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As abelhas e as leis em tempos de Covid-19

Seria muito triste que o saldo das medidas legislativas e jurisdicionais da Covid-19 fosse o de retrocesso institucional

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Em 1950, o Ministério da Agricultura brasileiro resolveu fazer um grande esforço de melhoria na produção de mel do país. Para isso, trouxe outras cepas para o Brasil para estudo – uma das espécies veio da África, onde se acreditava a produtividade seria maior. Um engano, enxames soltos e o resto da historia é conhecida. O continente americano inteiro é hoje populado por um inseto híbrido, agressivo e persistente – que conhecemos por essas bandas como abelha africana. Honestamente não sei se ela produz mais mel, mas sua picada é notoriamente dolorida.

Em política pública, a anedota ilustra um risco clássico – medidas desenhadas para atingir um objetivo meritório acabam gerando efeitos de segunda ordem que não haviam sido antecipados – e às vezes esses efeitos militam na direção oposta ao que se pretendia. Logo após a Segunda Guerra Mundial, o governo federal dos EUA, preocupado em tornar mais acessível a moradia dos veteranos que retornavam ao país, estabeleceu um controle nacional de aluguéis.

Na década de 60, quando a maioria dos estados e cidades americanas já havia abandonado o controle de preços, NYC cristalizou suas regras. Com alugueis congelados e o custo de manutenção subindo todo ano, o estímulo para senhorios reformarem os apartamentos desapareceu. Prédios deterioraram e – no longo prazo – a oferta de moradia em NYC declinou. Os preços de imóveis hoje na cidade são provavelmente bem mais altos do que seriam não fosse a poítica da suposta proteção aos inquilinos. Aqui no Brasil, uma versão conhecida dos efeitos de segunda ordem se dá nos nossos mercados de trabalho. Contratos de trabalho rígidos e inflexíveis resultam em menos contratações. A segurança de quem tem emprego custa o sofirmento de quem não tem.

Nem sempre é trivial antecipar esses efeitos de segunda ordem – em sistemas complexos o que acaba acontecendo com nossas intervenções é contra-intuitivo. Por isso é importante manter o debate aberto e (tentar) formular políticas públicas sempre com um olho no que acontece no passo seguinte ao da sua implementação. Isso me traz ao conjunto de intervenções a que estamos assistindo no combate à COVID-19.

Raras vezes vimos no Brasil uma onda de solidariedade tão impressionante. Todos estamos nos mobilizando para atenuar os impactos do que é, sem dúvida, um desafio enorme para um país tão vulnerável e desigual quanto o Brasil.

A boa notícia: as instituições estão trabalhando. A má notícia: muitas das medidas que estão aparecendo, repletas de motivos nobres e boas intenções, padecem do pecado capital da política pública – a inabilidade de pensar em efeitos de segunda ordem. Alguns dos melhores exemplos podem ser encontrados nos escaninhos eletrônicos do Congresso. Tome-se por exemplo o projeto de lei de autoria do Deputado Hugo Leal. O objetivo é nobre e sensato: regular relações entre devedores e credores em tempos de Covid-19, permitindo uma negociação direta sem a intervenção do Judiciário. Ótimo. O projeto também tenta “preservar empregos” suspendendo a cobrança de obrigações de toda a espécie (decretando moratória legal) e alterando dispositivos da lei de recuperação judicial permitindo com que planos já acordados e homologados sejam “re-abertos” e obrigações assumidas por empresas devedoras depois do plano aprovado sejam reestruturadas. E isso pode ser desastroso. Para as próprias empresas.

Para entender o porquê – vale discutir um pouco a natureza dessa crise. A crise trazida pelo COVID-19 tem uma novidade em relação às anteriores: o seu componente central é uma suspensão de parte importante da atividade econômica – diversos negócios terão de ficar semanas ou meses essencialmente sem receita. Seu principal problema é caixa. A questão a ser endereçada não é de solvência, mas sim de liquidez. Uma lei que proíba os credores de receberm seu dinheiro não resolverá a questão mais importante para a sobrevivência do empresário: a do dinheiro novo.

A preocupação com aceleração, vencimento e cobrança de dívidas durante a pandemia está deslocada. A maioria dos credores (com algumas raras e infelizes exceções) não está acelerando dívida alguma. Um negócio sem geração de caixa não pode amortizar dívidas e credores sabem disso. Infelizmente, credores também sabe que o risco de crédito para novos empréstimos é altíssimo. Alterações legislativas que suspendam seus direitos não vão estimular a concessão de novos empréstimos, e certamente novas leis que permitam a reestruturação forçada de seus créditos vão escassear a oferta de dinheiro e aumentar ainda mais a percepção de risco.

Essa crise terá consequências econômicas sérias, e muitas empresas vão precisar de uma reorganização. A lei atual de recuperação judicial tem alguns defeitos graves, que a tornam pouco efetiva. Um dos seus maiores defeitos é o de não oferecer garantias para o chamado DIP loan (debtor-in-possession loan), nome que se dá aos empréstimos que a companhia toma depois de pedir recuperação. Por motivos óbvios, em qualquer lugar do mundo esse tem de ser o dinheiro mais protegido de todo o “ecossistema de crédito”. Sem acesso ao DIP as empresas perecem por falta de capital de giro. O projeto de lei do Deputado Leal aparentemente permite que estas dívidas sejam reestruturadas e incluídas em um novo plano. Por outras palavras, permite-se uma redução do valor de face da dívida e o seu reperfilamento forçado. Em português claro: a lei admite que todos que estiverem correndo risco de afogamento tirem o colete do salva-vidas responsavel pelo seu salvamento. Difícil imaginar que seja grande a quantidade de salva-vidas dispostos a entrar no mar nessas condições.

