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Competência comuns e concorrentes: diferentes mecanismos para lidar com conflitos

Competências compartilhadas são relacionadas à multiplicação de esforços e não subtração de ações

Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a competência concorrente dos estados, Distrito Federal, municípios e União para estabelecer providências concretas no combate à Covid-19, doença provocada pelo novo coronavirus.

A decisão foi tomada na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6341, ajuizada pelo PDT (Partido Democrático Trabalhista), que tinha por objetivo declarar a nulidade da Lei Federal nº 13.979/2020 (redação dada pela MP nº 926/2020) em razão da inconstitucionalidade por vício formal e material, da norma que conotava exclusividade à União para dispor sobre a interdição de serviços públicos e atividades essenciais. A lei alvo da discussão ainda exigia articulação prévia com o órgão regulador ou o Poder concedente ou autorizador.

Em março, o ministro relator Marco Aurélio Mello deferiu medida cautelar reconhecendo a competência comum dos entes para tratar do tema. Nas palavras do relator, “as providências não afastam atos a serem praticados por estado, o Distrito Federal e município considerada a competência concorrente na forma do artigo 23, inciso II, da Lei Maior”.

O julgamento pragmático se deu em um contexto em que prevalece o entendimento de que cabe a todos os entes o dever de cuidar da saúde e assistência pública, no que se refere ao “enfrentamento da emergência de saúde pública, de importância internacional, decorrente do coronavírus”.[1] Posteriormente, o Plenário do STF referendou a medida cautelar, em acórdão de relatoria do min. Edson Fachin.

Um dos pontos centrais de debate foi o disposto no § 9º do art. 3º da Lei nº 13.979,[2]  ao qual se propôs interpretação conforme a Constituição. Referido dispositivo confere competência ao presidente da República para dispor, mediante decreto, sobre serviços públicos e atividades essenciais.

A leitura da norma foi realizada à luz do que preceitua o art. 23, inciso II da Constituição Federal, que prevê as competências comuns entre os entes da Federação para tutela da saúde pública; e o inciso I do art. 198 da Constituição, que estabelece a descentralização das ações e serviços de saúde, com direção única em cada esfera de governo.[3]

Tal posicionamento do Supremo foi considerado necessário por parte da mídia pois, em virtude do altíssimo nível de contaminação, entes das diferentes esferas tomaram medidas preventivas – e às vezes colidentes, em virtude da falta de diálogo – para evitar o avanço da doença.

Por todo o Brasil foram editados decretos estaduais e municipais com as mais variadas recomendações de isolamento, fechamento de comércio, restrições no direito de locomoção e até mesmo delimitações de serviços públicos e atividades consideradas essenciais que não se sujeitariam a tais regras, todas sob a justificativa da necessidade premente de atuação.[4]

Para se ater aos fatos jurídicos, é necessário que algumas questões sejam levantadas. Por que foi necessário firmar entendimento no STF, de forma que não restassem dúvidas de que qualquer medida adotada pelo Governo Federal não afastaria a competência comum nem a tomada de providências administrativas por outros entes da federação?

Houve uma inércia (ou abuso de poder) do Governo Federal que fizessem os ministros ressaltarem a importância das atuações locais? Falhou a norma em não estabelecer requisitos claros para cooperação entre os entes federados neste momento tão difícil que a sociedade enfrenta? Houve violação da autonomia dos entes da Federação? Está correta a União em exigir aparente exclusividade para dispor sobre as providências em um tema que está assolando os estados e municípios de forma tão severa?

Tal como noticiado pelo JOTA, conquanto tenham encampado a tese de que entes locais possuem competências paralelas à União para disciplinar as medidas de enfrentamento do coronavírus, os ministros do Supremo Tribunal Federal ressaltaram a importância de que a competência comum dos entes não leve a uma situação de total descoordenação, sob pena de que a interpretação do STF multiplique conflitos federativos.

Neste cenário, considerando a necessidade de as medidas tomadas pelos entes guardem relação de coerência entre si, é imperioso que se tenha conhecimento dos mecanismos próprios de coordenação entre as competências materiais e legislativas compartilhadas entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios.

Para tanto, é essencial que se faça uma distinção, em primeiro lugar, entre as competências materiais comuns (art. 23, CRFB) e as competências legislativas concorrentes (art. 24, CRFB).

As competências administrativas comuns se relacionam às matérias de natureza administrativa de cada ente da Federação, tais como as providências sanitárias tomadas com base no direito à saúde, em atendimento ao art. 23, II da Constituição Federal.

