Pandemia

Cloroquina para Covid-19 e a responsabilidade médica

Irracionalidade em torno da cloroquina, sequestrada em uma disputa ideológica descabida, cria dilema no setor

Foto: Foto: Marcio James/Semcom

Boa parte do exercício da medicina é um cálculo de probabilidade: quando o paciente está diante do médico, busca-se, a partir de elementos informativos disponíveis (queixas, alterações no exame físico e exames complementares) a construção de um diagnóstico.

O passo seguinte também tem componente probabilístico: definir o melhor tratamento para aquele paciente. A complexidade dessa decisão pode ser ilustrada no caso de o paciente ter outras doenças pré-existentes, que possam ser impactadas pelo tratamento, ou no caso de paciente que já seja polimedicado, portanto havendo risco de interações medicamentosas deletérias, dificuldade de acesso ao tratamento etc. Adiciona-se complexidade extra quando se trata de uma doença nova, como a Covid-19.

A meta é simples: preservar a vida, sem causar dano, de maneira otimizada. Em casos extremos, quando não há nenhum recurso disponível com segurança e eficácia comprovadas, ao médico é dada a possibilidade – em nome de salvar a vida – de arriscar, isto é, administrar, por exemplo, um medicamento cuja eficácia ainda não está verificada.

De novo, um exercício de probabilidade: se não fizer nada, o paciente pode ter consequências graves ou morrer em breve. Qual o risco adicional de tentar um remédio ainda não totalmente testado? Beira a zero, principalmente se o óbito for inevitável. Tentemos, pois.

Quando o medicamento tem uso registrado na Anvisa para um determinado fim, mas é usado, experimentalmente, para outro, chama-se de uso off label – ou fora de bula. O Conselho Federal de Medicina expressamente reconheceu o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina na Covid-19 nessa modalidade, por meio de um parecer.

Como se vê, cuida-se de velha prática na medicina de conferir ao médico o poder de, no afã de salvar uma vida, usar um medicamento off label à míngua de alternativas mais confiáveis.

Em verdade, nenhum estudo ainda comprovou a eficácia nem da cloroquina, nem da hidroxicloroquina para tratamento da Covid-19. Há apenas relatos de pacientes e de série de casos.

No entanto, isso não prova nada per se, já que cerca 80% dos casos de Covid-19 resolvem-se sem necessidade de tratamento específico em um período médio de 1 a 2 semanas. Dito de outra maneira: não se sabe se foi a cloroquina que venceu o vírus, ou o sistema imunológico do paciente, sem ajuda do referido remédio.

A questão, portanto, que se coloca é: mudou o poder do médico em definir o melhor tratamento, considerando as orientações do Ministério da Saúde para uso de cloroquina/hidroxicloroquina?

Entendemos que não. O papel do Estado é definir os limites da discricionariedade médica, que deve sempre prevalecer. Em outras palavras: o Estado e os órgãos reguladores da profissão podem proibir determinadas intervenções ou permiti-las. Jamais obrigar.

A irracionalidade em torno da cloroquina, sequestrada em uma disputa ideológica descabida, todavia, criou um dilema muito difícil para o profissional de saúde que está na ponta: animado pelo bordão “quem é de direita, toma cloroquina”, muitos pacientes e familiares exigem que médicos prescrevam o medicamento.

A recusa médica em adotar remédio ainda sem eficácia comprovada não poderia gerar nenhuma consequência jurídica para o profissional. Todavia, Tom Jobim já alertava que o Brasil não é para principiantes.

Assim como o Ministério Público Federal no Piauí quer obrigar o Sistema Único de Saúde (SUS) a adotar um “protoloco” médico de uso combinado de cloroquina, hidroxicloroquina e azitromicina, supostamente testado com sucesso em Floriano (PI), não é baixo o temor de que deixando de receitar a droga, e vindo o paciente a óbito, que os familiares busquem responsabilização civil e criminal dos médicos.

Por tudo quanto exposto acima, não comete nenhum crime o médico que adotar o melhor procedimento técnico disponível, que poderá passar pelo uso da cloroquina ou não, conforme a gravidade do quadro clínico do paciente.

Respeitando a autonomia funcional dos membros do Ministério Público, seria muito simbólico e importante que seus órgãos colegiados sinalizassem, por meio de notas técnicas, que a lei está ao lado da discricionariedade médica informada, desde que orientada pelas melhores práticas conhecidas e parametrizadas.

Além de turnos infinitos, precariedade de estrutura e superlotação, os médicos brasileiros não precisam de uma espada de Dâmocles sobre suas cabeças quando o assunto é cloroquina.

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