Pandemia

Arbitragem e força maior no contexto da Covid-19

É provável o crescimento de procedimentos arbitrais sobre a aplicação da força maior e da onerosidade excessiva

Crédito: Foto: Marcio James/Semcom

Em tempos de coronavírus, a estabilidade de contratos firmados está comprometida em virtude da adoção de medidas governamentais restritivas para combater a disseminação da doença.

Diante desse cenário, é provável que se tenha um elevado número de procedimentos arbitrais discutindo a aplicação da força maior e da onerosidade excessiva nos próximos anos.

Inicialmente, importa acentuar que algumas relações contratuais dificilmente serão afetadas pela pandemia. Outras, mesmo afetadas, serão em proporção que não justifica intervenção jurisdicional.

Todavia, no que se refere àquelas que sofrerão repercussões mais substanciais da atual situação, grande parte das contendas endereçarão o enquadramento da pandemia como evento de força maior, a resultar na impossibilidade objetiva do cumprimento da prestação ou, ainda, como evento que gera excessiva onerosidade a um dos contratantes.

Com esse intuito, por exemplo, o governo chinês, por meio do CCPIT – Conselho da China para a Promoção do Comércio Internacional, passou a oferecer certificados de força maior (Force Majeure Certificate) relacionados à Covid-19 para auxiliar as empresas chinesas em eventuais disputas com parceiros estrangeiros decorrentes do inadimplemento dos contratos.

Entretanto, será necessária a identificação, no caso concreto, se algum desses institutos realmente poderá ser aplicado e quais serão suas consequências para a relação contratual.

Inicialmente, pergunta-se: configura-se a pandemia causada pela Covid-19 como força maior? A resposta para essa pergunta depende de diversos fatores, que passaremos a examinar.

Em um primeiro momento, é imperioso analisar se o contrato prevê uma cláusula dispondo sobre a aplicação ou não do instituto da força maior. Apesar da importância dessas previsões para os contratos de longa duração, não são raros os casos em que tais cláusulas são relegadas a segundo plano quando da negociação do contrato.

Em negociações, as partes frequentemente lançam mão de cláusulas-padrão para prever situações de força maior, que ainda geram dúvidas na resolução de possíveis conflitos, vez que tais cláusulas podem não estar em consonância com as particularidades do contrato.

Assim, nos casos em que foi inserida no instrumento uma cláusula de força maior, será necessário avaliar o escopo da cláusula na qual a previsão está inscrita. Analisa-se, assim, (i) se tal cláusula deve ser interpretada de forma ampla ou restritiva; (ii) se há menção expressa aos termos epidemia, doenças ou similares; e (iii) se a cláusula foi redigida de forma adequada ou inadequada.

Quando não por possível inferir de forma clara, da redação da cláusula, se a pandemia ou as restrições governamentais porventura ocasionadas desencadeiam a previsão de força maior, será necessário recorrer primeiramente à lei aplicável ao contrato e, a depender das particularidades do caso concreto, à intenção das partes, bem como aos princípios do direito internacional.

Na hipótese em que seja necessário recorrer à definição de força maior prevista na lei aplicável ao contrato — geralmente quando não há cláusula prevendo a aplicação do instituto ou, em caso de existência, quando essa não define o que vem a ser considerado força maior — torna-se particularmente relevante constatar se a lei escolhida no contrato está inserida em uma jurisdição de common law ou civil law.

Geralmente, o conceito de força maior é amplamente reconhecido pelas legislações dos países de civil law — que normalmente preveem o instituto em suas normas —, ao passo que é atípico às jurisdições de common law. Nestas, frequentemente as Cortes remetem-se a doutrinas semelhantes na resolução de casos, mas não idênticas, como por exemplo frustration e impracticable, as quais referem-se a uma prestação que se tornou substancialmente diferente do que foi inicialmente pactuado.

Em termos práticos, as doutrinas normalmente previstas em legislações de países da common law possuem requisitos mais rígidos para aplicação da força maior, mais utilizada pelos países de civil law.

Isso se explica em razão de, nas jurisdições de common law, a doutrina do four corners rule prevalecer — significando, portanto, que a redação final do contrato contempla por inteiro a intenção das partes, a qual prevalece e é essencial para definir se será aplicável a força maior.

