“A antifragilidade está além da resiliência ou da robustez. O resiliente resiste aos choques e permanece o mesmo; o antifrágil melhora.”
Em “As Pedras de Veneza”, o escritor e polímata inglês John Ruskin (1819-1900) reconta a história cultural da Sereníssima República, fundamentando a sua glória e o seu esplendor não no seu potencial bélico ou mesmo na solidez das suas instituições, mas sim no caráter e nos valores do seu povo, cuja alma aberta ao mar se materializava na sua arquitetura, nas suas artes, em cada conduta individual. A decadência de Veneza, por outro lado, cristalizou-se gradualmente, ao longo de três séculos, a partir do momento em que ela vira as costas para o mar e inicia um processo de aquisição territorial na Lombardia. “Por mil anos eles lutaram por suas vidas; por trezentos eles convidaram a morte: a sua batalha foi recompensada e o seu chamado foi atendido”.[1]
O destino do Brasil muito se assemelha ao fado de Veneza. Somos os herdeiros históricos e espirituais da alma marítima portuguesa, que, antes de qualquer outra nação na Era Moderna, foi a pioneira em dominar as ondas e conduzir a humanidade por mares nunca dantes navegados. A transferência da família real portuguesa para o Rio de Janeiro em 1808, no bojo das Guerras Napoleônicas, invertera totalmente a relação colonial, fazendo com que o Brasil se tornasse a verdadeira metrópole, em um processo de interiorização do centro decisório, brilhantemente analisado no clássico ensaio da professora Maria Odila da Silva Leite Dias.[2]
O processo de independência do Brasil, que neste ano celebra o seu bicentenário, foi um fenômeno histórico único, sem paralelos no mundo contemporâneo. A nossa independência, para além de um processo de emancipação política do território nacional, foi principalmente um processo de reafirmação dos valores históricos da tradição marítima-mercantil portuguesa, estruturada na sua versão pombalina, isto é, segundo a visão de Estado e de cultura do Marquês do Pombal. O Rio de Janeiro, assim, era o símbolo e o centro de uma potência marítima que se reconfigurava transplantada para os trópicos.
O mais importante aqui, cara leitora, é traçar um paralelo de abandono de uma tradição milenar de desenvolvimento de uma cultura marítima. Tal qual Veneza, que virou as costas para o mar em busca de projeção terrestre na Lombardia, o Brasil também abandonou a cultura marítima luso-brasileira, inaugurada com a aliança inglesa na Revolução de Avis de 1385, que consolidara a independência de Portugal do Reino de Castela, lançando as bases para o seu pioneirismo no processo de expansão marítima no século 15, para buscar um aumento da sua projeção terrestre rumo ao oeste do território nacional, a partir dos anos 1960. O ponto de partida dessa profunda mudança de orientação cultural se deu com a transferência da capital do Rio de Janeiro para Brasília, finalizada somente na década de 1980, em processo que já tivemos a oportunidade de analisar nesta coluna.[3]
A mudança de uma capital, cara leitora, simboliza sempre um processo mais amplo e profundo de reconstituição e redirecionamento da própria identidade nacional. Dadas as dimensões de espaço deste artigo, não nos cabe aqui fazer um julgamento de valor nem analisar todos os aspectos, positivos e negativos, desse processo. Um fato, contudo, foi o abandono da nossa tradição e identidade marítimas que, no momento atual, nos passa uma pesada conta. Esse processo de virar as costas para o mar teve dois principais pontos de inflexão.
O primeiro deles foi a extinção, em 1997, da Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, empresa estatal fundada em 1890, que chegara a ser a maior armadora da América Latina e a segunda maior do mundo. A extinção da companhia se deu no âmbito do processo de privatizações dos anos 1990. Pasme, cara leitora, que a empresa teve o seu patrimônio leiloado individualmente, porque não houve interessados na sua privatização.
A maior consequência da extinção do Lloyd Brasileiro foi a de transformar o Brasil no único país 100% cargo do mundo, isto é, no único país do mundo que não conta com navios próprios para o transporte da exportação da sua produção e da importação dos insumos necessários ao seu desenvolvimento nacional. Trata-se, obviamente, de uma fragilidade estratégica do nosso país, cujos riscos para a segurança e o desenvolvimento nacional viemos alertando há mais três anos, como neste artigo[4] para a revista “Portos e Navios”, de 2019.
Riscos esses, cara leitora, que nos levam justamente para o segundo ponto de inflexão nesse processo: a desestruturação das redes logísticas pela pandemia de Covid-19. Segundo levantamento recente do jornal Valor Econômico[5], os fretes marítimos atingiram preços recordes, sem previsão de estabilização. No acumulado do ano, algumas rotas de exportação, como para o Golfo dos EUA, chegam a apresentar aumento de 476%, ao passo que rotas de importação da China chegaram a registrar altas de 397%. Dificuldades de embarque de cargas, falta de contêineres, atrasos etc. são ocorrências diárias em todos os portos brasileiros.
