Crises sociais trazem consigo a histeria coletiva e, com ela, a tentação cotidiana e por vezes irresistível de soluções aparentemente milagrosas, simples e retumbantemente erradas. Na pandemia de Covid-19, a bola de charlatanismo da vez é a hidroxicloroquina, ainda hoje defendida pelo governo federal e por seus adeptos, alguns deles gestores públicos, como a mágica de que precisávamos para dissipar o coronavírus.
No universo aparentemente paralelo em que a ciência ainda tem alguma valia, a especulação de que o medicamento poderia ter alguma eficácia no tratamento da Covid19 se dissipou há muito tempo. O método científico, isto é, a ciência fazendo o seu trabalho, com pesquisas especializadas e experiência, cuidou de testá-la com honestidade e rechaçá-la, de modo que, hoje, pode-se falar em um consenso entre cientistas respeitados no sentido de que a hidroxicloroquina não diminui a mortalidade em casos de Covid19 e, ainda, pode provocar efeitos colaterais graves [1].
E, no entanto, a fábula da cloroquina continua a encantar muitos dos gestores públicos brasileiros. Naturalmente que com o uso de recursos públicos, o chamado Kit Covid continuou a ser distribuído pelo Ministério da Saúde, mesmo na gestão do ministro Marcelo Queiroga, como tratamento alegadamente eficaz contra o coronavírus.
O que o nosso sistema jurídico tem a dizer sobre essa problemática? Ele proíbe, obriga ou simplesmente permite a aquisição da hidroxicloroquina, pelos gestores públicos, como medida de enfrentamento da Covid19? E, nesse sentido, poderia ou mesmo deveria o Poder Judiciário, se acionado, exercer o controle sobre esses atos administrativos, anulando-os? O juiz que, por exemplo, suspendesse algum desses atos administrativos estaria incorrendo em hipótese do famigerado ativismo judicial?
Uma primeira e apressada resposta poderia apontar para a impossibilidade de controle judicial desse ato administrativo. Estaríamos, afinal, diante de uma decisão de natureza técnica, científica mesmo, e também política, de maneira que o direito e os juízes teriam pouco ou nada a dizer a respeito dela. Caberia ao corpo técnico do Ministério ou das Secretarias da Saúde definir os tratamentos para o enfrentamento da pandemia, e ao gestor público autorizar o gasto financeiro. A deferência judicial, segundo essas premissas, seria a postura a ser adotada aqui.
A pressuposição de que a questão não é jurídica, no entanto, é falsa. É que, desde o princípio da pandemia, o seu enfrentamento foi regulado pelo sistema jurídico brasileiro, notadamente por meio da Lei nº 13.979/2020. Dentre outros dispositivos, ela estabelece que todas as medidas de enfrentamento da pandemia, dentre as quais se insere a prescrição de tratamentos médicos específicos (art. 3º, “e”), “somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas” (art. 3º, §1º). Na prática, a lei oferece ao gestor e, em última análise, ao controlador, um critério vinculante para suas decisões.
Vislumbro especialmente duas implicações relevantes aqui, ambas vinculadas a compreensões do direito como conceito e como sistema.
A primeira delas é a seguinte: a regulação em questão significa a recepção e a internalização, pelo sistema jurídico, de um conceito próprio da ciência, que, segundo Luhmann, é outro sistema, aderente a uma racionalidade própria [2]. Falo, claro, do conceito de “evidências científicas”. Uma vez recepcionado e internalizado, ele torna-se também jurídico. O conceito de “evidências científicas” passa a fazer parte do direito, como norma jurídica e, assim, como critério de avaliação da decisão quando se tratar de medidas de enfrentamento da Covid19.
O direito, na prática, está trazendo a ciência para dentro de si mesmo. A partir dessa internalização, o intérprete não mais está diante de um problema de lacuna do direito, em que ele se veria diante do dilema entre buscar arrimo em razões extrajurídicas e se fiar à norma propriamente jurídica. Por isso, é equivocado atribuir a pecha de ativista a um juiz que simplesmente se dedique a interpretar o conceito de “evidência científica” e a adequação da prescrição de hidroxicloroquina como política pública de enfrentamento da Covid-19 a esse conceito. Atos que contrariem evidências científicas para enfrentar a pandemia serão simplesmente contrários ao direito e, por isso, passíveis de controle.
