Análise

As lives e os executivos de companhias abertas

Qual o limite entre a regulação benéfica e maléfica aos regulados e à sociedade como um todo?

CEO
Crédito: unsplash

Nos dias atuais, muito vem se falando sobre o “novo normal”, que pode ser entendido, basicamente, pela introdução rápida (e digamos, forçada) dos recursos tecnológicos no cotidiano das pessoas. Com a pandemia de COVID-19 e pela necessidade de isolamento social por ela imposta, passamos a vivenciar experiências 100% digitais em todos os setores da vida. Antes, o que era estimulado, com a pandemia, passou a ser um ultimato de adequação. Tanto no setor pessoal, quanto no profissional, a palavra de ordem é se acostumar, adequar-se e buscar maneiras de alcançar às pessoas.

No âmbito profissional, deparamo-nos com o home office, que já vinha ganhando espaço no mercado de trabalho durante algum tempo. O diferencial do momento é a necessidade do “vai ou racha”: as Companhias tiveram que se adequar de um dia para o outro a operarem de forma integralmente remota.

A despeito de todos os esforços e desafios para a manutenção de confidencialidade dos assuntos e de proteção contra os chamados cyber attacks, o que, desde já ressaltamos, não ser o objeto do presente estudo, as reuniões passaram a ser transmitidas “ao vivo”, sendo denominadas lives. Foi uma maneira encontrada para a propagação de conhecimento e mesmo de atingimento do público diante de imposição de distanciamento. Mas qual o impacto desse “novo normal” nas operações econômicas em geral?

Pensando nesta nova realidade, a Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) editou, em 26 de agosto de 2020, o Ofício Circular n° 7/2020-CVM/SEP[1] (“Ofício”), com o escopo de tratar sobre a participação de executivos de Companhias Abertas nas lives. Como as Companhias Abertas buscam recursos na poupança popular, sobre elas incidem maiores obrigações legais e regulatórias, visando, sempre, à manutenção da higidez do mercado, por meio de divulgação de informações claras, precisas e verídicas, além da publicidade de fatos considerados como relevantes. As recomendações constantes do Ofício não fogem a este objetivo, além de tentar evitar a tão combatida assimetria de informações.

O órgão justifica a edição do referido Ofício no recente crescimento da participação de executivos em lives. Neste sentido, a CVM delimita que quando existir algum representante de Companhia Aberta atendendo a evento, organizado por terceiros, e que, consequentemente, não vem listado no Calendário de Eventos Societários da entidade, deve ser emitido comunicado ao mercado com o detalhamento de algumas informações consideradas essenciais. Sobre esta afirmação, são devidas algumas reflexões, dentre elas a utilização das denominações “representantes” e “executivos” da Companhia.  Quem estaria englobado?

Nas sociedades anônimas, a própria lei regente, qual seja, a Lei n° 6.404/1976, especifica como administradores, em regra, os membros do Conselho de Administração e da Diretoria, sendo estes, indubitavelmente executivos da Companhia. Resta a dúvida quanto aos demais colaboradores que ocupam cargos gerenciais, e que não foram eleitos para cargos estatutários, como gerentes, superintendentes e diretores não estatutários. Estes últimos exercem funções essencialmente executivas e manuseiam informações sensíveis relacionadas aos negócios da Companhia, participando ativamente da gestão empresarial. Assim, parece razoável a interpretação de que as orientações previstas no Ofício abarcam inclusive membros não estatutários da administração lato sensu.

No decorrer do Ofício foi também utilizada a expressão “representante”, com espectro, portanto, muito mais alargado, já que incluiria, além dos membros do Conselho Fiscal e comitês de assessoramento, os quais, apesar de não possuírem funções propriamente administrativas, podem participar de eventos na condição de ocupantes dos referidos cargos, qualquer procurador da Companhia. O que nos resta refletir é se o objetivo da autarquia foi, de fato, tentar proteger ao máximo o mercado da assimetria de informações, incluindo qualquer um que tivesse a si outorgados poderes de representação, ainda que não englobados na alta administração societária, ou a utilização da expressão foi equivocada.

No comunicado a ser divulgado, são consideradas informações essenciais a de data, hora, site por meio do qual será transmitido o evento, além dos temas a serem tratados e até das perguntas que o executivo enfrentará durante o encontro. Novamente, fica clara a intenção do órgão regulador em conferir a maior transparência possível de todos os assuntos que serão tratados durante a transmissão, em conjunto com a maior publicidade quanto à realização do evento, permitindo que mais acionistas e/ou interessados atendam-no.

A obrigação de divulgação e de transparência vai além. O próprio material a ser utilizado durante o evento deverá ser previamente disponibilizado ao mercado por meio do Sistema Empresas.Net, que é o sistema utilizado pelas Companhias Abertas para o envio de diversos documentos obrigatórios em seu nicho, como informações de ITRs e Formulários de Referência. Caso, durante o transcorrer do evento, sejam formuladas perguntas outras que não as anteriormente listadas ou, por meio do improviso, sejam versados outros assuntos, surgirá a necessidade de atualização do material base e de sua nova divulgação por meio da mesma plataforma.

