Conforme os bloqueios em rodovias pelo Brasil completam um mês desde a conclusão do segundo turno das eleições, o país passa a enfrentar a dura realidade de que as ameaças à democracia e às instituições constituídas se tornarão elemento permanente na vida pública. E, com isso, ganham força os apelos para que estas ações sejam consideradas atos terroristas, o que, no entanto, acarreta riscos significativos, com poucas vantagens práticas. De modo mais amplo, este debate descortina a necessidade de que as instituições enfrentem o golpismo com a firmeza necessária, mas sem assumir os seus métodos ou colocar em risco os próprios ideais que se pretendem defender.
Do ponto de vista estritamente jurídico, estas ações golpistas não preenchem todos os requisitos para serem consideradas atos de terrorismo, de acordo com a legislação nacional. A Lei Antiterrorismo elenca dois requisitos essenciais para tanto: a finalidade de provocar terror social ou generalizado, ameaçando pessoas, o patrimônio ou a paz pública e a motivação da xenofobia ou do preconceito por raça, cor, etnia ou religião, além do enquadramento das condutas entre aquelas previstas em um rol restrito. Ainda que se considerem os bloqueios nas rodovias como casos de apoderamento, com violência e grave ameaça, de meios de transporte ou estações rodoviárias, nos termos do art. 2º, §1º, IV daquela lei, é evidente que sua motivação não se encaixa nos parâmetros legais.
Aliás, não é por falta de enquadramento jurídico – ou por um enquadramento excessivamente leniente – que estas ações permanecem em curso. Isso se deve, principalmente, ao encorajamento implícito ou explícito de agentes políticos nos mais altos escalões do governo federal e de membros do Congresso Nacional e à complacência de autoridades policiais e judiciárias responsáveis por coibi-las.
Existe também uma falsa dicotomia. Considerar estas ações como terroristas não é essencial para combatê-las, nem para punir os responsáveis pela sua condução. Pelo contrário, os instrumentos legais para investigação de ações terroristas são os mesmos daqueles disponíveis para combater organizações criminosas comuns. Adicionalmente, para além dos muitos crimes já previstos no Código Penal em que estas ações podem ser enquadradas, a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, aprovada em 2021, criou outros tipos penais potencialmente aplicáveis, como a abolição violenta do Estado democrático de Direito e o golpe de Estado.
Uma preocupação adicional é o precedente que pode ser instituído. O bloqueio de vias públicas, sejam ruas e avenidas nas cidades, sejam estradas no campo, é tática frequentemente empregada por manifestantes de diferentes estirpes e com variadas motivações. Não há qualquer equivalência entre os admitidos objetivos golpistas e atentatórios ao Estado democrático de Direito de militantes que, atualmente, ocupam e obstruem rodovias importante do país e a defesa de interesses e direitos coletivos que frequentemente motiva esse tipo de ação. Todavia, uma vez confirmado que esse tipo de prática pode ser considerado terrorista, aumentam os riscos de que ações semelhantes, mas com objetivos legítimos, também o sejam.
Há, sem dúvida, uma crítica legítima ao texto da Lei Antiterrorismo, que não reconhece a possibilidade de que ações com motivações políticas ou ideológicas sejam consideradas terroristas. A multiplicação de atentados terroristas motivados por ideologias de extrema direita, em todo o mundo, coloca em dúvida a adequação da legislação brasileira frente às principais ameaças terroristas do momento.
É essencial, no entanto, que se recorde o processo que gerou a Lei Antiterrorismo. A retirada das “motivações políticas e ideológicas”, originalmente previstas no projeto de lei enviado ao Congresso, foi considerada uma grande vitória de organizações da sociedade civil e movimentos sociais que enxergavam nestes termos uma brecha para sua criminalização. Enfrentou, inclusive, a oposição de parlamentares de extrema direita, como o então deputado federal Jair Bolsonaro, que pretendiam enquadrar como terroristas organizações como o Movimento dos Sem Terra (MST). Recentemente, essas mesmas forças políticas voltaram à carga para tentar, sem sucesso, ampliar o alcance dessa lei com este mesmo objetivo.
Reabrir estas discussões, na próxima legislatura do Congresso Nacional, onde ganhou ainda mais força a extrema direita, colocará em risco a atuação de movimentos sociais que já vêm sofrendo grande pressão no atual governo. Difícil imaginar uma reforma da Lei Antiterrorismo que não resulte em um texto mais aberto, sujeitando estes movimentos a abusos e perseguições, justamente por parte das autoridades que, hoje, se recusam a atuar contra os golpistas.
Um dos grandes desafios dos próximos anos será encontrar meios eficazes de enfrentamento ao extremismo e ao golpismo, os quais certamente seguirão se manifestando em oposição ao novo governo, dentro de um marco republicano e sem violações de direitos humanos. Afastar o rótulo de terroristas não implica em reconhecer a legitimidade de suas ações. Pelo contrário, ao colocar o objetivo destas ações – a subversão da democracia e a derrubada do Estado democrático de Direito –, não suas táticas, no centro do debate, ratifica-se a importância da resistência contra as pretensões golpistas e amplia-se o espectro da frente que precisará se manter mobilizada em defesa da democracia.