Saúde

A Saúde, como direito, é também um excelente investimento econômico

Um sistema único, universal e igualitário, fundado na solidariedade e na cooperação é fundamental para a saúde de um país

Crédito: USP Imagens Planos de Saúde

Não é por acaso que o amplo conceito de Saúde[1] da Organização Mundial de Saúde surge após a Segunda Guerra Mundial e permanece sendo referência para as nações do globo até hoje. Diante da tragédia humana revelada no século passado, a Saúde é reconhecida como bem fundamental para a paz e para o desenvolvimento humano, social e econômico:

A saúde de todos os povos é fundamental para se alcançar a paz e a segurança e depende da mais ampla cooperação entre indivíduos e Estados;

Os resultados alcançados por qualquer Estado na promoção e proteção da saúde são valiosos para todos;

A desigualdade dos diferentes países na promoção da saúde e no controle das doenças, especialmente as transmissíveis, constitui um perigo comum.[2]

Ao definir que Saúde é mais do que ausência de doença[3], consolida-se o entendimento de que Saúde é um conceito positivo que decorre não só de aspectos individuais (e.g., biológicos, físicos, genéticos), mas também de aspectos relacionados ao meio ambiente e ao ambiente social nos quais o indivíduo está inserido. O reconhecimento amplo dos “determinantes sociais da saúde”, tanto pelo Brasil como pela comunidade internacional, reafirma e promove a importância dos fatores relacionados à estrutura social e ao meio ambiente que influenciam direta e indiretamente a saúde da população.[4]

Sueli Dallari sintetiza o conceito dizendo que, “sob o aspecto jurídico, devemos entender saúde como o bem fundamental que, por meio da integração dinâmica de aspectos individuais, coletivos e de desenvolvimento, visa assegurar ao indivíduo o estado de completo bem-estar físico, psíquico e social”. [5] É especialmente importante compreender a existência do que Dallari denomina de continuum na noção de saúde, que tem em um de seus polos as características mais próximas do indivíduo e, no outro, aquelas mais diretamente dependentes da organização sociopolítica e econômica dos Estados. Consoante a autora, ninguém pode ser individualmente responsável por sua saúde, já que “o aparecimento de doenças pode estar ligado mais diretamente a características e fatores individuais, embora não deixe de apresentar traços que o liguem à organização social e política.”[6]

O SUS – construído a partir dos princípios da universalidade e igualdade, bem como a partir das diretrizes de regionalização, descentralização, hierarquização, integralidade e participação social – é, do ponto de vista teórico, totalmente compatível com o desafio, imposto pela OMS e pela CF/88, de garantir a Saúde como bem jurídico fundamental. Ao atribuir ao SUS as competências previstas no art. 200 (e.g., vigilância sanitária e epidemiológica, colaboração na proteção do meio ambiente e saúde do trabalhador), a Constituição permitiu-lhe atuar em setores estratégicos para a produção de Saúde, no sentido amplo definido por Dallari.[7]

Epidemias são situações limite que evidenciam de modo claro essas afirmações. Comprovam que indivíduos não podem ser responsabilizados individualmente por sua saúde. Comprovam a necessidade de se preservar a saúde de todos, para garantir a saúde de cada um. Comprovam a necessidade de cooperação entre Estados e indivíduos. Colocam em xeque contratos de assistência à saúde baseados no individualismo e na lógica comutativa.

Além disso, epidemias evidenciam que a Saúde condiciona o desempenho econômico. A Saúde tanto causa recessões como possibilita o desenvolvimento e o crescimento econômico. A Saúde não é recurso escasso[8]. Pelo contrário, a Saúde é essencialmente um bem jurídico coletivo e fundamental. E, além disso, é um excelente investimento econômico.

O Centro de Macroeconomia Aplicada da Fundação Getúlio Vargas aponta que, em razão da pandemia de Covid-19, a retração do PIB brasileiro, em 2020, pode chegar a 4,4%.[9] Mas não é apenas em casos de pandemia dessa magnitude que a saúde condiciona os resultados econômicos. Estudo de John Gallup e Jeffrey Sachs publicado em 2001 já demonstrava que países com grave malária são quase todos pobres e que, de outro lado, regiões que conseguiram reduzir a malária tiveram um crescimento econômico substancial após tal redução[10]. De outro lado, o estudo de Danielle Bloch aponta que o custo da chicungunya nas Américas (dados de 2013-2015) foi da ordem de bilhões de dólares. Esses valores envolvem não apenas os custos diretos, com medicamentos, etc., mas também os indiretos, como aqueles relacionados à ausência no trabalho, à redução de produtividade, aos custos com transportes, entre outros[11].

