Patente

A pesquisa de vacinas e medicamentos da Covid-19

Multilateralismo e patente de segundo uso

Crédito: Marcelo Camargo/Agência Brasil

É consensual a percepção de que o mundo somente voltará à sua plena normalidade após chegarmos a uma vacina e à sua produção célere e em escala suficiente para atendimento à população.

Nesse sentido, o enfrentamento à pandemia da Covid-19 ensejou a abertura de várias frentes de pesquisas em busca de uma vacina imunizadora e de um medicamento antiviral inibidor e eficaz.

Referidas ações, contudo, exigem um largo tempo e um caminho extenso até que resultem no conhecimento e na inovação. Em regra, os ciclos de pesquisas na área farmacêutica levam cerca de 10 anos para conclusão.

Trata-se de um tempo que o mundo não dispõe, porquanto os sérios impactos econômicos e sociais produzidos pela pandemia do novo coronavírus precisam ser revertidos o quanto antes, sob pena de presenciarmos um constante avanço do agravamento desse quadro.

Logo, percebe-se que o mundo tem pressa e corre em busca das soluções de combate à Covid-19 a partir da Ciência.

Por essa razão é que, em relação aos medicamentos, as rotas de pesquisas estão partindo de moléculas já conhecidas e relativas a princípios ativos utilizados em formulações para o trato de outros sintomas. Essa metodologia de trabalho permite a necessária redução do tempo dos ciclos de pesquisas e testes.

Em relação às vacinas, a complexidade e o alto custo das pesquisas estão levando os países a se reunir em parcerias e cooperações técnicas multilaterais.

Até mesmo países possuidores de um ambiente de inovação estruturado e desenvolvido, com alta capacidade produtiva, estão optando pelo encaminhamento de pesquisas pela via de cooperação técnica.

Na contramão desse movimento, o Brasil decidiu não aderir à aliança que reuniu mais de 40 países para formação de um fundo que arrecadou cerca de 7,4 bilhões de euros que serão empregados nas pesquisas sobre tratamentos e vacinas contra o Sars-CoV2.

A decisão do governo brasileiro implicará na impossibilidade do país se beneficiar, ao menos no primeiro momento, de eventual vacina que surja a partir dos esforços fomentados dentro da referida aliança. Estaremos, pois, e quando muito, no fim da fila dos países favorecidos.

Diante disso, está claro que o isolamento científico não se apresenta como sendo a estratégia mais adequada ao Brasil no processo de busca pela vacina. O esforço global pela busca dos tratamentos da Covid-19 deve prevalecer e ser perseguido.

Apesar da reconhecida qualificação técnica dos nossos pesquisadores, é fato que o país ressente de limitações de ordem financeira e de infraestrutura para conduzir as suas pesquisas no tempo adequado, e com a capacidade industrial necessária.

Ademais, a depender do grau de complexidade tecnológica contido no conhecimento da futura vacina, o país poderá enfrentar problemas relacionados a cadeia produtiva dos insumos.

Portanto, tais restrições demonstram o quanto é perigoso a opção, até aqui adotada pelo país, de não ajustamento de cooperações técnicas multilaterais, na medida em que podemos ficar sem acesso às soluções de tratamento surgidas dessas parcerias.

Um outro ponto que merece um olhar atento, diz respeito ao direito da propriedade industrial relativo às patentes das futuras vacinas.

É nitidamente precária qualquer garantia ou compromisso mundial que assegure o acesso global e incondicional ao conhecimento das eventuais vacinas que surjam contra o novo coronavírus.

A resolução da Organização Mundial da Saúde (OMS), recentemente aprovada por 194 países, incluindo o Brasil, cujo texto assegura o compromisso de flexibilização do acesso às respectivas patentes das eventuais vacinas, corre o risco de ter sua aplicação e efetividade enfraquecidas em razão da não adesão dos EUA a esse trecho.

A ressalva dos EUA sinaliza que o país está se posicionando contra as propostas extraordinárias de flexibilização, e que não está disposto a transigir de forma diferenciada sobre os direitos de propriedade industrial relativos às patentes das futuras vacinas que vierem a ser desenvolvidas e produzidas em seu território.

