
O fortalecimento do Poder Legislativo começou em meados dos anos 2000 e se acentuou durante o governo Jair Bolsonaro. Um dos principais motores desse processo é o aumento de poder do Congresso sobre as emendas orçamentárias. Os congressistas não precisam mais negociar a liberação do pagamento das emendas individuais e coletivas com o Poder Executivo (a reforma das emendas individuais aconteceu ainda no governo Dilma Rousseff; a das emendas coletivas ocorreu durante a gestão Bolsonaro). Além disso, os parlamentares agora têm acesso indiscriminado às emendas do relator (conhecido na imprensa como orçamento secreto).
Infelizmente, a mudança no balanço de poder não foi acompanhada do fortalecimento da capacidade institucional do Congresso na área orçamentária. Pelo contrário: o orçamento secreto, por exemplo, é pouco transparente e equitativo. Também não se instituiu um processo de análise minucioso das emendas individuais e coletivas. Nesse sentido, as reformas das emendas conduzidas nos Estados Unidos podem servir de modelo para parlamentares e consultores legislativos interessados em repensar o uso dessas ferramentas no Brasil.
Tive acesso a essas reformas em primeira mão. Entre janeiro e julho deste ano, trabalhei como assistente legislativa de um deputado na House of Representatives como parte de um programa da Associação de Ciência Política Norte-Americana (APSA). Após serem associadas à corrupção e à explosão do déficit público, os partidos Democrata e Republicano se abstiveram de usá-las por dez anos. As emendas voltaram à arena legislativa em 2021 por recomendação da Comissão de Modernização do Congresso. Agora, elas se chamam Community Project Funding (e não earmarks, como no passado) e obedecem uma série de regras.
Por exemplo, é proibido financiar projetos ligados a instituições com fins lucrativos. Os congressistas também devem apresentar documentação que demonstre a inexistência de conflito de interesse com as entidades a serem beneficiadas. É obrigatório apresentar evidência de que há apoio nas bases eleitorais para o financiamento dos projetos incluídos nas emendas. Cada emenda não pode ultrapassar o valor correspondente a 1% do orçamento discricionário do ano em questão.
Na House of Representatives, cada parlamentar solicitou até 10 emendas em 2021. Neste ano, a regra mudou e passou a ser 15 emendas por parlamentar. Cada gabinete tem um processo próprio de seleção de emendas. No que trabalhei, publicamos uma espécie de edital público avisando as organizações da nossa base eleitoral que poderiam enviar pedidos de financiamento para os seus projetos. Analisei todos os pedidos junto com a diretora legislativa do gabinete, buscando aqueles com maior impacto socioeconômico. Selecionamos 20, dos quais o deputado para o qual trabalhei selecionou 15 (usando o critério de retorno eleitoral). O balanço entre impacto socioeconômico e retorno eleitoral parece adequado: o intuito deve ser financiar projetos que beneficiem as comunidades mas que também sirvam de elo entre o congressista e o seu eleitorado.
Todos os pedidos de emendas devem ser enviados para a Comissão do Orçamento (Appropriations Committee) da House através de um sistema online (cada casa legislativa tem a sua própria comissão e suas próprias regras). A Comissão, composta por membros dos dois partidos respeitando a regra de proporcionalidade, coordena o recebimento e análise dos pedidos de emendas e decide se eles serão ou não incluídos na peça orçamentária a ser votada no plenário. Ela é organizada em 12 subcomissões – cada uma analisa pedidos de emenda em suas próprias áreas de políticas públicas. A Comissão tem 15 dias para analisar se as emendas se enquadram no propósito de financiar projetos de comunidades locais e deve disponibilizar todos os pedidos em um website. Para garantir controle social, o colegiado deve publicar a lista de emendas aprovadas por seus membros no mesmo dia da votação.
No meu caso, tive contato com duas subcomissões: Labor, Health and Human Services, Education, and Related Agencies (Trabalho, Saúde, Serviços Humanos, Educação e Agências Relacionadas) e Financial Services and General Government (Serviços Financeiros e Governo em Geral). Isso porque 13 projetos do meu deputado se encaixavam na área temática da primeira e os outros dois na área temática da segunda subcomissão. Antes de enviar os pedidos para a Comissão de Orçamento, conversei diversas vezes com a equipe dessas subcomissões para ter certeza de que o pedido poderia ser mesmo feito. Por exemplo, um dos projetos solicitava financiamento para recursos humanos, como contratação de pessoal. Como não estava claro se as regras da agência federal que implementaria o projeto permitiria tal gasto, discuti o caso com a equipe da subcomissão correlata. O contato entre os gabinetes e as equipes da subcomissão é fundamental para garantir que o dinheiro chegue à base eleitoral respeitando as regras orçamentárias e das agências implementadoras.
Uma das últimas coisas que fiz como assistente legislativa foi visitar a base eleitoral do deputado para o qual trabalhei. Ali, conheci um dos hospitais que receberam financiamento via emenda orçamentária enviada por nós. O hospital há muito precisava de reforma para atender a população da região, ouvi de vários funcionários e pacientes. As emendas orçamentárias são o elo entre os parlamentares e os seus eleitores. Os parlamentares ganham a promessa de voto futuro. Os eleitores ganham investimentos necessários em suas regiões. Mas para que a conexão eleitoral se consolide (e se consolide dentro da lei), é preciso dar ao Congresso a capacidade institucional de trabalhar com essas ferramentas. O legado do governo Bolsonaro mostra que tal mudança é cada vez mais urgente no contexto brasileiro.