Pandemia

A sociedade de risco hoje

A distribuição desigual dos riscos e o gerenciamento das incertezas nos tempos de Covid-19

Chernobyl. Crédito: Pixabay

Se a obra Sociedade de Risco[i] fosse escrita hoje, Ulrich Beck teria catástrofes a mais e indagações a menos quanto às possíveis consequências da distribuição de riscos em proporções globais. À época de sua primeira edição, Beck escrevia o prefácio de sua obra a partir das preocupações com o risco da produção industrial na sociedade pós-moderna, em uma espécie de prenúncio às consequências do desastre nuclear de Chernobyl, ocorrido em 1986, pouco depois da publicação do livro.

Hoje, a pandemia causada pela Covid-19 nos apresenta uma nova face dos desastres e da desconstrução da categoria do outro no que se refere às fronteiras do perigo e ao impacto social e político de uma crise global. Isso nos faz pensar que Beck é ainda mais pertinente em nossos dias do que nos dele.

A passagem da Sociedade de Classes para a Sociedade de Risco apresentada na obra é fundamentada pela percepção de que os riscos da modernidade seriam globais, porém, distribuídos com intensidade diferenciada a partir das estruturas sociais. Nesse aspecto, a incerteza e a magnitude dos riscos originados do desenvolvimento científico e industrial não poderiam ser contidas espacialmente. Com a pandemia instaurada pela Covid-19, o risco abstrato retratado pelo sociólogo alemão se tornou um exemplo de ameaça concreta para o mundo.

Ainda que as fronteiras reais e simbólicas entre as sociedades tenham ruído pela difusão global do coronavírus, não poderíamos afirmar que isso tenha ocorrido em relação à segregação da miséria. Embora o vírus não apresente diferenciação quanto à possibilidade de contágio nas diferentes classes sociais, são os menos abastados e não-brancos os mais propensos a morrer em decorrência da Covid-19.

Estudos realizados pela Universidade de Harvard[ii] demonstram um maior risco de mortalidade por Covid-19 entre os negros americanos do que entre outros grupos. A partir da descoberta de que o acréscimo de apenas 1 μg/m3 de partículas de poluição atmosférica menores do que 2.5 micrometros de diâmetro está associado a um aumento de 8% na taxa de mortalidade por Covid-19, as pesquisas apontam uma ampliação de 45% na taxa de mortalidade por coronavírus associado a um aumento de 1% na porcentagem de residentes negros. Isso confirma a hipótese de que as comunidades negras tendem a estar mais expostas a índices de poluição maiores do que aqueles observados nas regiões habitadas por pessoas majoritariamente brancas.

No Brasil, as disparidades raciais nas mortes por Covid-19 também são observadas, uma vez que indivíduos não-brancos são mais propensos a morrer por infecção do que as pessoas brancas. De acordo com um estudo publicado pelo Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS)[iii], a chance de recuperação da Covid-19 entre os brancos é de 62%, já entre os negros é de 45%, o que corresponde a uma chance 38% maior de um negro morrer por coronavírus do que um branco.

Outro estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo, em parceria com Universidade de Cambridge[iv], aponta que essa variação racial nas infecções por Covid-19 pode ser explicada pelas desigualdades sociais e de acesso à assistência de saúde. A pesquisa conclui que, no Brasil, as diferenças entre as taxas de mortalidade são impulsionadas pelos baixos níveis de desenvolvimento socioeconômico e de acesso ou de disponibilidade de cuidados de saúde para brasileiros pardos e pretos em comparação aos brancos.

Ao prefaciar a obra, Beck estaria, mais uma vez, certo em suas análises de um futuro que se anunciava. A racionalização do risco pela governança mascara, e às vezes, fortalece as estruturas de poder que sustentam a distribuição desigual do risco e das riquezas originadas do processo de produção. Assim como nos lembra o autor, o acúmulo de riquezas é cada vez mais ofuscado pela produção de riscos, compreendidos como efeitos colaterais latentes da lógica de produção.

