Pandemia

Plataformas de videoconferência e conjunto-imagem como mecanismo de proteção

Mostra a sua cara!

Crédito: Pixabay

A internet já se revelou como verdadeiro espaço público de convivência. Se ainda havia alguma dúvida quanto a isso por parte dos mais céticos, a pandemia e as regras de isolamento serviram apenas a concretizar e popularizar essa realidade, que já era amplamente discutida em relação a diversos campos do conhecimento.

Para muito além das já “tradicionais” plataformas, como Facebook, Twitter e Instagram – se é que assim já podemos chamá-las –, a quarentena tem apresentado a muitos brasileiros outras formas de interação social na rede. As hipóteses são diversas: serviços de streaming com transmissão simultânea do mesmo conteúdo para usuários em diferentes locais; jogos on-line interativos; aplicativos de videochamadas que comportam dezenas de pessoas numa mesma ligação[i]; festivais de música transmitidos das casas de cada artista – a lista é imensa.

No entanto, muitos desses serviços já estavam a nosso alcance há alguns anos[ii]. O que mudou foi apenas o interesse. Não por acaso, uma das principais empresas que atua em um destes segmentos experimentou, no início do mês de março de 2020, uma valorização de 60% em suas ações, ao passo que a maior parcela do mercado sofria com o fenômeno oposto[iii].

Levando em conta essa premissa, são inúmeros os riscos a que se submetem tais plataformas de interação on-line em decorrência da mudança de paradigmas. Desde a maior procura por parte de hackers – atentos ao imenso fluxo de dados nesses ambientes[iv] – ao surgimento de uma variedade de concorrentes diretos e indiretos, que jamais ousaram ou se interessaram por desbravar o futuro, os pioneiros em cada uma dessas áreas de repentina demanda devem estar bastante atentos ao que ocorre à sua volta.

 

Nesse sentido, a proteção à propriedade intelectual exerce papel muito relevante na consolidação do posicionamento de mercado dessas empresas, sejam elas grandes conglomerados ou ainda pequenas startups. Para todos, a regra é a mesma: busque registrar seus ativos imateriais, mesmo quando não estritamente necessário – como no caso dos direitos autorais – e faça questão de demarcar seu território sempre que possível, por meio do uso consciente e contínuo de tudo aquilo que pode ser associado diretamente a seus produtos e serviços, e aos de mais ninguém.

Vale destacar, no entanto, que o cumprimento dessas recomendações, muitas vezes, não é suficiente por si só. Em paralelo à aquisição ou consolidação dos direitos sobre a chamada propriedade intelectual, o titular deve ser diligente no combate às condutas infratoras verificadas por parte de terceiros concorrentes, sob pena de – inconscientemente – vir a permitir a gradativa erosão de suas próprias faculdades enquanto proprietário de um ativo imaterial.

Não há completa e adequada proteção na ausência de qualquer um desses dois elementos: a formação do direito e a repressão às infrações.

Com relação aos players que se beneficiaram do distanciamento físico, portanto, a atenção deve ser redobrada, diante da existência de um vazio no mercado que será ocupado muito em breve, como tudo aquilo que passa a atrair o interesse geral de forma abrupta, a exemplo do que já ocorreu com aplicativos de transporte individual de passageiros e serviços oferecidos por bancos digitais.

Afinal, trata-se de um padrão já consolidado, do ponto de vista concorrencial, a busca pela aproximação, por parte dos que perseguem seu lugar ao Sol, com aqueles que já foram capazes de despontar em meio aos demais. Tal forma de associação indevida pode ocorrer por meio de imitações descaradas de marca alheia – hipótese de fácil verificação e de mais simples combate –, mas também pode assumir contornos mais sutis, como, por exemplo, pela imitação ou reprodução de um mero conjunto-imagem, que não conta com um registro concedido por qualquer órgão oficial.

Os profissionais de branding certamente têm consciência do valor agregado a uma reunião harmônica de elementos visuais capazes de transmitir, conjuntamente, uma mensagem ao consumidor. Na verdade, a importância do trade dress – termo original cunhado nos Estados Unidos para o que se convencionou chamar de conjunto-imagem no Brasil – é verificada por todos, na medida em que os consumidores recorrentemente reconhecem uma determinada empresa por meio de tais aspectos e efetivamente baseiam suas escolhas de consumo nas premissas e associações formadas, de forma imediata e involuntária, a partir disso[vi].

O fenômeno ocorre a todo o momento em relação aos mais diversos produtos e serviços – refrigerantes, lojas de operadoras telefônicas, biscoitos, serviços de entrega etc. – e decorre da aplicação do conjunto-imagem em diferentes suportes, tais como em embalagens, fachadas, materiais publicitários e nos próprios produtos. Como não deixaria de ser, as interfaces de aplicativos e websites podem contar com o mesmo tipo de proteção[vii], conforme já reconhecem os Tribunais brasileiros[viii], desde que observadas as precauções adiantadas acima, referentes ao estabelecimento do direito e à sua preservação perante terceiros.

De fato, é mais comum que se protejam os conjuntos-imagem de páginas rotineiramente visitadas pelo público. Isso porque o reconhecimento de determinado padrão e a caracterização do requisito da distintividade[x] dependem, de certa forma, da verificação constante daquelas características pelo consumidor ao longo do tempo, razão pela qual companhias aéreas, bancos e portais de notícias, dentre outros, por essa lógica, contariam com uma percepção mais apurada de seu trade dress pelo brasileiro médio, que já está habituado à utilização desses serviços on-line.