Lobato e Giovanella definem “sistemas de saúde” como o resultado de um conjunto de relações políticas, econômicas e institucionais responsáveis pela condução dos processos relacionados à saúde de uma população. Se, por um lado, todos os sistemas apresentam certa forma de organização (e.g., rede de serviços, financiamentos); por outro, sistemas de saúde não podem ser separados da sociedade em que se encontram, pois fazem parte da sua dinâmica social[12], e a dinâmica desses sistemas está sempre relacionada a outros sistemas sociais de determinado tempo e lugar[13].

Aprimoramentos em sistemas de saúde devem ser constantes. Após a epidemia de SARS (2003), o Canadá tomou uma série de medidas importantes para a melhoria do seu sistema de saúde. Dentre elas, David Naylor[14] explica que a epidemia apontou para a necessidade se fortalecer a cooperação entre estados e a federação. Do mesmo modo, o Brasil vem desenvolvendo uma série de medidas importantes para o combate a epidemias após a aprovação do Regulamento Sanitário Internacional, conforme apontam Ventura, Aith e Rached[15], apesar de ainda permanecer a necessidade de se elaborar uma nova lei de vigilância epidemiológica de caráter geral.[16]

Mas é para o crônico subfinanciamento público da saúde no Brasil que se deve olhar com atenção. Desde o advento da CF/88, o SUS sofre com a instabilidade de custeio[17]. Veja-se que, em 2016, o gasto do governo em saúde no Brasil foi 4% do PIB e o gasto privado foi 5,2% do PIB (Produto Interno Bruto); em 2018, o gasto do governo do Canadá foi 7,5% do PIB (quase o dobro!) e o gasto privado 3,3% do PIB (OECD, 2019, últimos dados disponíveis para cada país  na data consultada)[18]. Veja-se que aqui não foi trazido o percentual do PIB per capita que, por óbvio, é ainda mais discrepante.

Para a construção de um bom sistema de saúde e para a efetivação da saúde como direito, é crucial que sejam asseguradas as garantias constitucionais para a realização desse direito, dentre elas, o seu financiamento adequado.

Claro que, diante de uma epidemia, é sempre possível e necessário ampliar o financiamento do sistema de saúde. Mas isto está longe de ser suficiente. Bons sistemas de saúde são o resultado de uma longa construção de redes de atenção e de serviços, que conseguem organizar e articular linhas de cuidado, que contam com o envolvimento de entidades, prestadores, gestores e profissionais de saúde comprometidos e, principalmente, que já conquistaram a confiança de uma população atendida em suas necessidades essenciais e que dele participa ativamente.

Um sistema único, universal e igualitário, fundado na solidariedade e na cooperação é fundamental para a saúde de um país. É premissa, condição absolutamente necessária, para a contenção de epidemias que, em um mundo globalizado tendem a se tornar cada vez mais frequentes[19]. E é também premissa, condição fundamental para o seu desenvolvimento econômico e social. Por isso, a Saúde, como direito, é também um excelente investimento econômico.

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[1] A OMS define, no preâmbulo de sua Constituição, que “saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. WHO – WORLD HEALTH ORGANIZATION. About WHO. Constitution of WHO. Principles. 2018c. Disponível em: http://www.who.int/about/mission/en/. Acesso em: 29 mar. 2018.

[2] Tradução livre da autora.

WHO – WORLD HEALTH ORGANIZATION. About WHO. Constitution of WHO. Principles. 2018c. Disponível em: http://www.who.int/about/mission/en/. Acesso em: 29 mar. 2018.

[3] Na segunda metade do século XX, a OMS define, no preâmbulo de sua Constituição, que “saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. WHO – WORLD HEALTH ORGANIZATION. About WHO. Constitution of WHO. Principles. 2018c. Disponível em: http://www.who.int/about/mission/en/. Acesso em: 29 mar. 2018.

