O direito é “história congelada” e “política congelada”[1]. Surge de conflitos e discussões, incluindo por vezes golpes, revoluções e guerras. Uma vez posto, permite pressupor o apoio de todos, de terceiros anônimos – ou seja, institucionaliza regras, normas, padrões de orientação e avaliação, válidos e imponíveis independentemente das orientações ideológicas, crenças religiosas ou escolhas morais de cada qual.
Os procedimentos – eleitorais, legislativos, administrativos, jurisdicionais – absorvem insatisfações e desilusões, dando margem para os envolvidos tentarem racionalizar suas paixões e argumentar em defesa de suas posições e permitindo com que, uma vez que aceitem participar do jogo (votar e ser votado, por exemplo), aderindo a regras pré-definidas, tenham que aceitar (segundo um consenso generalizado suposto) tanto a vitória quanto a derrota futura. Proclamados os resultados e constituídas as decisões, o discurso jurídico atua para estabilizar o sentido do direito como um conteúdo universalizante e imparcial, fazendo-nos até mesmo esquecer sua gênese mais ou menos conturbada.
O emaranhado de personagens e estruturas, interesses e ideias, atos e palavras que constitui a história é, na média ou longa duração, o laboratório em que conseguimos apreender melhor os elementos e etapas da “linha de montagem” e “desmontagem” do direito. Entretanto, certos eventos carregam uma carga de sentidos tão grande que são capazes de deixar a descoberto as redes de expectativas e símbolos que são a ossatura das instituições.
É o caso das horas de terror e vandalismo nos edifícios que sediam os três Poderes do Estado brasileiro e na praça que representa a “independência” e a “harmonia” entre eles, concretizando e simbolizando os termos da Constituição (art. 2º da Carta de 1988 e art. 36 da Constituição de 1946, vigente à época da construção de Brasília). A um só tempo, vimos descarnada e devorada não apenas a democracia e a república (sediadas nos Palácios do Planalto e do Congresso), além do Estado de Direito (guardado sobretudo pelo Poder Judiciário, com o STF em sua cúpula); vimos a depredação material e simbólica do centro da soberania de um Estado-nação.
Quando o poder perde sua potência simbólica e sua capacidade de estruturar a tomada e a imposição de decisões, recai na violência. Quando a inflação corrói o poder de compra das pessoas, não se planejam mais investimentos nem se realizam mais pagamentos e transações, a moeda perde valor, cai-se na necessidade. Quando o direito é destruído, não há mais expectativas generalizadas resistentes à desilusão, não há normas – experimenta-se a anomia.
As expectativas são generalizadas a partir de signos e símbolos. As obras de arte, os prédios tombados e a infraestrutura física e tecnológica destroçados nos atos de terror do último domingo são tanto a base operacional da organização burocrática e política do Estado brasileiro quanto a representação máxima dos elementos fundamentais do Estado: soberania, povo e território.
A monopolização do exercício da força pelo Estado é sua razão mínima de existência, a incitar um temor generalizado capaz de evitar a “guerra de todos contra todos”; a expressão de Hobbes vinha combinada a uma defesa do caráter absoluto do poder estatal, contra sua implosão por facções que o consumiriam em disputa. Desde as revoluções constitucionais, o governo representativo permitiu institucionalizar o conflito político, neutralizando a guerra de facções ao balizar os limites procedimentais e discursivos em que se dá o dissenso entre governo e oposição. Já a democracia – a extensão do voto a todos, para além de um círculo oligárquico de homens ricos e letrados – é uma conquista mais recente, que se acelerou ao redor do mundo no período entreguerras do século 20 e depois da Segunda Guerra Mundial.
Brasília é, paradoxalmente, a concretização e simbolização, em um lugar transformado por engenho e arte, no centro do território nacional, da utopia democrática no Brasil: “No centro de um planalto vazio/ como se fosse em qualquer lugar / Como castelos nascem dos sonhos / Pra no real tomar seu lugar” – nos versos cantados por Oswaldo Montenegro (“Léo e Bia”). Depois de um império que prolongou a escravidão e a própria dinastia dos tempos coloniais, depois de uma república proclamada a partir de um golpe militar e depois de uma ditadura positivista que fechou o Congresso e propulsionou a modernização institucional, cultural e econômica do país, em 1946 tivemos início ao primeiro período considerável democrático em nossa história – embora ainda excluísse analfabetos, o sufrágio estava aberto a homens e mulheres, e pela primeira vez mais de um décimo da população efetivamente participava de eleições limpas[2].
