Pandemia

Antitruste diante de crises: um breve histórico da experiência norte-americana

Há que se ter muita cautela, no Brasil, em argumentos genéricos de maior permissividade do antitruste

Crédito: Pixabay

Webinars, artigos e conversas informais têm trazido à tona diversos dos possíveis impactos da pandemia do Covid-19 no direito da concorrência, no Brasil e no mundo. Temas relacionados a preço abusivo, aumento arbitrário de lucros, práticas verticais (como fixação de preço de revenda), reflexos sobre os mais diversos tipos de contratos (como os contratos de distribuição, híbridos ou relacionais, de troca, etc.), cooperação entre concorrentes, grupos de compra, failing firm, relações com o comércio internacional, dentre outros, têm sido debatidos pela comunidade antitruste.[1]

Para que se encontre saídas futuras para a crise, parece-nos interessante analisar o passado. Nesse contexto, a experiência da autoridade de defesa da concorrência norte-americana na vivência de outras crises[2] pode fornecer alguns dados para reflexão no contexto brasileiro, dado que aquele país possui legislação antitruste desde 1890.

A primeira importante lei surgida dentro do contexto norte-americano com fins de tutelar a concorrência é o Sherman Act, datado de 1890. Já em 1893 recorda-se a ocorrência de bolha envolvendo o mercado ferroviário. Na ocasião, no entanto, não estava claro ainda o papel do Sherman Act, especialmente no tocante à sua aplicação a fusões, razão pela qual não se vê de modo contundente uma atuação antitruste[3].

Em 1907, por sua vez, diante da crise referente a uma bolha do mercado financeiro, conta o relato de que o presidente Roosevelt garantiu imunidade antitruste à J P Morgan, que já possuía influência sobre todo o sistema bancário, quando esta expandiu seus investimentos ao setor do aço. Nessa crise, a Bolsa de Valores de Nova Iorque chegou a cair 50%, o que provocou uma corrida aos bancos e uma enorme crise de confiança.

Ainda, na crise de 1918, decorrente da 1ª Guerra Mundial, o Advogado Geral norte-americano, Thomas Gregory, defendeu a suspensão da aplicação da legislação antitruste sob o fundamento de que tal legislação atrapalharia os esforços de guerra. Nesse contexto, a Suprema Corte reverteu uma decisão condenatória tomada pela corte distrital, afirmando que o verdadeiro teste de legalidade de uma conduta deveria analisar se esta regula e promove a concorrência ou se a limita e elimina, de maneira com que deveria ser avaliados seus efeitos[4], fazendo uma primeira sinalização para que fosse aplicada a regra da razão.

Adiante, durante o manejo da crise de 1929 nos Estados Unidos, merece destaque o caso Appalachian Coals vs. United States[5]. Trata-se de caso em que a Suprema Corte optou pela não condenação de um cartel referente ao mercado de carvão, ocasião em que 137 produtores agiram de maneira coordenada com o fim de restringir a oferta do produto, controlando seu preço. Trata-se de um tipo de entendimento absolutamente extraordinário e inaugurador do que se denomina “cartel de crise”.[6] Importante lembrar a opinião de alguns especialistas, segundo os quais a presente crise pode ser equiparável ou ainda mais grave que a de “A Grande Depressão de 1929”[7][8].

Outro importante precedente desse período é o caso International Shoe Co. vs. FTC. Trata-se da primeira vez que a teoria do failing firm[9] foi discutida, segundo a qual poderia haver permissividade na ocorrência de concentrações significativas, ante o ganho social que há na permanência de determinada empresa num mercado, salvando empregos e garantindo a oferta de determinados produtos.

Nessa ocasião, a Suprema Corte reverteu a decisão do FTC que impedia a International Shoe Co. de adquirir a quase totalidade do capital social de sua concorrente W. H. Mc Elwain Company, entendendo que a referida compra não tinha por intuito diminuir a concorrência, mas poderia, em lugar disso, atenuar os efeitos prejudiciais decorrentes de uma eventual falência[10].