A constatação de Beck a este respeito encontraria alicerce, hoje, nas principais causas que acentuam o surgimento de doenças zoonóticas[v]: a destruição de florestas e outros ecossistemas naturais para a expansão de centros urbanos, terras agrícolas e produção industrial. Soma-se a isso o fato de que as mudanças climáticas impulsionam o surgimento de doença zoonóticas[vi], na medida em que as emissões de gases de efeito estufa desequilibram a temperatura e a umidade planetária, o que acarreta impactos diretos na proliferação de micróbios.

Se a Sociedade de Riscos fosse escrita hoje, seria possível oferecer algumas respostas às indagações de Beck quanto ao que poderia ocorrer diante da ampla contaminação por um elemento acentuadamente perigoso. Com a experiência em curso da pandemia causada por Covid-19, os questionamentos ventilados pelo autor quanto à possibilidade de restrições oficiais às liberdades individuais, de manutenção de países em quarentena e de instauração do caos interno apresentariam respostas positivas.

Para prevenir a propagação do vírus, a pandemia modificou a organização social, cultural, política e econômica por meio de restrições ou proibições impostas pelos governantes de todos os Estados afetados. Na China, a liberdade de locomoção foi condicionada à comprovação do estado de saúde. Na Itália, as atividades produtivas não essenciais foram suspensas e eventuais deslocamentos dos cidadãos passaram a ser inspecionados por meio de drones.

Nos Estados Unidos, os cidadãos da California foram submetidos ao confinamento obrigatório. Na Alemanha, a liberdade de reunião foi abolida. No Reino Unido, locais de entretenimento como bares e restaurantes foram fechados. No Brasil, a privacidade dos dados pessoais foi mitigada temporariamente para que o governo pudesse rastrear o contato dos indivíduos, assim como houve a suspensão de aulas em escolas e universidades.

Isso nos lembra que direitos fundamentais foram suspensos ou restringidos, ainda que com o consentimento dos cidadãos. O reconhecimento social dos riscos e a aceitação das medidas imposta são amparados pela necessidade e proporcionalidade das restrições que buscam contribuir para o bem-estar da sociedade pelo tempo necessário para o controle da pandemia, fator que ressalta o potencial político das catástrofes.

Não obstante, um traço marcante da Sociedade de Risco de Ulrich Beck é a ideia de que o estado de emergência, que legitima a adoção de medidas restritivas governamentais, pode se tornar a regra geral. Nesse aspecto, em uma sociedade de desastre, existe a possibilidade de uma nova organização de poder e responsabilidades públicas a partir do rearranjo dos princípios democráticos fundamentais. Essa nova configuração é impulsionada pela gestão do risco, o que abre margem ao autoritarismo legitimado pela prevenção.

Hoje, Ulrich Beck poderia asseverar, assim como o fez em 1986, que nesta sociedade tudo se transforma, ao mesmo tempo que nada muda essencialmente. A produção de riscos ainda prevalece sobre a produção de riquezas e sistematicamente coloca em risco toda a civilização, o que culmina com uma sociedade mais moderna e globalizada a partir da gestão do risco e da incerteza. Embora a compreensão dos riscos futuros gerados pelas práticas atuais de controle da Covid-19 possa oferecer um caminho promissor e importante para o enfrentamento de novos desastres, quase 35 anos depois, permanece irretocável a afirmação exposta pelo sociólogo de que “os sistemas jurídicos não dão conta das situações de fato”.

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[i]BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. 2 ed. trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34. 2011.

[ii] WU, Xiao; et. al. Exposure to air pollution and Covid-19 mortality in the United States. medRxiv. abril. 2020. doi: https://doi.org/10.1101/2020.04.05.20054502.

[iii] BATISTA, et al. Nota Técnica 11: Análise socioeconômica da taxa de letalidade da Covid-19 no Brasil. Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS). maio, 2020.

[iv] BAQUI, et al. Ethnic and regional variation in hospital mortality from Covid-19 in Brazil. medRxiv. maio. 2020. doi: https://doi.org/10.1101/2020.05.19.20107094

[v] SMITH, et. al. Global rise in human infectious disease outbreaks. Journal of the Royal Society Interface.  dez. 2014. doi: https://doi.org/10.1098/rsif.2014.0950

[vi] SCOTT, John. How biodiversity loss is hurting our ability to combat pandemics. World Economic Forum. mar. 2020.