No entanto, como ressaltado na introdução deste texto, os mecanismos de interação social vêm se popularizando exponencialmente, de modo que, em pouquíssimo tempo, podem alcançar o mesmo status de cognoscibilidade.

Quanto às plataformas de videoconferência especificamente, deve-se reconhecer que, de fato, algumas possibilidades de inovação e distintividade no que se refere ao conjunto-imagem das respectivas interfaces são limitadas pela finalidade daquele próprio instrumento, qual seja, permitir que os participantes efetivamente se vejam ao longo de um encontro virtual.

No entanto, outros inúmeros detalhes são passíveis de contornos de originalidade que podem vir a caracterizar determinada empresa, diferenciando-a das demais. É possível pensar, por exemplo, na forma de disposição das telas dos usuários, na maneira de identificação da pessoa que está falando em determinado momento, na estilização e na posição dos ícones referentes aos áudios e imagens da plataforma, na ordem dos demais itens de configuração e, ainda, no layout dos campos para troca de mensagens por escrito dentro do próprio aplicativo.

Assim, a partir do momento que se estabelece uma verdadeira identificação entre esse conjunto de detalhes a uma determinada empresa prestadora do serviço em questão, passam a ser aplicáveis diversas disposições da Lei de Propriedade Industrial (LPI – Lei nº 9.279/1996) referentes à concorrência desleal[xi], entre as quais aquela que veda o emprego de qualquer meio fraudulento que tenha como objetivo desviar a clientela de outro player em proveito próprio ou de terceiro (artigo 195, inciso III).

Por meio fraudulento, nesses casos, refere-se à reprodução ou imitação não autorizada de um conjunto-imagem alheio, compreendido pela forma característica e distintiva de disposição dos diversos elementos visuais que compõem aquela interface e que, por si só, transmitem ao usuário não apenas a informação sobre quem oferece aquele serviço, mas principalmente sobre as qualidades envolvidas na prestação daquele serviço – nível da conexão, oferta de funcionalidades, capacidade de usuários, grau de proteção dos dados pessoais e outros.

O ato de concorrência desleal se configura na medida em que, justamente pela exploração indevida desse trade dress, um terceiro se apropria do conjunto de qualidades intimamente ligadas a ele e, por consequência, dos consumidores que vão ao encontro desses valores. Mesmo que essas infrações não sejam capazes, eventualmente, de representar uma captação direta da clientela alheia, ainda produziriam efeitos indiretos nesse sentido, ao contribuir para a diluição – isto é, a banalização ou o desprestígio – da propriedade industrial do concorrente.

Dada sua gravidade e os impactos negativos que causam sobre a atividade dessas empresas, tais condutas infratoras são puníveis nas esferas cível e criminal, de acordo com o artigo 207 da LPI.

As possibilidades de criação de personalização são muitas, e é nelas que reside a força distintiva da interface de uma plataforma e sua possível proteção. Se a partir da captura da tela de uma videoconferência é possível identificar – sem muitas dúvidas – a empresa que viabilizou aquele encontro, então se está diante de um bom ativo imaterial. Como segundo passo, o alerta deve ser devidamente ligado, porque o martelo da concorrência certamente cairá sobre o prego em destaque.

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[i] https://claudia.abril.com.br/noticias/aplicativos-videoconferencia-quarentena-coronavirus/. Acesso em 01.05.2020.

[ii] https://edition.cnn.com/2020/03/27/tech/zoom-app-coronavirus/index.html. Acesso em 01.05.2020.

[iii] https://exame.abril.com.br/tecnologia/startup-cresce-na-crise-do-coronavirus-enquanto-mercados-caem/. Acesso em 01.05.2020.

[iv] https://www.techtudo.com.br/noticias/2020/03/zoom-programa-para-videoconferencia-vira-alvo-de-golpes-na-quarentena.ghtml. Acesso em 01.05.2020.

[vi] OLAVO, Carlos. A proteção do “trade dress” no direito português e no direito comunitário. In: Revista da ABPI, São Paulo, n. 82, p. 3-11, maio/jun. 2006, p. 3.

[vii] PIMENTA, Luiz Edgard Montaury; MENDONÇA, Mariana Furtado de. Trade dress e a tutela dos websites, p. 20. In: Revista da ABPI, São Paulo, n. 100, p. 18-22, maio/jun. 2009.

[viii] TJ-RJ – AI: 00661691820108190000 RIO DE JANEIRO CAPITAL 7 VARA EMPRESARIAL, Relator: HELENA CANDIDA LISBOA GAEDE, Data de Julgamento: 17/12/2010, DÉCIMA OITAVA CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 10/01/2011.

[x] MINADA, Luciana Yumi Hiane. O instituto do trade dress no Brasil – a eficácia da repressão à concorrência desleal enquanto mecanismo de proteção. In: Revista Eletrônica do IBPI, [s.l.], n. 7, p.86-101, jan. 2013, p. 92-93.

[xi] MARA, Cecília. A proteção jurídica do “trade-dress” ou “conjunto-imagem”. In: ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva; MORAES, Rodrigo (Coord.). Propriedade intelectual em perspectiva, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 11.