Série Observatório para a Qualidade da Lei

Acesso à informação e avaliação de impacto regulatório

Como essas políticas podem se retroalimentar

LAI
Crédito: Unsplash

Em maio de 2012, foi promulgada a Lei nº 12.527/2011, conhecida como “Lei de Acesso à Informação” (LAI). Neste ano, completou seus 8 anos de vigência. Com um histórico não-linear, marcado por ciclos de avanços significativos, mas também preocupantes retrocessos, a efetividade do direito à informação ainda tem uma longa trajetória pela frente.

A entrada em vigor, no Brasil, foi consequência do movimento consolidado na década de 90 que se desenvolveu em duas vertentes: dados abertos e proteção da privacidade. Alguns fatos disruptivos impulsionaram, alimentaram e dirigiram as legislações e políticas públicas no setor da informação já na última década do fim do século XX e na primeira década do século XXI: o crescimento exponencial do uso comercial da internet; a preocupação com a institucionalização das autoridades, independentes, garantidoras de privacy; as ações contra a opacidade das atuações estatais impactadas pela atuação hacker, pelas verdades inconvenientes divulgadas via Wikileaks; a desigualdade no acesso à infraestrutura necessária informação (exclusion divide).

Após um salto no volume de informações públicas ativamente disponibilizadas no decorrer dos últimos anos e de responsabilização de agentes públicos por atos corruptivos, assistimos, recentemente, a graves apagões informativos da Administração pública brasileira.

No Executivo federal, elencamos, abaixo, cinco dentre os vários exemplos de tentativas de violações à transparência pública e de incentivo à opacidade informacional:

i) O Decreto nº 9.690/19, que ampliava o leque de servidores responsáveis por decretar o sigilo. Com isso, ampliava os riscos de uso ainda mais excessivo do sigilo a informações públicas, em dissonância com a sua lógica excepcional. Foi revogado pelo Decreto nº 9.716/19, após reações da sociedade civil organizada;

ii) A MP nº 928/20, que trazia restrições ao acesso à informação, usando como escudo os obstáculos da pandemia da Covid-19. Previa a suspensão de prazos de resposta a pedidos de acesso; a necessidade de o cidadão reiterar a solicitação após a pandemia e negativa de direito de recurso nessas circunstâncias. Em resumo, esvaziava o direito à informação pública no momento em que ela era mais essencial. A suspensão da sua eficácia veio com decisão do STF na ADI 6351;

iii) Atrasos no horário de divulgação de boletins epidemiológicos diários como medida de retaliação do Presidente a emissoras e jornais brasileiros;

iv) Omissões na divulgação de dados da pandemia, com o uso de nova metodologia que, na verdade, buscava gerar a sensação de que os números de casos e mortes eram menores;

v) Recorde de negativas de acesso à informação (afrontas ao sistema de transparência passiva da LAI) ou a desproporcional discricionariedade na classificação do nível de acesso às informações;

Lado a lado à política de transparência, não menos importante é também a consolidação de uma cultura de avaliação de impacto regulatório. As duas questões estão umbilicalmente conectadas.

De um lado, amplia-se o acesso à informação pública com a produção legislativa de qualidade, que depende de uma boa metodologia de avaliação prospectiva e retrospectiva (antes e depois da entrada em vigor da lei); de outro, as informações idôneas são substrato para a reconstrução do cenário regulatório que, por sua vez, é uma etapa do ciclo de avaliação legislativa.

Nesse sentido, os dois temas (gestão da informação e avaliação legislativa) são objeto de reflexão do domínio científico da chamada “Legística Material”. Trata-se de uma metodologia de elaboração, aplicação e avaliação da lei, que busca contribuir para a expansão de boas práticas legislativas, que resultem em atos normativos de mais qualidade. No século XX, Peter Noll, Charles Morand, Jean-Daniel Delley, Luc Wintgens evidenciaram o papel da informação na justificativa de legislações (harmonizadas com suas respectivas/necessárias políticas públicas). Sob a perspectiva metodológica, o foco sobre o incremento da eficácia e efetividade dos atos normativos desagua nos modelos de avaliação ex ante e ex post.

No que tange à avaliação prospectiva ou ex ante, o processo de escolha da melhor intervenção legislativa na realidade social envolve uma análise dos impactos previsíveis sobre os destinatários diretos e indiretos, bem como sobre as outras políticas públicas pré-existentes.

Com isso, minimiza-se a ocorrência de efeitos indesejáveis e possibilita-se a contenção dos riscos e eventuais danos inerentes à produção normativa. São diversos métodos que permitem essa extrapolação e previsão de efeitos normativos. Um deles, a chamada “legislação experimental”, permite que, a partir de limitações de tempo, espaço e afetados, as variáveis envolvidas no processo legislativo sejam isoladas para se mensurar com mais precisão os impactos potenciais.

