Marcelo Guedes Nunes
Professor de direito empresarial e direito digital da PUC-SP. Presidente da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) e sócio de Guedes Nunes Sociedade de Advogados
Por iniciativa dos ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou dois dias de audiência pública em suas dependências, onde organizações da sociedade civil, especialistas, advogados e pesquisadores debateram a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet (MCI). O art. 19 regula a responsabilidade das plataformas pelo conteúdo que é nelas publicado, estabelecendo critérios para separar os deveres dos usuários por suas próprias publicações, dos casos nos quais os provedores podem ser responsabilizados pelo conteúdo que terceiros publicaram em suas redes.
A atenção despendida pelos ministros, que compareceram pessoalmente à audiência, as perguntas apresentadas após as falas e o cuidado com que todos os argumentos foram ponderados e registrados mostram a preocupação do STF em compreender a questão, ouvir todos os pontos de vista e tomá-los em consideração antes de proferir uma decisão a respeito de um tema tão delicado quanto crucial. Infelizmente, essa discussão acontece sob o contexto dos lamentáveis fatos ocorridos no dia 8 de janeiro deste ano, em que os prédios das lideranças dos Três Poderes da República em Brasília foram abjetamente atacados e depredados, em um dos mais tristes episódios da vida política brasileira.
A memória recente dos violentos ataques e o grau de alienação política e social dos que nele se envolveram (os “zumbis”, na expressão do ministro Gilmar Mendes) criaram, não sem razão, um clamor para que as autoridades da República adotassem medidas de controle social para tentar prevenir que novos eventos dessa magnitude ocorressem. Apesar do compreensível senso de urgência, a condução de um debate regulatório dessa envergadura pautado por eventos casuísticos pode muitas vezes levar agentes públicos bem intencionados a não apenas não resolver o problema – que é complexo e de difícil solução –, mas a piorar uma situação já por si delicada.
Quando lidamos com políticas públicas, nosso primeiro dever enquanto “médicos do convívio” é o mesmo manifestado por Hipócrates em seu juramento da não maleficência: antes de fazer o bem, tentemos não piorar a situação. Este é, na minha visão, o caso da atual discussão em torno da constitucionalidade do Marco Civil da Internet.
Desde seu surgimento, a internet modificou profundamente as relações entre as pessoas. Estabelecimentos empresariais virtuais, relação de trabalho com subordinação algorítmica, fake news e bots de engajamento não foram previstos pelo legislador e a regulação se tornou lacunosa. As lacunas, como esperado, geraram dúvidas na sociedade quanto à alocação de direitos e obrigações, que por sua vez foram convertidas em ações judiciais perante os tribunais. A combinação entre essa inconsistência legal e uma economia digital produziu um aumento acelerado na quantidade de novas ações, em uma verdadeira epidemia processual de larga escala.
Parte desse crescimento é bem-vindo, como resultado da maior inclusão digital e da garantia que as pessoas têm de pleitear seus direitos perante os tribunais. No entanto, outra parcela desse crescimento tornou-se desordenado como resultado (1) de agentes desorientados pela ausência de um marco legal claro e (2) do oportunismo dos que, vendo uma chance de extrair valor da desordem, começaram a propor ações frívolas.