Ainda, no caso ALA Schelter Poultry Corp vs. United States, a Suprema Corte declarou inconstitucional o National Industrial Recovery Act (NIRA), consistente em uma das leis que compunha o “New Deal”. Tal legislação previa a não aplicação de regras antitruste para qualquer ato que visasse a atender os objetivos do NIRA[11]. A inconstitucionalidade, portanto, foi determinada em razão da enorme abertura do tipo da referida lei, dando discricionariedade exacerbada à sua aplicação.

Adiante, por ocasião da 2ª Guerra Mundial, o Chefe da Divisão Americana Antitruste Thurman W. Arnold publicou, em 1940, livro de título “The Bottlenecks of Business”. Nele, defendeu que o direito antitruste teria como objetivo a defesa constante do ideal da democracia industrial sob todo tipo de pressão, referindo-se expressamente às crises em tempos de guerra.

Já no contexto de recuperação referente à crise do subprime de 2008, as discussões antitruste se viram mais globalizadas, e a questão passou a girar em torno, novamente, da aplicação da teoria do failing firm. Assim, tal teoria também foi objeto de análise nos casos United States vs. Diebold[12], United States vs. Reed Roller Bit Company[13], Citizen Publishing Co vc United States[14] e United States vs. General Dynamic Corp[15].

A Suprema Corte permitu a aplicação da teoria em dois destes casos apenas, o que possibilitou a consolidação do uso do failing firm no Horizontal Merger Guidelines do FTC de 2010. Foi sedimentado, portanto, o arcabouço utilizado na aprovação de fusões que envolvam empresas em falência, instrumental este que pode ser importante para que se possa enfrentar os desafios postos pela crise do Covid-19.

Tem-se, desta feita, um breve histórico relativo à flexibilização ou ao enrijecimento das regras antitruste em contextos de crise nos Estados Unidos. A nosso ver, há que se ter muita cautela, no Brasil, em argumentos genéricos de maior permissividade do antitruste. Ao contrário da experiência norte-americana, nosso país possui legislação antitruste recente, e pouca vivência e conhecimento das regras do direito da concorrência pela população em geral.

Não são poucos os casos em que se vê, por exemplo, agentes públicos organizando cartéis ou condutas comerciais uniformes, bem como condutas verticais de abuso do poder dominante sendo praticadas por empresas por desconhecimento total ou parcial da legislação. Assim, a autoridade antitruste brasileira há que ter bastante cautela na análise de tais argumentos, sob pena de retroceder às já superadas ondas do direito da concorrência no Brasil.[16]

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[1] Para alguns destes debates, sugere-se assistir os Webinars organizados pela rede Women in Antitrust (WIA), disponíveis no YouTube <https://www.youtube.com/channel/UCeODG0OV9lM8bWNCqbOrHTQ>.

[2] KOVACIC, William E. and SHAPIRO, Carl. “Antitrust Policy: A Century of Economic and Legal Thinking” (1999). GW Law Faculty Publications & Other Works. 633.< https://scholarship.law.gwu.edu/faculty_publications/633/>

[3] “Perhaps 1893 should not be included in the story: antitrust was still young, and it was not even clear that the Sherman Act applied to mergers. However, by Teddy Roosevelt’s “trustbusting” days in the first decade of the 20th century, the reach of the Sherman Act to exactly the kind of railroad mergers the 1893 crisis enabled had become clear”. CRANE, Daniel A. “Did We Avoid Historical Failures of Antitrust Enforcement During the 2008-2009 Financial Crisis?”, 77 Antitrust L.J. 219 (2010). <https://repository.law.umich.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2199&context=articles>

[4] “Every agreement concerning or regulating trade restrains, and the true test of legality is whether the restraint is such as merely regulates, and perhaps thereby promotes, competition, or whether it is such as may suppress or even destroy competition. To determine this question, the court must ordinarily consider the facts peculiar to the business, its condition before and after the restraint was imposed, the nature of the restraint, and its effect, actual or probable.” Chicago Board of Trade v. United States, 246 U.S. 231 (1918). Disponível em: <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/246/231/> Acesso em: 5.5.2020.