Tratam-se, portanto, de atribuições voltadas aos objetivos a serem seguidos pela Administração Pública federal, estadual e municipal.

Medidas essas que, como reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, podem ser tomadas em linha horizontal, sem necessária relação de precedência de medidas de um ente em relação a outro.

Para tanto, a Constituição prevê a possibilidade de edição de leis complementares para disciplinar a coordenação entre os entes da Federação (art. 23, parágrafo único, CRFB).

As competências legislativas concorrentes, por sua vez, configuram aquilo que a doutrina denominou de um “condomínio legislativo”.[5] Nesses casos, a própria Constituição prevê que as normas gerais serão necessariamente editadas pela União; enquanto que as normas específicas são editadas pelos estados membros, a quem cabe exercer a competência suplementar e suprir lacunas.

A competência dos municípios, por sua vez, é limitada tanto pela Constituição da República, quanto pela Constituição do estado-membro, cabendo a ele editar normas suplementares à legislação estadual e editar regras gerais de interesse local (art. 30, incisos I e II, da Constituição da República).

No caso das competências legislativas concorrentes, a maturidade institucional de interpretação da Constituição apresenta estágio mais avançado. Apesar de abrangente, o art. 30 não pode, por exemplo, permitir que municípios legislem sobre os mais variados assuntos a pretexto de considera-los “de interesse local”.

Os chamados “assuntos de interesse local” (art. 30, I) também podem vir a repercutir, naturalmente, de alguma forma sobre os demais entes federativos. Desta feita, os assuntos locais podem ser definidos como aqueles de interesse de determinada comunidade, tais como os relativos a transportes coletivos municipais, coleta de lixo, horário de funcionamento de farmácias e demais matérias relacionadas ao funcionamento do comércio local.

É por isso que se desenvolve o aporte teórico de que a decisão municipal de legislar sobre um determinado assunto deve ser tomada à luz do princípio da predominância de interesses[6], princípio geral que norteia a repartição de competências legislativas entre os entes federativos no texto constitucional.

Assim, a jurisprudência nos ensina sobre a impossibilidade dos entes locais editarem normas que tenham como objeto matérias de competência legislativa privativa da União (isto é, as normas gerais sobre as matérias previstas no rol do art. 24 da Constituição Federal). Foi nesse sentido que a Corte Suprema declarou inconstitucionais, de forma exemplar, leis que usurparam a competência federal em matérias relativas a trânsito[7]; propriedade e intervenção no domínio econômico[8].

Com o entendimento acima, restou claro que ao município é dado o dever de legislar de forma suplementar à legislação estadual e federal, mas nunca em sentido contrário ao já disposto nestas normas.

De forma categórica, jamais um município poderia restringir alguma atividade econômica, dizendo, por exemplo, quais produtos um estabelecimento poderia comercializar. Imagine se fosse autorizado ao legislador local decretar que supermercados, bares e padarias não pudessem comercializar canetas, já que existem papelarias para esta finalidade?

Neste exemplo, o legislador suprimiria a competência privativa da União de legislar sobre o direito comercial sendo, portanto, uma verdadeira violação à Constituição e aos princípios gerais da ordem econômica como a livre iniciativa e a livre concorrência.

É nesse sentido que se defende a necessidade de um aporte teórico mais robusto para resolver os problemas de conflitos entre as competências materiais, que pode envolver, por exemplo, a transposição da ideia de predominância do interesse também para o campo das atividades administrativas.

Voltando-se à competência material comum em matéria de saúde (art. 23, II), parece clara a ratio constitucional em prol de uma atuação coordenada entre os entes da Federação (art. 23, parágrafo único).

Portanto, qualquer ato voltado à adoção de medidas de isolamento, quarentena, restrição de locomoção por rodovias, portos e aeroportos, bem assim de interdição de atividades e serviços essenciais devem ser partilhadas pelos entes em harmonia.

As competências comuns se relacionam à multiplicação de esforços, e não à subtração de ações entre os entes federativos. Dito de outro modo, é necessário diferenciar a federação do federalismo.[9]

Assim, mesmo que o Congresso Nacional tenha sido omisso quanto à criação da lei complementar destinada a fixar normas de cooperação entre os entes, é salutar que eles encontrem mecanismos próprios para uma atuação coordenada, sejam eles por vínculos conveniais (tais como a celebração de acordos de cooperação que disciplinem competências concretas entre os entes); ou institucionais (tais como a criação de consórcios públicos destinados à aquisição de bens necessários ao combate à pandemia).