[4]  WHO – WORLD HEALTH ORGANIZATION. Social Determinants – About, 2018b. Disponível em: http://www.who.int/social_determinants/about/en/ Acesso em: 26 jun. 2018.

[5]    DALLARI; NUNES JUNIOR, 2010, p. 13.

[6]    DALLARI, Sueli Gandolfi, NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Direito Sanitário. São Paulo: Ed. Verbatim, 2010 p. 13/14.

[7]    DALLARI; NUNES JUNIOR, 2010.

[8] Nas palavras de Nusdeo:

“A atividade econômica é, pois, aquela aplicada na escolha de recursos para o atendimento das necessidades humanas. Em uma palavra: é a administração da escassez. E a Economia vem a ser a ciência dessa atividade, vale dizer, do comportamento humano e das relações e fenômenos dele decorrentes, que se estabelecem em qualquer sociedade permanentemente confrontada com a escassez.”

NUSDEO, Fábio. Curso de Economia: Introdução ao Direito Econômico, 10ª ed. Ver. Atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

[9] FGV –EESP – Centro de Estudos em Macroeconomia Aplicada. <https://cemap.fgv.br/pt-br/node/265> Acesso em 23.3.2020.

[10] GALLUP, John Luke and SACHS, Jeffrey D., The Economic Burden of Malaria, Am. J. Trop. Med. Hyg., 64(1, 2)S, 2001, pp. 85–96, Copyright  2001 by The American Society of Tropical Medicine and Hygiene.

[11] “The total societal cost in the Caribbean was $90.7 billion (range: $87.5–$94.0 billion), in the Andean region was $55.4 billion (range: $54.2–$56.8 billion), in Central America was $33.8 billion (range: $32.4–$35.1 billion), in the Southern Cone was $2.7 billion (range: $1.6–$2.9 billion) and in North America was $2.4 billion (range: $2.1–$2.7 billion) (Table 2). The countries with the highest total cost were Colombia ($45 billion, range: $44.3–$45.7 billion), the Dominican Republic ($43.9 billion, range: $43.3–$44.6 billion), and El Salvador ($15.2 billion, range: $14.8–$15.6 billion). The Caribbean accounted for 49.0% of all costs, the Andean region accounted for 30.0%, Central America accounted for 18.3%, the Southern Cone for 1.4% and North America for 1.3%.”

BLOCH, Danielle, “The Cost And Burden Of Chikungunya In The Americas” (2016). Public Health Theses. 1022. http://elischolar.library.yale.edu/ysphtdl/1022, p.13.

[12] LOBATO; GIOVANELLA, 2012, p. 107.

[13] LOBATO; GIOVANELLA, 2012, p. 109.

[14] The Lancet. Canada and COVID-19: learning from SARS. Vol. 395 March 21, 2020.

[15] VENTURA, Deisy de Freitas Lima, AITH, Fernando Mussa Abujamra, RACHED, Danielle Hanna. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Ahead of Print, Vol. XX, N. X, 2020, p. XX-XX. DOI: 10.1590/2179-8966/2020/49180| ISSN: 2179-8966, p. 13.

[16] VENTURA, Deisy de Freitas Lima, AITH, Fernando Mussa Abujamra, RACHED, Danielle Hanna. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Ahead of Print, Vol. XX, N. X, 2020, p. XX-XX. DOI: 10.1590/2179-8966/2020/49180| ISSN: 2179-8966, p. 14.

[17] DE NIGRI, João Alberto, CÈSAR, Bruno, Orgs. Desafios da Nação: artigos de apoio, volume 1, IPEA, p.85/86 <https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=32982&Itemid=433>, acesso em 23.3.2020.

[18] OECD – ORGANISATION FOR ECONOMIC COOPERATION AND DEVELOPMENT. Health Spending. 2019. Disponível em: https://data.oecd.org/healthres/health-spending.htm. Acesso em 15 nov. 2019.

[19] VENTURA, Deisy de Freitas Lima, AITH, Fernando Mussa Abujamra, RACHED, Danielle Hanna, Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Ahead of Print, Vol. XX, N. X, 2020, p. XX-XX. DOI: 10.1590/2179-8966/2020/49180| ISSN: 2179-8966, p. 6.

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