[5] Disponível em: <https://supreme.justia.com/cases/federal/us/288/344/> Acesso em 5.5.2020

[6]O termo ‘cartel de crise’ é concebido na literatura econômica de duas formas. A primeira se refere aos carteis formados durante uma severa crise setorial, nacional ou um colapso econômico global, sem a permissão estatal ou sanção legal. A segunda forma se refere a situações em que o Estado permite a formação de cartel entre empresas durante tais situações econômicas”. ALVES, Marlus Santos, e ROS, Luis Guilherme – Cartel de crise e renegociação dos TCCs na pandemia do Coronavírus. Disponível em:  <https://www.conjur.com.br/2020-mar-28/opiniao-cartel-crise-renegociacao-tccs-pandemia>. Acesso em 13.5.2020

[7] Fonte: <https://valor.globo.com/mundo/noticia/2020/04/09/coronavirus-e-pior-crise-economica-desde-grande-depressao-diz-diretora-do-fmi.ghtml>. Acesso em 5.5.2020

[8] Fonte: <https://brasil.elpais.com/economia/2020-03-15/pandemia-do-coronavirus-mergulha-a-economia-no-desconhecido.html>. Acesso em 5.5.2020

[9]  OLIVEIRA JÚNIOR, Fernando Antônio Alves de.  “A empresa em crise e o direito da concorrência : a aplicação da teoria da Failing Firm no controle brasileiro de estruturas e seus reflexos no processo de recuperação judicial e de falência” (2014). Disponível em: <https://repositorio.unb.br/browse?type=author&value=Oliveira+J%C3%BAnior%2C+Fernando+Ant%C3%B4nio+Alves+de>.

[10]  Disponível em < https://supreme.justia.com/cases/federal/us/280/291/>. Acesso em 5.5.2020.

[11]SECTION 1: A national emergency productive of widespread unemployment and disorganization of industry, which burdens interstate and foreign commerce, affects the public welfare, and undermines the standards of living of the American people, is hereby declared to exist. It is hereby declared to be the policy of Congress to remove obstructions to the free flow of interstate and foreign commerce which tend to diminish the amount thereof; and to provide for the general welfare by promoting the organization of industry for the purpose of cooperative action among trade groups, to induce and maintain united action of labor and management under adequate governmental sanctions and supervision, to eliminate unfair competitive practices, to promote the fullest possible utilization of the present productive capacity of industries, to avoid undue restriction of production (except as may be temporarily required), to increase the consumption of Industrial and agricultural products by increasing purchasing power, to reduce and relieve unemployment, to improve standards of labor, and otherwise to rehabilitate industry and to conserve natural resources.” Disponível em: <https://www.ourdocuments.gov/doc.php?flash=false&doc=66&page=transcript> Acesso em: 5.5.2020

[12] Caso United States vs. Diebold, julgado em 1962, no qual os requisitos relativos à insolvência e falência iminente, bem como a possibilidade única de potencial compradora foram primeiramente trazidos.

[13] Neste caso United States vs. Reed Roller Bit Company, de 1967, ante a ausência de demonstração de que o comprador Rid Roller Bit Company era o único possível, a operação foi vetada.

[14] Neste caso Citizen Publishing Co vc United States, de 1969, pela primeira vez levou-se em conta todos os três requisitos que hoje são previstos no Guia de Concentrações Horizontais do FTC e do DOJ norte-americanos. Neste caso a Suprema Corte entendeu que tais elementos não estavam presentes e vetou a criação de uma Joint Venture entre os jornais Tucson, The Citizen e The Star, que teria duração de 35 anos e contava com regras restritivas à concorrência.

[15] Neste caso United States vs. General Dynamic Corp, de 1974, a Suprema Corte permitiu que a operação ocorresse ainda que todos os requisitos necessários à aplicação do failing firm não estivessem presentes. A análise contou com uma avaliação de concorrência potencial, e concluiu-se que a empresa em quase falência não seria capaz de competir por novos contratos, não havendo prejuízo efetivo à concorrência.

[16] Para mais informações relativas às 3 ondas do Antitruste brasileiro, acessar: ATHAYDE, Amanda. “As três ondas do antitruste no Brasil – A Lei 12.529/2011 e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica. As três ondas do antitruste no Brasil, Portal JOTA, 01 nov. 2017.” < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-tres-ondas-do-antitruste-no-brasil-01112017>

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