva de lei. Sob essa perspectiva, o DPCM seria inconstitucional.

Entre os direitos mais afetados no contexto da atual emergência sanitária previstos na Constituição italiana estão as liberdades pessoal (art. 13), de circulação (art. 16), de reunião (art. 17), de associação (art. 18) e de culto (art. 19). Por isso, parte da doutrina defende que não poderiam ter sido objeto dos DPCM, atos administrativos, sem força de lei, e com caráter de fonte normativa secundária.

Alguns interpretaram o excesso de DPCM como uma tentativa do primeiro-ministro de evitar que suas diretrizes passassem pelo crivo do Legislativo, o que demandaria tempo e inevitável desgaste político. Na medida em que foram sendo expedidos, acumularam ainda mais questionamentos por parte dos parlamentares e dos juristas, sobretudo no tocante à seara penal. O art. 3º do DL nº 6/2020, por exemplo, previu que a inobservância das medidas por ele adotadas ou elencadas no DPCM de 23/02/2020 poderia atrair a aplicação do art. 650 do Código Penal italiano.

O referido dispositivo prevê que o descumprimento de ordem de uma autoridade policial, por razões de justiça, segurança, ordem ou higiene pública, poderá ser punido com multa de até € 206 ou prisão de até três meses. Não se trata, portanto, de uma consequência banal. Tanto que, em 25/03/2020, o DL nº 19/2020 descriminalizou parcialmente as condutas por inobservância dessas medidas de prevenção ou de contenção, enquadrando-as – via de regra – como meras violações administrativas, a menos que constituíssem fato mais grave.[3]

Essas alterações foram fruto de muito debate entre representantes de ambos os Poderes e da sociedade civil, como se vê no histórico de ações e encontros promovidos ou com a participação do Governo italiano. Pode-se distinguir, portanto, duas categorias de DPCM: aqueles adotados após o DL nº 6/2020 (Legge nº 13/2020) e os posteriores ao DL nº 19/2020, também acolhido, com modificações, pelo Parlamento e convertido na Legge nº 35/2020, de 22/05/2020.

Do negacionismo ao triunfo da ciência

A despeito das medidas adotadas logo no início, a situação se agravou rapidamente. Devido a escolhas equivocadas, assim assumidas publicamente tempos depois, o norte da Itália viu o número de casos aumentar de forma exponencial. Em 27/02/2020, quando o país ainda registrava poucas mortes e infectados por Covid-19, o Prefeito de Milão, Giuseppe Sala, compartilhou nas redes sociais vídeo de uma campanha publicitária cujo slogan era “Milão não para” (“Milano non si ferma”). O intuito era refutar qualquer tentativa de arrefecer a dinâmica de vida e a economia local.

O governador da Lombardia (Região onde fica Milão), Attilio Fontana, adotou postura semelhante e, em 25/02/2020, afirmou que novo coronavírus era “pouco mais do que uma gripe normal” (“poco più che una normale influenza”). O político, filiado ao partido de extrema direita Lega, ordenou o relaxamento das restrições a bares e restaurantes que haviam sido impostas inicialmente.

Poucos dias mais tarde, precisamente em 09/03/2020, o primeiro-ministro Giuseppe Conte assinou novo DPCM colocando todo o país em lockdown e estendendo diversas medidas a todo território nacional. Proibiu, por exemplo, qualquer forma de reunião de pessoas em locais públicos ou abertos ao público e, a partir de então, lançou-se a campanha “#euficoemcasa” (“#IoRestoaCasa”), como forma de conscientizar a população quanto à proibição de sair de casa até – em princípio – 03/04/2020.

A decisão foi tomada com base nas informações produzidas pelo Comitê Operacional do Departamento de Proteção Civil italiano que auxilia o Governo desde 31/01/2020, quando houve a primeira reunião convocada pelo chefe da pasta, Angelo Borrelli. O Comitato tecnico scientifco, como é conhecido, é composto por diversos especialistas, verdadeiras autoridades em suas respectivas áreas de atuação.

A partir da análise feita por esse comitê, saídas excepcionais eram permitidas apenas por justo motivo, como ir à farmácia, ao mercado ou passear com animais de estimação a poucos metros da residência. Em qualquer hipótese, todos deveriam portar uma autodeclaração, conforme modelo fornecido pelo Governo, indicando a razão do deslocamento e atestando ciência quanto às possíveis consequências em caso de descumprimento das regras anticontágio e de quarentena.

Após algumas prorrogações, as fronteiras internas e externas ficaram fechadas por longos 70 (setenta) dias. As ruas tornaram-se desertas e estranhamente silenciosas. Todos os dias às 18h os italianos iam para os balcões de suas casas cantar juntos músicas tradicionais e expor cartazes com os dizeres “vai ficar tudo bem” (“andrà tutto bene”). O país passou a ter uma identificação nacional – e não apenas regional – jamais vista desde a sua jovem proclamação da República.

