Coronavírus

Como a China reformou sua legislação de mercado de capitais apesar da pandemia?

Dialógica entre inovação administrativa e iniciativa legislativa conferem ao governo chinês alto grau de responsividade às contingências

Muralha da China. Crédito: Pixabay

Março de 2020. A Bolsa de Valores de Xangai encabeça a lista mundial de ofertas públicas iniciais de ações (conhecidos pela sigla IPO, em inglês) pela primeira vez em quase três anos: durante o primeiro trimestre de 2020, 33 empresas capitalizaram 7.31 bilhões de dólares nos dois mercados da bolsa chinesa.

Em Nova York, no mesmo período, a NASDAQ promoveu 17 IPOs totalizando 5.13 bilhões de dólares[1]. Desde o dia 2 de fevereiro, data de abertura dos mercados na China após o Ano Novo Lunar e antes do achatamento da curva de contágio pela COVID 19, as bolsas de Hong Kong, Shenzhen não resistiram às quedas tanto nos índices quanto no número de IPOs.

Também em março passou a vigorar a nova Lei de Valores Mobiliários e Mercado de Capitais da China[2] em substituição à lei de 1998 – e as três emendas e duas revisões pelas quais passou nos últimos vinte anos. O que explica o desempenho estelar da Bolsa de Xangai? Como a China reformou sua legislação de mercado de capitais apesar da pandemia da COVID19?

Julho de 2019. É inaugurada uma das iniciativas-chave do presidente Xi Jinping para o desenvolvimento de Xangai como centro financeiro global e da China como líder mundial em tecnologia, a Science and Technology Innovation Board (STAR)[3].

O novíssimo mercado da bolsa de Xangai – que passa a existir simultaneamente à listagem principal – é a segunda tentativa em uma década da criação de um segmento de mercado de capitais capaz de fazer frente à americana NASDAQ: o paradigma mundial de mercado para empresas inovadoras que, após rápido crescimento proporcionado por operações privadas, precisam rapidamente abrir capital, remunerar os fundos que nelas aportaram e consolidar suas posições de mercado continuando sua trajetória de crescimento.

A STAR se diferencia das regras do mercado principal da Bolsa de Xangai bem como de Shenzhen ao apresentar regras de listagem mais flexíveis em relação à rentabilidade e volatilidade de preços permitindo que as empresas sejam listadas antes de terem lucro. As empresas deficitárias, ainda reprovadas com preconceito pelas bolsas de valores de Xangai e Shenzhen, são ativamente adotadas pelo Star Market. O mesmo acontece com empresas com estruturas de ações de classe dupla e as chamadas red-chips – empresas chinesas incorporadas e listadas fora da China continental.

Além de requisitos contábeis inovadores, o novo mercado opera um sistema de registro inédito na China. Empresas independem da aprovação administrativa para procederem com a listagem. Registros, ao invés de aprovações, dependem de uma análise objetiva e transparente pela administração do mercado – baseada em autorregulação e regulação administrativa produzidas para este fim – que na espera pela aprovação de autoridades em Pequim, no caso a China Securities Regulatory Commission (CSRC).

Na China, o modelo de aprovação favorece a listagem de empresas estatais, cujas ações são o carro-chefe do mercado de capitais chinês. O sistema de aprovação, desta maneira, facilita o acesso de empresas privadas e inovadoras ao mercado de capitais chinês.

A China se desenvolveu, principalmente na última década, ao consolidar as várias fases do ciclo de financiamento da inovação: do capital semente e investimento-anjo às grandes operações de fusões e aquisições. Governo e empresas encontraram soluções eficazes – e relativamente eficientes – para disponibilizar capital estatal e privado, doméstico e internacional, destinado ao financiamento de pesquisa, ciência e inovação em vários níveis. No entanto, por motivos regulatórios – não somente estratégicos, como posicionamento de marca – gigantes de tecnologia como Alibaba, Tencent, Baidu, JD e Xiaomi buscaram os mercados de Nova Iorque, principalmente a Nasdaq ou Hong Kong para fazerem seus IPOs.

A STAR é resultado do diagnóstico do governo chinês de que faltava uma peça no quebra-cabeça do financiamento da ciência e tecnologia no país que lidera a criação de patentes[4] e setores como blockchain, 5G e inteligência artificial. Da demanda por um novo mercado e diagnóstico pelo governo de que uma oportunidade de estava sendo perdida surgiram novas regras jurídicas – criadas pelo agente regulador de mercado, a CSRC e pela própria bolsa de Xangai – que conviveram por quase um ano com a Lei de Valores Mobiliários de 1998 que estabeleceu o modelo de aprovação. A própria bolsa de Xangai continua, em seu mercado principal, adotando esta regra que convive com as novidades trazidas pelo STAR e pela nova lei.

Em dezembro de 2015, o Congresso Nacional do Povo – autoridade política e legislativa máxima da China – autorizou o Conselho de Estado – que encabeça a administração direta e indireta no país – a flexibilizar o sistema de aprovação da Lei de Valores Mobiliários de 1998.

O sistema de registro foi pilotado pela primeira vez na STAR sem que a lei tivesse sido revogada. Após um ano de observações e ajustes, a implementação abrangente do “sistema de registro de emissão de valores mobiliários” é um dos destaques da lei de 2019 que passou a ter efeitos no dia primeiro de março de 2020, no auge da pandemia na China.

Em desenvolvimento e debate desde 2015, pelo menos, a nova lei apresenta em seu Artigo 18º os requisitos para os documentos de solicitação e no Artigo 9º autorização para que escopo específico e as etapas de implementação do sistema de registro sejam formulados pelo Conselho de Estado abrindo a possibilidade de adoção gradual do sistema desenvolvido na STAR.

A promulgação da nova lei chinesa de mercado de capitais é consequência de um processo de experimentação regulatória seguida de observação de aprendizados e implementação flexível, sem choques. A lei não só inova, quanto é resultado da inovação. É um exemplo de que a dialógica entre inovação administrativa e iniciativa legislativa conferem ao governo chinês um alto grau de responsividade às contingências do presente, como a crise da COVID 19, sem que se renuncie ao desenvolvimento econômico – e jurídico – de longo prazo.

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[1]https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-china-ipo/shanghai-tops-worlds-ipo-league-table-despite-coronavirus-idUSKBN21H032

[2]http://english.www.gov.cn/policies/latestreleases/202003/01/content_WS5e5b6168c6d0c201c2cbd4dc.html

[3] https://www.scmp.com/business/companies/article/2171706/shanghai-create-tech-board-start-ups-unicorns-raise-capital

[4] https://www.wipo.int/pressroom/en/articles/2020/article_0005.html