O Marco Civil da Internet e seu art. 19 surgiram em 2014 para enfrentar esse problema. Seu objetivo era estabelecer um marco regulatório robusto para controlar o crescimento desordenado das ações, sem reprimir a parte saudável das disputas que estava associada ao crescimento orgânico da internet. As metas do MCI naquele ano eram ambiciosas: controlar a quantidade de ações frívolas, tornar os pedidos judiciais mais precisos, reduzir o tempo de análise dos processos e reduzir a taxa de recorribilidade, estabilizando mais rapidamente as decisões
Toda lei nova é um experimento a ser monitorado e com o Marco Civil da Internet não seria diferente. Para verificar o seu sucesso, realizamos uma pesquisa empírica de larga escala que analisou cerca de 9.000 processos dos cinco principais tribunais estaduais entre 2009 e 2019. Foi uma análise baseada não em mera opinião pessoal, citações ou argumentos de autoridade, mas em uma comparação empírica, objetiva e controlada entre o perfil dos conflitos antes e depois da vigência da lei. A conclusão a que chegamos é que o MCI foi bem sucedido em todas as métricas analisadas, tendo produzido melhorias significativas em todos os objetivos quantificáveis que motivaram a sua edição. Em resumo:
Os resultados indicam que o atual sistema não é um fracasso e que importantes avanços foram conquistados desde 2014. Os resultados também indicam que a internet não é uma terra de ninguém. Há um influxo grande de ações de responsabilização envolvendo autores, plataformas e terceiros, administradas e julgadas pelo Poder Judiciário, a despeito das condições adversas, com uma eficiência cada vez maior. É, portanto, fundamental reconhecer os avanços conquistados e trabalhar para que eles não sejam perdidos.
Tornar os usuários menos responsáveis pelo conteúdo de suas publicações não tornará as redes sociais mais urbanas e civilizadas. O que o estudo mostra é o oposto: a percepção de que as plataformas serão chamadas a pagar indenizações incentiva os usuários a serem mais agressivos e menos cautelosos em suas publicações.
Da mesma forma, quanto mais abertas ou fluidas se tornarem as hipóteses de responsabilização das plataformas, quanto mais as cláusulas legais forem baseadas em sentimentos subjetivos (raiva, ódio, humilhação) e não em conceitos objetivos (cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado), mais incentivos existirão para a propositura de ações frívolas. Assim, mudanças nesses dois vetores podem nos colocar no pior dos mundos.
De um lado, incentivaríamos usuários a publicarem ilícitos, mentiras e ofensas, pois, afinal, quem paga é a plataforma. Com isso, aumentaríamos a polarização, a quantidade de fake news e de ataques, reduzindo o grau de civilidade nas redes. De outro lado, a introdução de cláusulas abertas promoverá o crescimento desordenado na quantidades de processos, com a propositura de ações judiciais para remover conteúdo, para republicar conteúdo e para indenizar usuários tanto pela publicação como pela remoção. Teremos mais ódio e, ao mesmo tempo, mais processos.
O que o estudo mostra é que o MCI é uma política pública bem sucedida dentro dos limites em que se propôs atuar e produziu avanços desde a sua edição. Esses avanços podem parecer pequenos perto dos desafios atuais, mas eles não devem ser subestimados nem esquecidos. Ao contrário, eles devem ser valorizados, porque nesse campo todo ganho incremental é importante. Diante de um cenário tão desafiador, nós não podemos nos dar ao luxo de retroceder.
Em suma, é necessário abordar a questão da responsabilidade das plataformas e da constitucionalidade do Marco Civil da Internet com cautela, ponderação e uma perspectiva de longo prazo. O caminho a seguir não deve ser guiado por reações a eventos isolados, mas sim por uma análise cuidadosa dos fatos e das evidências disponíveis. Só assim poderemos continuar avançando em direção a um ambiente digital mais seguro, justo e inclusivo.
DALEFFI, Bruno; NUNES, Marcelo Guedes. O Impacto do Marco Civil da Internet no Judiciário: Análise Quantitativa dos Efeitos do Artigo 19 da Lei 12.965/2014 no Judiciário Brasileiro. Revista da Falp - Fundação dos Advogados de Língua Portuguesa, v. 1, p. 219-233, 2022. Editora IASP. Disponível em: https://static1.squarespace.com/static/5e8c8ca71556cd7eab527147/t/63d6aeddf903950838925465/1675013859125/FALP-1.pdf. Acesso em: 03 de abril de 2023.
Terranova Consultoria Estatística LTDA. Parecer acerca do impacto do Marco Civil da Internet nas ações de remoção de conteúdo. Supremo Tribunal Federal (STF), 19 maio 2021. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=756061319&prcID=6192789. Acesso em: 03 de abril de 2023.