O DPCM mais celebrado certamente foi o de 23/04/2020 que anunciou a “fase 2”. A escolha da data de reabertura foi feita de tal forma baseada na ciência que resistiu, por exemplo, ao apelo de uma ala mais conservadora que há muito pressionava pela reabertura ao menos das igrejas. O líder do partido de extrema-direita Lega, Matteo Salvini, afirmou que só a ciência não bastava e fez um apelo em um conhecido canal de televisão para que os locais de culto fossem reabertos às vésperas da Páscoa.

Na coletiva de imprensa, o presidente do Conselho de Ministros Giuseppe Conte disse à população[4]: “graças aos sacrifícios feitos até agora, estamos conseguindo conter a propagação da pandemia (…). Todos vocês mostraram força, coragem, sentido de responsabilidade, de comunidade. Agora começa a fase de convivência com o vírus“. A Itália, que chegou a ser o país com o maior número de contágios e de mortes, hoje ocupa a 17ª posição no ranking mundial relativo aos efeitos do Covid-19.

Para a “fase 2”, o Governo anunciou em 10/04/2020 que ainda contaria com a ajuda de outro comitê. Além do grupo técnico-científico já mobilizado, as ações também seriam pensadas por especialistas dos setores econômicos e sociais. Tempos depois, a revista científica Nature[5] publicou um artigo de pesquisadores vinculados ao Imperial College London, comprovando que – de todas as medidas adotadas no mundo – o efeito do lockdowm foi o mais significativo na redução da curva de contágio.

Considerações finais

Apesar de a Itália ter encontrado dificuldades ao longo do caminho, saiu fortalecida ao final do percurso. Nesse contexto, tem razão Riccardo Cardilli[6], quando diz que é preciso reagir à ideia de que “as leis são silenciosas em tempos de guerra” (“silent enim leges inter arma”); é no plano do ius e do nomos que se joga a verdadeira partida contra a pandemia sem que, para tanto, seja necessário negar os próprios valores fundamentais. Eis uma lição ignorada ou ainda mal aprendida por alguns.

As duas figuras que assumiram o protagonismo no enfrentamento do Covid-19 eram convictas de que suas decisões estavam baseadas no direito e na ciência. Seja como for, o nome do ministro da Saúde não poderia ser mais sugestivo: Roberto Speranza efetivamente trouxe mais esperança aos italianos quanto ao novo mundo que está surgindo. Até que se encontre resposta definitiva ao novo coronavírus, ao que tudo indica uma vacina, o direito e a ciência ainda deverão ser fortes aliados do Governo.

 


Qual a decisão mais problemática no caso André do Rap, de Marco Aurélio ou de Fux? Podcast do JOTA discute o fato de o plenário do STF ter gastado 2 sessões para resolver problema que a própria Corte criou. Ouça:


[1] Disponível em <https://www.worldometers.info/coronavirus/>. Acesso em 12 de outubro de 2020.

[2] O compromisso italiano também se extrai da primeira parte do art. 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (DUDH) e é reforçado no art. 35 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (UE), mais conhecida como Carta de Nice. Considerando que todos têm o direito de acesso à prevenção em matéria de saúde e de se beneficiar de cuidados médicos, o art. 168 do Tratado sobre o Funcionamento da UE (TFUE) reitera que, na definição e na execução de todas as políticas e ações do bloco, será assegurado um elevado nível de proteção da saúde.

[3] As multas, contudo, passaram a ser de € 400 a € 4.000 e, em caso de reiteração da conduta, poderiam chegar a € 8.000. A prisão (de 3 a 18 meses) ficou restrita às hipóteses de violação das regras de quarentena para quem testou positivo ao Covid-19. Esclareceu-se, ademais, que eventual ato deliberado de espalhar o vírus poderia levar à denúncia de crimes graves (homicídio, lesão corporal). Disponível em <http://www.governo.it/it/faq-iorestoacasa>. Acesso em 09 de outubro de 2020.

[4] Disponível em <http://www.governo.it/node/14518>. Acesso em 06 de outubro de 2020.

[5] Disponível em <https://www.nature.com/articles/s41586-020-2405-7>. Acesso em 09 de outubro de 2020.

[6] CARDILLI, Riccardo. Coronavirus e ius. La scienza giuridica del XXI secolo ai tempi della grande pandemia. In BARRA, Rodolfo C.; PLAZA, Martín (directores); CHIBÁN, Rodolfo (coordinador). Emergencia sanitaria global: su impacto en las instituciones jurídicas. 1a ed. compendiada. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Rap, 2020, p. 104-121.