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Como o teto de gastos públicos impede a luta contra o coronavírus

Um olhar sobre os impactos em crianças e adolescentes

STF orçamento secreto
Fachada do STF. Crédito: Marcos Oliveira/Agência Senado

O Supremo Tribunal Federal, na condição de guardião da Constituição, tem sido reiteradamente acionado em razão do caos instalado pelo novo coronavírus no país. No último dia 17, organizações comprometidas com a defesa dos direitos humanos, protocolaram petição para urgente apreciação da medida cautelar nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) 5715, 5658 e 5680, que visam à declaração de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 95 de 2016 – uma escolha do poder público de cortar investimentos com consequências desastrosas para a população. A principal justificativa para a medida judicial é o reconhecimento da emenda como o principal entrave à urgente reação estatal à pandemia de coronavírus.

O orçamento federal da saúde perdeu, desde a implementação da Emenda 95, cerca de 30 bilhões de reais – 20 bilhões apenas no último ano. Como exemplo concreto da falta de investimento; entre 2017 e 2019, houve uma redução de 14,3% na oferta de leitos de internação hospitalar no Sistema Único de Saúde.

A falta de recursos para a saúde vai culminar não só em perda de qualidade de vida, mas, também, em inúmeras mortes que poderiam ser evitadas com a garantia de leitos, equipamentos e profissionais em quantidade adequada. Ou seja, o subfinanciamento das políticas de saúde, que já era grave, tende a tomar proporções catastróficas diante da pandemia de coronavírus, sendo essencial assegurar um sistema de saúde público fortalecido.

O financiamento público da saúde é especialmente relevante no Brasil, um país marcado por desigualdades estruturais de origem racista, agravadas pelo desemprego e pela precarização do trabalho. Os efeitos mais graves da pandemia refletirão tais desigualdades: estudo chinês recente indica que a infecção pelo coronavírus pode ser dez vezes mais mortal em pessoas com doenças crônicas que, por sua vez, afligem mais frequentemente os mais pobres.

A pandemia do novo coronavírus tende a afetar mais gravemente pessoas idosas, mas é preciso reconhecer que, no Brasil, crianças e adolescentes já vivem em situação e vulnerabilidade.

Segundo informações do IBGE, cerca de nove milhões de brasileiros entre zero e 14 anos do Brasil vivem em situação de extrema pobreza; segundo o Sisvan, em 2017, 207 mil crianças menores de cinco anos com desnutrição grave no Brasil. O racismo também impacta a saúde infantil: em 2017, 50,7% das crianças até 5 anos que morreram por causas evitáveis eram pardas e pretas, enquanto 39,9% eram brancas.

A vigência do teto de gastos públicos, somada aos impactos da pandemia de coronavírus, tende a tornar ainda mais urgente e necessário o investimento em políticas e serviços de saúde e proteção social.

Crianças e adolescentes estão perdendo suas aulas e, muitas, por consequência, o acesso a refeições diárias. Ao mesmo tempo, a vulnerabilidade de mães e pais, que deixarão de receber por seus trabalhos ou terão que expor sua saúde para garantir sustento, afetará seus filhos. Adolescentes, privados de liberdade no sistema socioeducativo, podem também ser contaminados em grande escala. Há que se considerar que as medidas de saúde necessárias nesse momento trazem impactos distintos sobre a população e estudos apontam que crianças e adolescentes são, de maneira geral, mais vulneráveis a outras consequências da crise: o estresse do confinamento tende a elevar índices de abuso e violência doméstica; bem como a crise econômica amplia a ocorrência de trabalho infantil, casamentos precoces e tráfico de crianças. Por essa razão, é fundamental que o poder público fortaleça não só o sistema de saúde, mas também as políticas de assistência social.

Muito tem se falado sobre o papel da pandemia de coronavírus em trazer reflexões para a humanidade e, também no campo do Direito Constitucional, é preciso lembrarmo-nos de muitas coisas, dentre as quais destaco: (i) a Constituição não é um conjunto de palavras e expressões que estão ali por acaso – a nação brasileira entendeu que a saúde é um direito social, conforme artigo 6º, e escolheu colocar crianças e adolescentes em primeiro lugar, no artigo 227; (ii) não há espaço para discriminação contra grupos sociais quando falamos de direitos – não se trata de privilégios, mas, sim, de garantias mínimas e inalienáveis; (iii) não há como assegurar direitos sociais sem uma prestação estatal positiva, especialmente o financiamento de políticas e serviços.

Nesse contexto crítico, o Supremo Tribunal Federal tem a oportunidade de reafirmar o seu papel de guardião da Constituição e garantir que o país enfrente a pandemia de coronavírus com estrutura e investimentos adequados em saúde e proteção social, superando o inconstitucional teto de gastos públicos que ceifa, ano a ano, muitas vidas e retroalimenta as desigualdades brasileiras, desde a mais tenra infância.

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