Nos países de civil law, por outro lado, a possibilidade de aplicação da força maior geralmente independe de previsão contratual, podendo as disposições do contrato serem complementadas pelas previsões dos códigos.

Por conseguinte, caso as partes escolham lei aplicável ao contrato pertencente à jurisdição de civil law, a inserção de uma cláusula de força maior poderá ser interpretada como intenção de as partes regulamentarem e limitarem os requisitos legais para a aplicação da força maior já reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência de determinada jurisdição. Assim, quanto mais detalhada for a cláusula, menor será a margem de discricionariedade dos tribunais arbitrais.

Ainda no que se refere às jurisdições de civil law, a ocorrência da força maior geralmente se configura pela impossibilidade absoluta do cumprimento da obrigação, ocasionando a inexecução involuntária da prestação, devido a fato superveniente e independente da vontade do devedor, bem como imprevisível, a depender do ordenamento jurídico.

Com isso, se a impossibilidade for passageira e o atraso não ofenda a finalidade comum às partes do contrato, a força maior não tem aplicação no sentido de permitir a resolução do contrato, mas tão somente a suspensão legal temporária.

Semelhantemente, se a prestação permanece exequível, mas se torna excessivamente onerosa para uma das partes, ofendendo o princípio do equilíbrio econômico dos pactos, não se fala em força maior em seu sentido clássico. Por outro lado, caso se fale em uma impossibilidade parcial de obrigações divisíveis, busca-se a redução da prestação e da contraprestação.

De toda sorte, deve sempre haver uma relação inequívoca entre o evento de força maior e a inexecução, assim como deve ser impossível evitar ou impedir seus efeitos, não podendo o devedor tomar medidas para agravar os efeitos do inadimplemento.

Longe disso, recomenda-se que as empresas sejam diligentes ao tentar mitigar possíveis impactos operacionais enquanto permanece a situação de calamidade. Sob a luz do dever de mitigar prejuízos (duty to mitigate the loss), os esforços das empresas serão relevantes para a análise por parte do tribunal arbitral sobre a razoabilidade da adoção de medidas para a manutenção das obrigações contratuais, bem como sobre a impossibilidade de performá-las.

No caso de contratos regidos pelo Código Civil Brasileiro, após uma análise do escopo da cláusula de força maior, caso exista, será necessário isolar uma obrigação específica e avaliá-la à luz das circunstâncias do contrato, uma vez que as obrigações poderão ser afetadas de forma diferente.

Na hipótese na qual seja necessária a interpretação da cláusula de força maior sob o prisma do Código Civil, o árbitro lançará mão, dentre outros artigos, do caput do art. 393, o qual prevê que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não houver se responsabilizado por eles; e, ainda, de seu parágrafo único, que dispõe que o caso fortuito ou força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Apesar de não haver consenso sobre o modo de aplicação da força maior nos contratos a nível internacional, muitos casos deverão encontrar respaldo quando seus contextos particulares forem afetados por situações inevitáveis, como as restrições impostas pela administração pública, de modo a preencher o suporte fático dos remédios jurídicos aplicáveis.

Em comparação com as últimas epidemias enfrentadas ao redor do globo, o impacto da pandemia do novo coronavírus na economia é muito maior. Entre outros fatores, isso decorre do fato de este ser um adversário novo em meio à ausência de clareza sobre a duração e o alcance do surto. Não obstante, dependendo de quando o contrato tenha sido celebrado, pode ser mais ou menos provável que a pandemia seja reputada previsível pelos árbitros na análise do caso concreto.

Em 2005, por exemplo, a Comissão Internacional Chinesa de Arbitragem Econômica e Comercial (CIETAC) condenou um vendedor chinês que invocou indevidamente a SARS como causa de força maior para justificar suas entregas parciais a um cliente holandês. Foi constatado que, como o surto da doença ocorreu antes da data de assinatura do contrato, não poderia ser considerado um evento imprevisível para o lado chinês.

Em última análise, provisões de força maior são uma parte importante de um plano de alocação de risco. Nesse sentido, a tendência é que os contratantes dediquem cada vez mais atenção quando da redação de suas cláusulas, bem como da escolha da lei aplicável, para garantir que os riscos sejam alocados conforme pretendido pelas partes.

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