Diante da referida hipótese, é razoável admitir que os demais países só venham ter acesso aos conhecimentos postos nas patentes, a partir do sucesso das negociações comerciais que envolverem a respectiva autorização de uso. Essa hipótese ganhará contornos mais sérios, se se tratar de uma vacina inaugural e única em nível mundial.

Portanto, em relação ao desenvolvimento da vacina, três são as grandes questões que poderão afetar o Brasil:

1) limitação da pesquisa local em razão da ausência de recursos financeiros e de infraestrutura suficientes;

2) a não adesão a acordos de cooperação técnica multilaterais, que poderá limitar o acesso do país a vacinas desenvolvidas pelos países cooperados; e

3) a depender da complexidade tecnológica do insumo da vacina desenvolvida em outros países, o parque industrial local poderá se ver impossibilitado de produzi-la em curto prazo.

Já em relação à busca de medicamentos para o tratamento da Covid-19, é sabido, conforme dito inicialmente, que as pesquisas estão se dando, em grande maioria, a partir de moléculas já conhecidas e inseridas em quadros reivindicatórios que são ou já foram objetos de patentes relativos ao primeiro uso médico. Essas pesquisas buscam, pois, a aplicação dessas moléculas em segundo uso médico.

Em tese, é possível que o conhecimento sobre um novo uso médico de uma molécula seja decorrente de esforços de pesquisas que façam jus à proteção por patente. Em tais casos, estaremos diante do que se tem conhecido e denominado como “patente de segundo uso”.

A concessão de patente de segundo uso é um assunto sensível, polêmico e controverso, que opõe estudiosos e, no governo federal, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), favorável à concessão, e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), em sentido contrário.

Os que defendem a impossibilidade da concessão de uma patente de segundo uso, apoiam fundamentalmente suas razões, no argumento de que essas patentes não preenchem os requisitos legais de patenteabilidade relativos à novidade e atividade inventiva.

No âmbito do INPI, os pedidos de patentes de segundo uso requeridas sofrem criteriosa análise técnica.

A partir da observância de rigorosas de diretrizes técnicas fixadas pela autarquia, o qualificado corpo de examinadores de patentes do INPI analisam se o conhecimento trazido é resultante de significativo esforço de pesquisa em bancada, porquanto o objeto do pedido de patente de segundo uso não pode ser decorrente de achado óbvio e conhecido.

Somente após a constatação do preenchimento dos requisitos legais de patenteabilidade (novidade, atividade inventiva e aplicação industrial) é que o pedido de patente de inovação poderá ser concedido pelo INPI, uma vez atendido o dispositivo do artigo 239 da Lei n.º 9.279/96, que trata da anuência prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

A pandemia do Sars-Cov2 levou o governo brasileiro a decretar estado de emergência no país. Vivemos um momento excepcional, onde as buscas de soluções podem ensejar na consideração e emprego de medidas igualmente excepcional, a exemplo do uso do instituto legal conhecido como licença compulsória de patente.

Referido instituto se constitui num dispositivo legal de salvaguarda de flexibilização de acesso ao conhecimento de patente, conforme estabelecem os artigos 68 a 71 da Lei n.º 9.279/96.

Diante da sua natureza excepcional, a aplicação do instituto da licença compulsória exige um processo de maturação, com análises criteriosas, sopesamentos e reflexões prévios sobre a existência de alternativa de solução regular, e a garantia sobre a efetividade dos resultados práticos esperados, inclusive quanto a capacidade produtiva local.

A crise sanitária está sendo dura e violenta. O país não pode deixar escapar a oportunidade de compreender a lição deixada pela pandemia da Covid-19.

Está claro o grau de importância da Ciência, pesquisa e inovação, e a necessidade de se conferir a devida prioridade ao tema, de forma que se possa fazer o devido uso estratégico da propriedade industrial em favor do desenvolvimento econômico, tecnológico e social do país.

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