
O desastre recente ocorrido na praia de Pipa no Rio Grande do Norte, em que uma jovem família foi soterrada pelo desabamento de uma falésia, deixou o país consternado. Tragédias decorrentes de desastres naturais que ceifam vidas humanas, infelizmente, não são de rara ocorrência no Brasil. A pergunta que se faz é: poderiam ser evitadas? Ou dito de outro modo: qual os limites da responsabilidade do Estado em se tratando de sinistros advindos da natureza?
Há quem culpe a própria família vitimada pela tragédia, eis que há notícias de que foram avisados por frequentadores que ali se encontrava sob risco de deslizamento no local. Entretanto, ainda que se comprove que as vítimas tenham concorrido com o acontecimento, qual o papel do Estado para evitar mortes como essas?
A sistemática clássica de responsabilidade do Estado sem dúvida é a de natureza objetiva, prevista pelo art.37, § 6º da Constituição, a qual independe da comprovação de dolo ou culpa. Com efeito, adotou-se no Brasil como regra a teoria do risco administrativo para aferir a responsabilidade do Estado por prejuízos que provoque aos cidadãos em decorrência de sua atuação. Para se configurar tal responsabilidade, basta tão-somente a concomitância de três pressupostos: fato administrativo (conduta comissiva de agente público), dano, e nexo de causalidade entre o fato administrativo e o dano.
Vê-se que a responsabilidade objetiva não requer atividade ilícita, ou seja, ainda que o Estado atue de forma legítima, às vezes essa atuação gera prejuízo a alguém. Esse prejuízo deverá ser suportado pelo Estado, pois é inerente à atividade pública. Assim, é suficiente a demonstração do dano decorrente da atuação estatal para se configurar a responsabilidade objetiva.
No caso em análise, não há que se falar em atuação do Estado que tenha provocado o ocorrido. Entretanto, segundo o teor de noticias amplamente veiculadas nos meios de comunicação, a Prefeitura, responsável pela área, alegou que apenas afixou placas de aviso no local às quais foram levadas pela maré. Ou seja, a princípio, se atuação estatal ocorreu, não foi efetiva para evitar a tragédia. Assim, há que se perquirir se ocorreu omissão do Estado diretamente relacionada ao ocorrido.
Em se tratando de omissão do Estado em ocorrências danosas, doutrina e jurisprudência tem entendimento majoritário, no sentido de que neste caso não se aplica a responsabilidade objetiva do art. 37, § 6º, da CF (responsabilidade objetiva). Nessa hipótese, de responsabilidade civil do Estado por omissão é adotada a teoria da culpa administrativa, devendo ficar demonstrado que o Estado tinha o dever de agir, mas foi negligente, imprudente ou imperito. Nesse caso, os danos poderiam ter sido evitados ou minorados se o Estado, tendo o dever de agir, não tivesse se omitido.
Na hipótese de omissão estatal, prevalece a teoria da culpa administrativa também chamada de culpa do serviço, culpa anônima ou ainda, acidente administrativo.
Essa teoria busca dissociar a responsabilidade do Estado da ideia de culpa do agente público. Logo, não exige do lesado que identifique o agente público causador do dano, tampouco exige que o ato seja de gestão (praticado sem que a Administração utilize sua supremacia sobre os particulares) ou de império (a Administração impõe coercitivamente aos administrados). É preciso demonstrar se houve falha do serviço público.
Há que se observar que a responsabilidade estatal diante da omissão, a princípio, requer a comprovação da falta do serviço, da atitude que se esperaria do Estado. Há, então, uma “culpa” a ser apurada, mas tal culpa se difere da culpa da seara privatística. Aqui, não se trata de demonstrar dolo ou culpa de um agente público, mas, sim, uma responsabilização decorrente da denominada culpa anônima, a qual requer a comprovação da ineficácia, da má prestação do serviço público.
Dessa forma, a jurisprudência nacional tem demonstrado a tendência a reconhecer a responsabilidade civil do Estado, quando ocorre a omissão do dever jurídico de cuidado e levando-se em conta a circunstância de ser o Estado sabedor dos riscos. Trata-se de hipótese em que se entende razoável se exigir da Administração Pública o dever de cuidado.
Nessa linha, o dever de proteção em casos de desastre naturais será precisamente a omissão diante do conhecimento de risos previsíveis. Com efeito, tem sido essa a linha de entendimento preponderante, a qual requer riscos quantificáveis e que tenham concretizados danos que sejam passíveis de justificar uma responsabilização do Estado por omissão.
Dessa forma, ainda que venha a se comprovar que as vítimas de Pipa contribuíram para o resultado danoso ora estampados nas manchetes nacionais, mesmo assim persiste a responsabilidade, ainda que parcial, do Estado que, ciente dos riscos e alertado por órgão oficial do Ministério Público, absteve-se de tomar concretas medidas para efetivar seu dever jurídico de proteção.
O episódio 43 do podcast Sem Precedentes analisa a nova rotina do STF, que hoje tem julgado apenas 1% dos processos de forma presencial. Ouça: