Pandemia

Contratos em crise: boa-fé e partilha de riscos

Delimitando o papel da boa-fé objetiva – amplamente invocada nessas questões contratuais

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Crédito: Pixabay

Em tempos de pandemia, com o fechamento forçado de estabelecimentos, restrição à circulação de pessoas ou outras medidas de isolamento que acabam afetando os negócios e atividades empresariais, muitas empresas se veem às voltas com discussões contratuais.

Entram em cena, então, o caso fortuito ou força maior, a onerosidade excessiva, assim como a teoria da imprevisão e da alteração/revisão da base do contrato, ambas levando a discussões de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato.

Como resultado, há questões mais simples, como pedidos de parcelamento, mas também vêm à tona assuntos mais difíceis e complexos, como pedidos de suspensão de obrigações contratuais, de revisão do contrato ou mesmo, em casos mais extremos, de rescisão.

O que se propõe não é discutir, aqui, cada um desses institutos ou teorias, seus requisitos ou limites de aplicação no contexto da pandemia. Na verdade, o que se pretende aqui é delimitar o papel da boa-fé objetiva – amplamente invocada nessas questões contratuais.

O princípio da boa-fé gera debates calorosos (não só no Brasil, mas também no exterior, como por exemplo nos países de common law), havendo aqueles que o defendem de forma vigorosa como aqueles que o rechaçam com a mesma ou maior intensidade. E o curioso é que os dois lados lançam mão da mesma abordagem: a finalidade do princípio e o valor (como política do direito) que dele resulta.

Explica-se: para muitos, há o receio de a discricionariedade dar lugar à arbitrariedade, ou seja, de o argumento baseado no princípio da boa-fé ser “manejado” de forma a revestir ou a fundamentar a convicção pessoal daquele que julga o litígio. Dito de outra forma, o argumento é de que o princípio da boa-fé não seria compatível com o pacta sunt servanda e seria, em realidade, prejudicial à previsibilidade jurídica – valor caro ao ambiente empresarial.

O outro lado, por sua vez, se apoia em um argumento semelhante (valor e finalidade), mas com sentido diametralmente oposto: a boa-fé é sim favorável à previsibilidade, na medida em que reforça o pacta sunt servanda.

Percebe-se que o argumento baseado na boa-fé pode ser facilmente equiparado a um não argumento – ou seja, o princípio é ampliado de tal forma para que nele tudo caiba ou qualquer finalidade alcançada (ser a favor ou contra o pacta sunt servanda), que ele acaba se tornando vazio. Neste caso, o tudo equivale, no fim das contas, ao nada.

Desde logo, então, vale deixar claro o meu entendimento: o princípio da boa-fé objetiva é completamente compatível com o pacta sunt servanda e é, se bem utilizado (no limite legítimo da discricionariedade), extremamente favorável à previsibilidade das regras aplicáveis aos contratos comerciais. E a chave está em compreender que o pacta sunt servanda tem a ver muito menos com a literalidade do que está escrito em um contrato e muito mais com a legítima e razoável expectativa das partes. Ou seja, o verdadeiro sentido do pacta sunt servanda é alcançado na medida em que a boa-fé se mostra como caminho para reforçar e proteger o que as partes quiseram contratar e a finalidade da contratação (o espírito do contrato – princípio da materialidade). Isto, como se verá adiante, não significa que a boa-fé pode ser utilizada para alterar a alocação contratual de risco expressamente estabelecida entre as partes.

A boa-fé é um princípio cujo conteúdo depende, necessariamente, de sua concretização. Explica-se: ele comporta tanto um polo subjetivo quanto um polo objetivo. Primeiro, porque a boa-fé sempre será analisada a posteriori por um julgador sob a perspectiva do comportamento das partes. E a avaliação desse comportamento dependerá justamente de quem são as partes, da relação entre elas, da natureza (p. ex. se de curta ou longa duração), tipo ou finalidade do contrato, assim como da indústria ou comércio envolvido e de outras circunstâncias de fato que nunca se repetem.

Já o polo objetivo é relacionado aos usos e normas culturais, ao standard do razoável e outros elementos não específicos ao caso concreto, que são constantes e invariáveis. A boa-fé variará caso a caso, mas terá sempre um traço ou uma ratio comum, aferível em termos abstratos, que servirá como referência para casos futuros.

E é pela sua própria característica (polo subjetivo e objetivo) que a aplicação do princípio da boa-fé no caso concreto estará, necessariamente, sujeita à valoração, pelo julgador, do comportamento das partes em função desses elementos.

Para ilustrar: o dever de minimizar os danos é um desdobramento do princípio da boa-fé. Simplificando o que não pode ser simplificado, apenas para ajudar no exemplo, o dever em questão exige que a parte afetada pelo descumprimento da outra parte tome medidas para limitar ou reduzir seus prejuízos e perdas. Mas até onde vai essa obrigação? É o empresário em tal situação obrigado a tomar todas e quaisquer medidas? Não. Apenas as medidas razoáveis, que não lhe exijam sacrifícios extraordinários ou que lhe tragam outras perdas. Esta é a ratio, a diretriz que pode ser utilizada em outros casos concretos envolvendo a minimização de prejuízos. Mas a avaliação se no caso concreto houve ou não cumprimento dessa obrigação (conforme exige a boa-fé) depende da análise dos elementos subjetivos e que sempre serão diferentes em cada contrato ou disputa, como mencionado acima.

Isso não quer dizer, porém, que não deva haver critérios mais objetivos para utilização do princípio da boa-fé no caso concreto. E para isso, duas coisas são importantes.

Primeiro, entender que quanto maior seu desdobramento em obrigações e deveres específicos, mais previsível será sua utilização. São acessórios e instrumentais à boa-fé (especialmente nos contratos comerciais internacionais), por exemplo, o já citado dever de minimizar os danos, dever de sigilo, dever de cooperação, proibição ao comportamento contraditório (estoppel), dever de diligência, dever de informações, entre outros. Todos eles têm regime e critérios específicos e próprios de aplicação. Em juízo ou arbitragem, seu controle se dá sob as diretrizes do princípio da boa-fé (nada mais é do que a concretização deste).

Segundo, a aplicação da boa-fé em um caso concreto pode ser dividida, do ponto de vista decisório, nas seguintes funções (i) corretiva; (ii) integrativa e (iii) interpretativa. Muito resumidamente, a corretiva tem pouco espaço em contratos empresariais e diz respeito à alteração de parâmetros contratuais em razão especialmente de questões de ordem pública.

As outras funções são de difícil distinção em um caso prático. Pode-se dizer que na função interpretativa, a tarefa é a de determinar a que as partes se obrigaram – o que e como contrataram (se a obrigação existe e como deve ser cumprida). Já a integração ou suplementação do contrato pela boa-fé é cuidar daquilo que as partes expressamente não ajustaram (lacunas/omissões), mas cujo tratamento é necessário para promover a finalidade do contrato. E neste caso, a cautela é mandatória. A integração ou suplementação do contrato não pode alterar a alocação de riscos expressamente acordada entre as partes.

Na Inglaterra, existe um teste para a imposição de uma obrigação ou termo contratual (implication of a term) que pode ser muito útil para o fim acima (e demonstra a importância do desdobramento da boa-fé). Extrapolado e adaptado aos contratos comerciais internacionais (e por que não aos domésticos?), esse teste sugere que uma obrigação ou dever somente poderia ser criado ou imposto se: (i) razoável; (ii) necessário(a) para assegurar o cumprimento da finalidade do contrato; (iii) óbvio(a) a tal ponto de “não ser preciso dizer” (it goes without saying), pelo menos no comércio ou setor específico; (iv) passível de clara expressão e (v) não pode contradizer um termo expresso do contrato (um risco expressamente alocado pelas partes), exceto nos casos de violação da em questão ordem pública.

A importância de entender em qual função a boa-fé está sendo aplicada é justamente a necessidade de respeito ao pacta sunt servanda. O categórico aqui é o respeito à alocação de riscos entre as partes. Uma vez alocados os riscos pelas partes, salvo excepcionalmente quando houver a ofensa à ordem pública, não pode a boa-fé alterar tal partilha de riscos (risco é precificado!) sob o pretexto de interpretação ou integração do contrato.

Em conclusão, o que se pretendeu aqui ressaltar é que a boa-fé tem um papel muito mais limitado nas discussões relacionadas aos impactos da pandemia nos contratos comerciais do que se vê alardeado por aí.  É claro que na crise (como também em qualquer outro momento) é imperativo que o comportamento das partes e a execução das obrigações contratuais se dê conforme a boa-fé, com estrito cumprimento dos deveres ou obrigações acessórios (cooperação, diligência, sigilo, minimização de danos e etc.) que preservam e garantem a finalidade do contrato.

Mas as partes afetadas pelos efeitos da pandemia que pretenderem rever as bases contratuais ou suspender suas obrigações devem fazê-lo segundo os fundamentos e requisitos que sejam aplicáveis à força maior, à onerosidade excessiva, ou outro, sem usar a boa-fé de muleta para alterar a alocação de risco ajustada (e precificada) pelas partes.

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