
Após as eleições que consagraram Jair Bolsonaro como presidente da República, um dos temas mais falados tanto na imprensa nacional quanto entre comentaristas políticos são as milícias.
A partir de 2018, devido a investigações levadas à frente pelo Ministério Público do Rio que, com robustez, levam a crer que tanto o presidente quanto seus familiares tinham envolvimento, mesmo que indireto, com grupos criminosos paramilitares cariocas, a expressão passou a ser utilizada como uma das características intrínsecas ao bolsonarismo. Fala-se, por exemplo, de um governo miliciano, de milícias digitais, de milícias de apoiadores e assim por diante.
Entretanto, esse fenômeno criminal não surgiu com o clã Bolsonaro. É algo relativamente antigo, que sempre teve alguma espécie de ligação com políticos de variados espectros ideológicos. Infelizmente, como o termo se tornou uma expressão midiática, ele vem sendo, do meu ponto de vista, utilizado incorretamente para definir outras categorias de dominação social e política – ou mesmo criminais -, como o coronelismo, clientelismo, jaguncismo, seguranças clandestinas, grileiros de terras, grupos de extermínio etc. E quando tudo passa a ser denominado como milícia, com um objetivo meramente de retórica política, se banaliza a expressão e, em consequência, a gravidade do que representa essa atividade criminosa no dia a dia.
Portanto, pretendo utilizar esse espaço, gentilmente cedido pelo Jota, para tratar sobre o tema das milícias tanto pelo olhar de um profissional de segurança pública, que atuou por mais de 20 anos como oficial da Polícia Militar do Rio de Janeiro, como pela perspectiva de uma análise social e política dos diversos grupos e atores envolvidos. Em três artigos buscarei, fugindo de tecnicismos, conceituar as milícias fluminenses atuais, fazer uma síntese de sua história, apontar os aspectos que a diferenciam ou a aproximam de outras práticas de dominação social e criminosa, explicar sua ligação com a política, apresentar as dificuldades de enfrentá-las e os risco que representam ao país.
Isso posto, vamos começar pela sua definição e conceito. As milícias, segundo o léxico, são tropas auxiliares, de segunda linha e reservas das Forças Armadas nacionais. Não por menos, as Polícias Militares, constitucionalmente forças auxiliares do Exército, recebiam tal denominação, sendo seus agentes denominados milicianos. Segundo Bruno Paes Manso, a primeira vez que a palavra foi utilizada como sinônimo de grupos paramilitares cariocas foi em 2005, no jornal O Globo, pela repórter Vera Araújo. A escolha do termo foi casual e se deu tão somente devido ao espaço limitado para escrever o título da matéria: “Milícias de PMs expulsam tráfico”. A partir daí, a imprensa passou a adotar essa expressão, enquanto as Polícias Militares, devido ao contexto depreciativo que se criou, se viram obrigadas a abandoná-la.
Conceitualmente, podemos definir as milícias fluminenses como grupos ou gangues que buscam controlar um território, de forma coercitiva e violenta, com a intenção de lucrar, através da venda de segurança.
Esses grupos se legitimam, por um lado, devido à ineficiência da atuação do Estado na segurança pública e, por outro, pelo temor e o sentimento da população sobre a necessidade de uma imposição de ordem. E, nesse contexto, policiais fora de serviço se apresentam como uma solução factual para satisfazer as necessidades dos moradores, já que são agentes públicos especializados em segurança.
Como alegam que sua atuação no horário de folga terá um custo pessoal, bem como precisarão realizar troca de favores com autoridades policiais, exigem contribuições financeiras mensais dos residentes e comerciantes, como forma de compensação pelos serviços prestados. Portanto, contribuições financeiras mensais dos residentes e comerciantes são exigidas como forma de compensação pelos serviços prestados.
A partir do momento que esses grupos conseguem se estabelecer no local e impor sua própria noção de ordem, seja consensualmente ou através de invasões armadas, passam a diversificar suas atividades, disponibilizando ou controlando o comércio de outros produtos e serviços, como a distribuição de botijões de gás, de Internet, de TV a cabo, empréstimos pessoais, transporte alternativo, construção e transação de imóveis e até mesmo, mais recentemente, de venda de drogas.
Com o tempo, a aproximação com o poder político se faz necessária, visando potencializar seus empreendimentos. Assim, doações de terrenos públicos, autorizações para obras e para estabelecimentos comerciais, além da escolha de autoridades policiais coniventes para comandar delegacias e batalhões locais, se tornam o pagamento de um capital eleitoral e financeiro disponibilizado para a classe política.
Dessa forma, pode-se dizer que a ligação com a política é instrumental, já que o objetivo precípuo dos milicianos é gerar dividendos com as atividades que implantam nas regiões que dominam. E essa é a principal característica que diferencia as milícias de outros fenômenos de dominação social, além de torná-la mais custosa do que o tráfico de drogas para a população onde atuam, como veremos no próximo artigo.