Por fim, a avaliação retrospectiva ou ex post baseia-se na coleta dos efeitos reais ocorridos nos mais diversos domínios e públicos-alvo afetados pela legislação. A partir disso, é possível desenhar os próximos passos de intervenção, reavaliar as medidas tomadas e adaptar às circunstâncias supervenientes.

A relação entre a metodologia de avaliação de impacto regulatório e o direito à informação deve, novamente, ser resgatada. Ao se mensurar os efeitos prováveis e reais de uma nova intervenção normativa, contribui-se para a preservação e, potencialmente, disseminação da informação pública.

Com isso, a decisão por um curso de ação fica sujeita a maior escrutínio e pautada por critérios menos arbitrários. A avaliação legislativa envolve, ainda, manter no horizonte a coerência do ordenamento jurídico, através da reconstrução do direito vigente. Nesse contexto, apenas com o acesso à informação, tanto pela sociedade como internamente entre os órgãos públicos (articulação e comunicação interorgânicas), é possível a verificação e sistematização normativa, bem como o controle de revogações.

Um modesto passo em prol da consolidação da cultura de avaliação de impacto foi dado com a Lei nº 13.874/2019. Prevê, no seu art. 5º, a necessidade de prévia análise de impacto regulatório quanto aos efeitos econômicos de atos normativos da administração pública federal. Estamos, todavia, muito distantes de utilizar todo o potencial inovador e disruptivo dessa política e de conectá-las à gestão informacional na Administração pública brasileiro. Os necessários dados advindos do Censo tem especial importância para a reconstrução de cenário dos muncípios, onde grande parte dos direitos e das políticas públicas ganham concretude.

A essa equação soma-se o fato de que novos desafios surgiram com a recente pandemia mundial. A situação de calamidade pública colocou à prova o modo estatal de gestão da informação e de funcionamento da máquina pública. Mostrou ser preciso, mais que nunca, repensar a atuação administrativa, adequando-a ao trabalho remoto, com a virtualização e digitalização das atividades estatais. O acesso à informação correta, em um cenário como este, se torna uma questão de vida ou morte; pensar a lei e avaliar os seus potenciais e reais efeitos nos mais diversos setores, uma necessidade inafastável.

Se a consolidação de práticas de avaliação legislativa pode contribuir para vencermos a cultura do sigilo e a opacidade informacional, que ainda se perpetuam na Administração Pública brasileira, também o fortalecimento do acesso à informação auxilia a qualidade da atividade avaliativa. Desse modo, essas duas políticas devem caminhar harmonicamente juntas, em constante retroalimentação.

Caso contrário, manteremos este ciclo vicioso de descontinuidade de políticas públicas, má aplicação dos escassos recursos públicos, baixa qualidade legislativa, propagação da desinformação, da desconsideração de dados e evidências. O momento para essa “virada” não pode mais ser adiado. E apenas a pressão da sociedade civil pode garantir que ela ocorra.

 

***A busca de uma justificação ‘racional” para a legislação e a regulação encontra uma das suas perspectivas na avaliação legislativa, na avaliação de impacto regulatório e se fundamenta em camadas de análise de dados, fatos, evidências, informações, da pluralidade de contextos. Desenvolvidos na experiência estrangeira, os conceitos e práticas da avaliação parecem fazer sentido em regimes parlamentares onde a elaboração normativa abre pontes entre executivos e legislativos. Esta série de artigos tem como objetivo suscitar reflexões sobre os modelos de avaliação legislativa e avaliação de impacto regulatório possíveis para o contexto brasileiro e sua complexa legislação multinível.

 

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Referências:

ARTIGO 19. Lei de acesso à informação – transparência para superar a crise. São Paulo, 2020. Disponível em: <https://artigo19.org/wp-content/blogs.dir/24/files/2020/05/RelatorioAcessoInformacaoCrise2020.pdf>. Acesso em: 28 ago. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 6351. Relator Min. Alexandre de Moraes, DJe 30/04/2020. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6351.pdf>.  Acesso em: 29 ago. 2020.

DELLEY, Jean-Daniel. Pensar a lei: introdução a um procedimento metódico. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, v. 7, n. 12, p. 101-143, jan./jun. 2004. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/StaticFile/ilp/pensar_a_lei_-_jean-daniel_delley.pdf>.  Acesso em: 28 ago. 2020.

SOARES, Fabiana de Menezes et al. Acesso à informação pública: uma leitura da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Brasília: Senado Federal, 2013. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/496325>. Acesso em: 30 ago. 2020.

TRANSPARÊNCIA BRASIL. Negativas de acesso pioram sob o Governo Bolsonaro. São Paulo, 30 jul. 2020. Disponível em: <https://www.transparencia.org.br/downloads/publicacoes/Negativas_de_acesso_a_informacao_pioram_sob_governo_Bolsonaro.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2020.

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