Presos à exploração colonial durante a renascença europeia, tivemos então, fora de época, nossa própria renascença: com Pelé e Garrincha, Villa-Lobos e Portinari, Tom Jobim e Vinícius de Moraes, Guimarães Rosa e Jorge Amado. Os tempos haveriam de ficar registrados em uma cidade-monumento, que fincava, em asfalto e concreto, amplas janelas e vitrais, a renascença democrática brasileira. Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa e Burle Marx, Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Celso Furtado, Marianne Peretti, Athos Bulcão, Di Cavalcanti e Alfredo Ceschiatti quiseram implantar, no centro do país, a república iluminista que fora negada nas Minas Gerais meses antes da Revolução Francesa. Era preciso tentar novamente, finalmente, corrigir e reconstruir a nação imaginada por José Bonifácio e a república liberal traçada por Rui Barbosa.
Mas Brasília assistiu desde seu início à descrença e à desestabilização da democracia que marcou nosso momento constitucional de 1946 a 1964. Entre 1964 e 1985, transformou-se em símbolo distópico do autoritarismo militar. Desde a redemocratização, entre esperanças e desilusões, reconstruiu-se como a sede da legitimidade política. Os movimentos de deslegitimação abrangente disparados a partir dos protestos de 2013, a manipulação congressual para o impeachment de 2016 e as manobras judiciais da Operação Lava Jato culminaram com a eleição para a Presidência da República de um ex-militar de baixa patente, acusado de tentativas de explodir bombas em quartéis, cultor de torturadores e ditadores, além de oriundo da banda mais fisiológica e corrupta da Câmara dos Deputados.
Com este currículo e por vezes invocando ser “liberal” ou “libertário”, o presidente promoveu a cumulação de todos os vícios da história política nacional, combinando-os às estratégias mais sórdidas do novo autoritarismo cibernético mundial: campanhas orquestradas de desinformação nas plataformas digitais associaram-se a desfiles de tanques; as forças armadas e policiais foram corrompidas pelo fundamentalismo autoritário, corrosivo da impessoalidade burocrática, e a administração pública foi loteada e ocupada por militares incompetentes e grupelhos especializados no discurso de ódio.
O que havia de mais recente e de mais anacrônico no manual do populismo autoritário foi coroado por manifestações fascistas dominicais, recorrentes em Brasília e ao redor do país, com vocalização das demandas por um golpe de Estado (sob o eufemismo de “intervenção militar constitucional”), com violência verbal e simbólica contra o Supremo Tribunal Federal e com a campanha de descrédito de um dos sistemas eleitorais mais íntegros e invulneráveis do planeta[3]. Após todos esses ensaios – além da noite de terror em Brasília em dezembro, no dia da diplomação de seu sucessor eleito –, o presidente saiu do país.
No primeiro domingo do ano, houve a posse pacífica do sucessor, que recebeu a faixa presidencial de uma catadora e, ao som de “O Trenzinho do Caipira”, subiu a rampa do Palácio do Planalto com uma das mais importantes lideranças indígenas, além de outros representantes do povo brasileiro, em sua pluralidade e vulnerabilidade. No domingo seguinte, o rastro de necessidade (33 milhões de famintos) e violência (discurso de ódio, armamento da população e de representantes políticos) deixado pelo bolsonarismo rasgou todos seus véus e passou das palavras à ação, do mundo virtual à materialidade do real. No dia seguinte, a reunião de todas as esferas da Federação e de todos os Poderes da República, descendo a rampa do Palácio do Planalto rumo à visitação aos escombros do Supremo Tribunal Federal, cravou o início de um longo esforço de reinstitucionalização contra a anomia, de manutenção da Constituição de 1988 contra a escalada golpista e de reconstrução do Estado nacional brasileiro.
[1] A primeira expressão é de Carl Joachim Friedrich (Law and History, Vanderbilt Law Review, v. 14, n. 4, 1961, p. 1027; a segunda, de Roberto Mangabeira Unger (O Movimento de Estudos Críticos do Direito: outro tempo, tarefa maior. Tradução de Lucas Fucci Amato. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2017, p. 175 e 192).
[2] NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 45-46
[3] Ver LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo. O Caminho da Autocracia. São Paulo: LAUT, 2022. Disponível em: https://laut.org.br/wp-content/uploads/2022/08/autocratas-completo-v4.pdf