O conflito entre a aparente ajuda de curto prazo e o prejuízo no longo chegarão ao Judiciário. A própria União Federal, como devedora, tem pressionado os tribunais para flexibilizar regras e revistar antigas discussões, como no caso dos famigerados precatórios. Os jornais e rodas de discussão (ainda que virtuais, em tempos de Covid) estão repletos de discursos na linha de “o Plano Mansueto (com as dramáticas alterações introduzidas pelo Congresso) é uma bomba-fiscal então os juízes precisam auxliar a União a recompor o prejuízo”.

Nesta semana, em plenário virtual, o Ministro Edson Facchin deu início ao julgamento em repercussão geral (modalidade que tem força normativa e deve afetar dezenas de julgados) do antigo passivo da União com o setor sucro-alcoleiro, uma briga que dura décadas, resultante da heterodoxia econômica dos tempos de combate à inflação via controle de preços. A pressão da AGU é para que o Supremo, em um passe de mágica jurídico, dissolva o passivo da União. A tentação de endereçar desafios fiscais com decisões judiciais é grande, mas o Supremo tem demonstrado maturidade institucional e tem privilegiado segurança jurídica e o respeito à coisa julgada. Não será fácil manter essa disciplina em tempos de Covid.

O que fazer? As instituições precisam se adaptar à crise. No campo do direito privado, mecanismos que introduzam a possibilidade de negociação são bem-vindos. O reforço dos institutos jurídicos que permitam aos provedores de recursos emergenciais que salvagardem o retorno de seu capital são mais do que necessários (fica aqui a sugestão ao Deputado Leal). No campo público, já está mais do que na hora de implementarmos no Brasil molduras negociais que permitam que a União equacione seus passivos para com credores privados, tanto em recuperação judicial quando fora desse ambiente.

O Congresso discute medidas nesta direção – Projeto de Lei do Deputado Marcelo Ramos, por exemplo, permite que a União negocie acordo com credores (envolvendo descontos e parcelamento, estimulando alongamento de dívidas judiciais em 10 e 15 anos) nas hipóteses de jurisprudência reiterada e inclusive em que já exista precatório – e isto é saudável, desde que observados determinados cuidados. Leis que introduzam flexibilidade e molduras negociais, por sua vez, também trarão efeitos de segunda ordem. Sempre trazem à tona preocupações com corrupção e com a recompensa à insolvência por parte do devedor (seja ele público ou privado). O Plano Mansueto “original”, por exemplo, tomava cuidado especial com os requisitos que Estados deveriam cumprir para que se habilitassem ao regime de recuperação. Alterações naquele desenho original levaram a incentivos diferentes e perigosos dos que se pretendia. Por isso a formulação responsável de políticas públicas é tão difícil. Nossas escolhas deveriam partir dos seguintes princípios:

  1. A crise infelizmente tem um custo real – não existe solução mágica que faça o custo da crise desaparecer. Nossas escolhas se limitam a reduzir o dano ao mínimo possível (resultante da parada forçada da atividade econômica) e a eleger de forma justa socialmente quem paga a conta pelo reparo. Se alguém apresentar uma “solução mágica”, é simplesmente porque escondeu o custo. Por exemplo, se o “novo Plano Mansueto” elevar a dívida a 100% do PIB e erodir todos os mecanismos de governança fiscal dos entes federados, tiraremos o país da trajetória de consolidação fiscal e estaremos magnificando o custo da crise em vidas, via desemprego e destruição de atividade lá na frente.

  2. Consolidar instituições e institutos demora muito, por outro lado destruí-los é rápido – O Brasil sofre de um problema grave a antigo: executar contratos é caro, ineficiente e, não raro, totalmente infrutífero. Essa é uma das razões pelas quais aqui o capital “na ponta” é mais caro e escasso do que em outros países de nível similar de desenvolvimento. Nesse contexto, a safra de “leis Covid” deveria ser extremamente cuidadosa com o que teremos de legado quando a crise acabar. A despeito de eventuais reparos aqui e ali, um exemplo muito feliz do cuidado que o legislador deveria ter é o projeto de lei do Senador Anastasia. Instigado pelo Min. Dias Toffoli, o projeto se limita na medida do possível a apenas criar regras transitórias que permitam regular o funcionamento das relações privadas enquanto a crise perdurar e o faz de maneira razoavelmente elegante.

  3. Inovação institucional se faz sempre pensando no longo prazo: a narrativa é dominada pelas intenções, mas comportamento de longo prazo dos agentes responde aos incentivos. Passada a crise, incentivos mal desenhados levarão a comportamentos adversos. A Covid não pode e não deve servir de cobertura a Estados que continuam a adiar reformas estruturais importantes, devedores privados insolventes ou a uma União Federal que se mostrou historicamente litigante contumaz.

Seria muito triste que o saldo das medidas legislativas e jurisdicionais da Covid-19 fosse o de retrocesso institucional. O mal funcionamento de nossas instituições está na raiz de nosso crescimento anêmico e de nossa iniquidade endêmica.

Saiamos dessa crise como um país mais solidário e menos desigual. E vamos evitar novas espécies de abelha.

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