Portanto, qualquer que seja a iniciativa dentro desta seara – ou mais precisamente, dentro da matéria saúde – a preservação do Pacto Federativo e da autonomia dos entes da Federação não pode levar a uma situação totalmente assimétrica em diferentes localidades do país.

A União não pode exigir aparente exclusividade para dispor sobre as providências em um tema que está assolando os estados e municípios de forma tão severa. Evidente que não. O tema é e deve ser gerido no caráter cooperativo, já que a Constituição expressamente atribui competência comum aos entes da Federação.

Mas, da mesma forma que a União não pode atuar de forma isolada, Estados e Municípios também precisam guardar um dever de coerência nas medidas por eles adotadas. A abertura à competência local de assuntos relevantes como a saúde pode gerar inúmeros excessos no combate ao novo coronavírus, nos lembrando que o equilíbrio harmonioso previsto pelo constituinte é o único meio de superarmos a pandemia e o já existente conflito nas alçadas de poder.

 


[1] O min. Marco Aurélio ressaltou também que a medida provisória, diante dos requisitos essenciais de urgência e da necessidade de disciplina, foi editada com a finalidade de mitigar os efeitos da chegada da pandemia ao Brasil e que ao editá-la, o Governo Federal atuou a tempo e modo, diante da urgência e da necessidade de uma disciplina de abrangência nacional sobre a matéria.

[2] Art. 3º  Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas. (…) §9º. O presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º.

[3] Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo

[4] O objetivo das autoridades das diferentes esferas era um só: diminuir o percentual de casos da chamada “Síndrome Respiratória Aguda Grave” (“SRAG” ou “SARS” no idioma inglês), etapa grave da doença que sobrecarrega o sistema de saúde público e privado em virtude da necessidade de internações em UTIs para a utilização de respiradores mecânicos. O chamado isolamento populacional horizontal ou total auxiliaria na diminuição do contágio e dos casos graves, de modo que as autoridades tivessem o tempo necessário para se preparar, comprando insumos disputados e concorridos internacionalmente como equipamentos de proteção aos médicos e os mencionados respiradores, por exemplo.

[5] Mendes, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 12. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2017. – (Série IDP)

[6] STF, ADI nº 4228, rel. min. Alexandre de Moraes, Plenário, j. em 01/08/2018, DJe em 13/08/2018).

[7] ADI nº 3.708, rel. min. Dias Toffoli, Pleno, j. em 11.04.2013, DJe de 09.05.2013; ADI nº 3.625, rel. min. Cezar Peluso, Pleno, j. em 04.03.2009, DJe de 15.05.2009; ADI nº 2.796, rel. min. Gilmar Mendes, Pleno, j. em 16.11.2005, DJ de 16.12.2005; ADI nº 3.186, rel. min. Gilmar Mendes, Pleno, j. em 16.11.2005, DJ de 12.05.2006; ADI nº 1.704, rel. min. Carlos Velloso, Pleno, j. em 01.08.2002, DJ de 20.09.2002; ADI nº 2.064, rel. min. Maurício Corrêa, Pleno, j. em 07.06.2001, DJ de 17.08.2001.

[8] ADI nº 1.918, Rel. Min. Maurício Corrêa, Pleno, j. em 23.08.2001, DJ de 01.08.2003.

[9] Em apertada síntese, a federação é a estrutura política. E federalismo é a postura, que admite expansão e contração, numa clara ideia de elementos estáticos e dinâmicos. O federalismo é fácil de comparecer com outros países, já o federalismo não, já que este último merece ser analisado sob premissas econômicas, históricas, políticas e sociais. No caso do Brasil, o federalismo tem aporte conceitual mais central, associando a descentralização em sede constitucional com concessão política pelo Poder Central. No caso dos EUA, exemplo de maior autonomia política, a corte é totalmente descentralizada e associada com centralização porque neste país o surgimento do governo federal impôs perda de poder político para as unidades periféricas (estados e municípios). Fica mais claro quando definimos os mencionados conceitos ao tema deste artigo: dividir competência no texto normativo é estrutura federativa; já definir o que são essas competências, é federalismo. E aqui estamos discutindo o federalismo, que é sabermos qual é o ente que tem autorização para legislar sobre determinado tema.

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