A situação atual descortinou todas as vulnerabilidades causadas pela opção de ser um país totalmente cargo. O Brasil é particularmente afetado pela atual desestruturação do transporte marítimo internacional, em primeiro lugar por não poder reagir rapidamente, já que não dispõe de frota mercante e, em segundo lugar, por não poder negociar preços, já que não dispõe de alternativas. O resultado é um choque inflacionário de custos desproporcional à magnitude do problema, que ao longo de 2022 se fará sentir por toda a cadeia produtiva nacional.
Ao virar as costas para a sua histórica tradição marítima, em processo cujo ápice foi a extinção do Lloyd Brasileiro, o país se colocou voluntariamente em uma situação de fragilidade logística e estratégica. A postura correta, em nível de Estado, é a oposta: a de curar vulnerabilidades e, sempre que possível, estruturar sistemas e posições que sejam, para aplicar um conceito de Nicholas Nassim Taleb, “antifrágeis”, isto é, sistemas e posições que não apenas absorvam choques adversos, mas que se beneficiem de fato deles.
A constituição e a manutenção de uma companhia estatal como era o Lloyd Brasileiro é justamente uma política de Estado “antifrágil”. Repare, cara leitora, que se o Lloyd Brasileiro estivesse em operação, a empresa certamente iria se beneficiar do aumento exponencial dos custos dos fretes, podendo, ao mesmo tempo, oferecer condições mais baratas e garantir espaços nas embarcações para os exportadores e importadores nacionais. A atual “tempestade perfeita” no transporte marítimo internacional seria uma verdadeira bênção para o Lloyd Brasileiro.
As principais críticas à companhia de navegação estatal eram no sentido de que as suas operações eram normalmente deficitárias, isto é, tratavam-se de argumentos cuja lógica intrínseca não se aplica a uma empresa de caráter estratégico, cuja função histórica principal não é a de gerar lucros trimestrais para os seus acionistas, mas sim o de auxiliar no desenvolvimento nacional no longo prazo e o de proteger o país de choques adversos como o que estamos vivendo agora com a pandemia da Covid-19.
O objetivo de uma política de Estado antifrágil não pode ser, nas palavras de Taleb, “apenas sobreviver à incerteza, apenas nos safar. Queremos sobreviver à incerteza e, além disso — como uma certa classe de estoicos romanos agressivos — ter a última palavra. A missão é como domesticar, até mesmo dominar, até mesmo conquistar, o invisível, o opaco e o inexplicável”.[6] A missão é ir além das miudezas cotidianas, da pequenez liliputiana do relatório trimestral, do balanço anual, do calendário eleitoral, para conquistar, fortalecidos, nosso destino histórico como povo e como nação, de maneira perene, no longo prazo.
Como bem apontou Alcides Goularti Filho, “a trajetória do Lloyd Brasileiro foi de déficit financeiro e desenvolvimento econômico. O déficit era apropriado pela economia nacional que estava se fortalecendo, integrando o mercado e formando um sistema nacional de economia”.[7] A extinção do Lloyd Brasileiro, assim, foi a extinção de um instrumento para o desenvolvimento e a segurança nacionais, apenas porque não dava lucros trimestrais, isto é, no curto prazo. Repare, cara leitora, na frivolidade da crítica e do argumento. Na vida das nações, como na das pessoas em geral, os elementos mais importantes não dão lucro. Na verdade, eles nem têm preço.
No ano em que comemoramos o bicentenário de nossa independência, devemos aproveitar para fazer um balanço real da nossa trajetória histórica nos últimos 200 anos, celebrando nossas vitórias e corrigindo nossos erros. O abandono da presença do Estado em setores estratégicos, como o do transporte marítimo internacional, é um erro que pode e deve ser corrigido. Que em 2022 olhemos para as pedras do Rio de Janeiro e nos lembremos de ver o mar, de resgatar a nossa origem e a nossa tradição histórica de navegadores. O esquecimento do passado e de nossas raízes mais profundas nos condenará, como a Veneza, a uma rápida e inexorável degradação. Já é passada a hora de interrompermos essa trajetória decadente.
[1] Ruskin, John. The Stones of Venice. 2ª ed. Nova York: Da Capo, p. 8.
[2] Dias, Maria Odila da Silva Leite. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005.
[3] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/geopolitica-maritima-e-identidade-nacional-09072021
[4] https://www.portosenavios.com.br/artigos/artigos-de-opiniao/a-importancia-estrategica-da-amazonia-azul-para-o-rio-grande-do-sul
[5] https://valor.globo.com/empresas/noticia/2022/01/12/frete-se-aproxima-de-pico-mas-pandemia-gera-incerteza.ghtml
[6] Taleb, N.N. Antifragile: Things That Gain from Disorder. Londres: Penguin, 2012. p. 3.
[7] Goularti Filho, A. Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro: uma trajetória de deficit financeiro e desenvolvimento econômico, p. 18. Disponível em: http://www.abphe.org.br/arquivos/alcides-goularti-filho_1.pdf