Se o participante não tiver acesso às informações supramencionadas ou o material não puder ser elaborado até o início do evento, a recomendação trazida pela CVM é que a transmissão seja realizada em horário fora do pregão[2], de preferência após o fechamento do mercado, permitindo que a área de Relações com Investidores da Companhia tenha tempo hábil para o preparo e para a divulgação de todos os documentos e dados que entenderem por necessários, na forma como acima já explicado.

O intuito da delimitação é o de que não haja benefício injustificado para nenhum acionista ou potencial investidor, uma vez que, mesmo em posse das informações propagadas no evento, não possuirá qualquer preferência nas negociações de valores mobiliários, já que a B3 estará fechada para operações. Quando de sua abertura, o material já estará publicado para o mercado em geral, podendo-se perceber mais uma posição que privilegia a isonomia.

Levando em consideração o cenário de incerteza que o mundo enfrenta ultimamente, com a adoção de diversas ferramentas sem a regulamentação necessária ou, ainda que existente, muito nova, vide a discussão sobre a adoção de Assembleias Gerais Virtuais, acreditamos que a edição do Ofício veio em boa hora, apesar de algumas dúvidas que remanescerão quando de sua aplicação. Uma delas, já tivemos a chance de expor: quem está englobado por esta recomendação?

Além disso, outros questionamentos podem ser levantados. A mesma pessoa, seja ela um administrador ou um procurador, terá sua participação sempre e em qualquer evento associada à Companhia? Tudo que ela vier a debater durante o encontro, poderá ser colocado em dúvida quanto a ser um fato relevante?

Considerando que muitos representantes (executivos ou não) de Companhias Abertas são reconhecidos por seus conhecimentos técnicos e acadêmicos alheios aos negócios das Companhias que representam, suas participações podem ser desvinculadas dos cargos que ocupam nas Companhias a ponto de restar excluída a necessidade de comunicação ao mercado?

Por exemplo, um diretor de uma grande Companhia que atende a evento sem vinculação à entidade, mas apenas como advogado, terá sobre si a necessidade de comunicação? Ainda, tudo o que será falado em um mesmo evento, poderá ser entendido como ato ou fato relevante pela CVM?

Temos na normativa a conceituação e até a exemplificação do que é fato relevante, mas ainda que não seja capaz de influenciar a negociação de valores mobiliários de emissão da Companhia, quais os debates ocorridos que podem ser aptos a ocasionar a assimetria de informações?

A preocupação com a qualidade das informações prestadas ao mercado de capitais e com o combate à assimetria de informações é sempre legítima, porque visa a proteger o mercado como um todo, desde os investidores mais qualificados aos iniciantes. É neste sentido, inclusive, que o Ofício faz menção à necessária observância da regulamentação em vigor, dentre elas a Instrução Normativa da CVM (“ICVM”) de n° 358/2002, que versa, dentre outras medidas, sobre a divulgação de ato ou fato relevante e de informações referentes à negociação de valores mobiliários, e a de n° 480/2009, que dispõe sobre o registro de emissores de valores mobiliários admitidos à negociação.

Acontece que a difusão de informações acerca do mercado de capitais ou temas a ele ligados é igualmente importante se comparado ao combate à potencial assimetria de informações que as discussões em lives possam gerar. Via de regra os temas debatidos em tais encontros são primordialmente relacionados a matérias técnicas, projeções e tendências do mercado de forma geral, em especial quando relacionados à recente pandemia do Covid-19.

Assim, partindo da premissa de que a realização de lives funciona como efetivo instrumento de democratização do conhecimento, a CVM corre o risco de alcançar um objetivo diverso do desejado quando da edição do Ofício, freando a formação de um mercado mais desenvolvido de forma ampla.

Como toda normativa recentemente divulgada, somente o tempo vai demonstrar o real escopo de sua aplicação e que consequências trará aos agentes atuantes. Por isso, acreditamos que as Companhias acabarão por adotar uma postura mais conservadora quando da interpretação da norma. Ou seja, na dúvida de quem estará englobado pelo conceito de representantes da Companhia e, de que tema, efetivamente, decorra a relevância para a sua comunicação, em qualquer participação de colaborador, no mínimo, representativo da entidade, haverá a comunicação ao mercado.

Por fim, cabe a reflexão que fundamenta grande parte dos debates acerca de novas regulamentações da CVM e outros órgãos reguladores: qual o limite entre a regulação benéfica e maléfica aos regulados e à sociedade como um todo? Acreditamos que devem ser considerados todos os aspectos econômicos, jurídicos, políticos e sociais atrelados ao mercado de capitais, sendo essencial que os órgãos reguladores, cada vez mais, sopesem o combate às condutas ilícitas com o fomento do mercado financeiro nacional, bem como a difusão do conhecimento à maior parte da população brasileira.

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[1] Disponível para consulta em: <http://www.cvm.gov.br/legislacao/oficios-circulares/sep/oc-sep-0720.html>. Último acesso em: 26/08/2020.

[2] Trata-se de horário em que as negociações de valores mobiliários podem ser realizadas. Para maiores consultas: <http://www.b3.com.br/pt_br/solucoes/plataformas/puma-trading-system/para-participantes-e-traders/horario-de-negociacao/acoes/>. Último acesso em: 26/08/2020.