A segunda implicação é complementar à primeira. “Evidência científica’ é um conceito de textura aberta, no sentido que Hart atribuía ao termo, e, portanto, sujeito a alguma discricionariedade. Isso significa que, não raras vezes, haverá dificuldades para aferir se um ato administrativo respeita ou contraria as evidências científicas. Afinal, na medida em que, como há muito reitera a filosofia da ciência, as evidências científicas não são senão consensos provisórios sobre a realidade, como aferir se há evidência científica para um tratamento? Com quantos cientistas se forma um consenso passível de ser considerado uma evidência científica? Que instituições devem reconhecê-lo?
Se a inevitável textura aberta do direito fatalmente nos coloca diante desses problemas, ela também não deixa de oferecer respostas. O direito e a linguagem têm limites, é certo, mas eles também impõem limites.
Limites ao que se pode dizer e ao que se pode interpretar. Para explicá-lo, valho-me da analogia com o conhecido conceito de “homem careca”, também de Hart [3]: um homem com a careca lisa seguramente se enquadra no conceito de “homem careca”; por outro lado, um homem com uma farta cabeleira certamente escapa ao conceito. A dúvida aparecerá, naturalmente, no caso do homem que tem pequenos tufos de cabelo. O calvo, por assim dizer. O conceito de “homem careca” se aplica a ele?
O caso de “evidências científicas” pode ser submetido a um jogo hipotético semelhante. Imagine-se duas medidas antagônicas que se candidatam a enfrentar a Covid19: a primeira delas é a aquisição, distribuição e aplicação de uma vacina, testada segundo todos os critérios científicos, sujeita a publicações em revistas especializadas e desenvolvida por empresa respeitada no mercado internacional; a segunda, por sua vez, exige que os pacientes sejam submetidos a um autodenominado “tratamento quântico estelar”, por entender que o vírus é, acima de tudo, um problema de energias negativas. Imagine-se, agora, que um prefeito decide adotar a segunda delas, investindo milhões de reais no referido tratamento “quântico”. Há dúvidas quanto ao cabimento de controle, aqui? Penso que não.
O que quero dizer é que nem todos os casos que se apresentam, e talvez nem a maioria, frequentam a chamada zona cinzenta para a qual é difícil oferecer respostas. Na maioria dos casos, será possível fazer afirmações e negações sobre como um conceito deve ser interpretado e, em última análise, sobre como o direito deve ser aplicado. Não fosse assim, a pretensão de estabilização de expectativas e de segurança jurídica que é característica do direito não seria senão um autoengano.
Por breve período, a hidroxicloroquina se hospedou nessa zona cinzenta. Houve mesmo dúvidas sobre se ela poderia ou não ter alguma funcionalidade no enfrentamento do coronavírus. Sua hospedagem durou questão de meses, tempo que a ciência levou para despacha-la, ao revelar sua completa ineficácia. Em se tratando de Covid19, ela é simplesmente incompatível com o conceito de evidências científicas, de maneira que, hoje, não é exagero equipará-la a tratamentos baseados em puro charlatanismo. Por isso, atos administrativos que a utilizem como tratamento contra o coronavírus serão ilegais e passíveis de controle judicial.
[1] Ver, por todos: “Evidências científicas sobre o uso da cloroquina contra Covid-19”, publicado pelo Instituto de Química da UNICAMP: https://cutt.ly/lbM1JWj ; e “OMS: Hidroxicloroquina não funciona contra Covid-19 e pode causar efeito adverso”: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/03/02/oms-cloroquina-nao-funciona-contra-a-covid-19-e-pode-causar-efeitos-adversos.
[2] Cf. LUHMANN, Niklas. Law as a Social System. Tradução para o inglês de Klaus A. Ziegert. Londres: Oxford University Press, 2004; LUHMANN, Niklas. Social Systems. Tradução para o inglês de John Bednaz Jr. e Dirk Baecker. Stanford: Stanford University Press, 1995.
[3] HART, Herbert. O Conceito de Direito. Tradução de Armínio Ribeiro Mendes. 6 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011.