Coronavírus

A penhora eletrônica em tempos de pandemia

Situações como esta comprovam que o Direito sempre será posto à prova com circunstâncias novas

Crédito: Pixabay

Como prática social que é, o Direito nunca estará completo ou finalizado, ou seja, é uma ciência de “work-in-progress”. A atual pandemia demonstra isso. Em meio à crise ora vivida, a maior parte dos holofotes está direcionada para as mudanças jurídicas geradas pela COVID-19. Contudo, esta crise também serve para expor eventuais lacunas do nosso ordenamento.

Nesse sentido, sob o ponto de vista do Direito Processual Civil, a pandemia fez com que fosse possível constatar claramente a seguinte lacuna: o Código de Processo Civil não prevê soluções para minimizar as consequências jurídicas de caso fortuito ou força maior na execução. A discussão veio à tona porque, recentemente, a magistrada da 38ª Vara Cível do TJ/RJ indeferiu pedido de penhora on line com fundamento na “pandemia do coronavírus reconhecida pela OMS e a possibilidade de decretação de estado de emergência e crise econômica em nosso país”.[1]

De fato, não há substrato legal expresso para tal decisão. Consequentemente, seria possível sustentar que referida decisão iria de encontro ao nosso ordenamento jurídico brasileiro. Isso tendo em vista que o Direito brasileiro está inserido num sistema jurídico de matriz romano-germânica, o que significa que a base normativa para resolução de casos individuais deve ser extraída, primordialmente, do Direito Legislado, ou seja, do texto.

Assim sendo, considerando a decisão acima citada, duas indagações merecem ser tratadas:

1) Em casos nos quais não há disposição normativa expressa que justifique a decisão, como o julgador poderá decidir?

Com relação a essa primeira pergunta, é preciso fixar duas premissas:

Em primeiro lugar, o juiz não pode denegar justiça. Nos termos do art. 140 do Código de Processo Civil, “o juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.”. Portanto, independentemente da existência ou não de disposição normativa a regular o caso concreto, o feito precisa de solução jurisdicional.

Em segundo lugar, é preciso enfatizar que interpretação e aplicação do Direito são atividades distintas. O Código de Processo Civil, como qualquer outra disposição normativa, deve ser primeiro interpretado e, posteriormente, aplicado.

A interpretação visa a atribuir sentido à disposição normativa. Em outras palavras, é a interpretação que efetivamente cria a norma. Todavia, referida atividade de criação não deve acontecer no plano abstrato, mas, sim, à luz do caso concreto. Dessa forma, o Código de Processo Civil deve ser interpretado à luz de seu atual ambiente de aplicação.

No caso telado, a decisão mencionada fez bem ao construir a norma do caso concreto considerando exatamente a pandemia mundialmente vivida. Esse é o ambiente de aplicação que deve ser levado em consideração para a construção normativa e posterior aplicação à hipótese concreta.

Assim, diante de uma lacuna legal (ausência de previsão expressa no Código de Processo Civil sobre determinação de penhora on line em tempos de pandemia), o julgador precisará se valer de uma concepção lógico-argumentativa para construir a solução do caso concreto. Em outras palavras, a aplicação do Direito deverá ser feita mediante a ponderação de argumentos que tenham a ver com as circunstâncias específicas da situação individual, visando à obtenção de uma solução justa.[2]

É importante estabelecer essas premissas para rechaçar a alegação de que a decisão acima citada contrariou o Direito vigente. Isto é, que a julgadora teria aderido a decisionismo arbitrário, o que não é verdade.

2) Diante da atual crise mundial de saúde, as consequências negativas do COVID-19 na sociedade são suficientes para obstaculizar o direito do credor à penhora on line?

É inegável que a execução é realizada de acordo com o interesse do exequente. Em razão disso, o dinheiro ocupa o primeiro lugar na ordem preferencial de penhora (art. 835 do CPC) e a penhora, via sistema BacenJud (art. 854 do CPC) é o mecanismo executivo mais utilizado para que o crédito seja satisfeito.

Em respeito ao princípio do contraditório, após a efetivação da indisponibilidade on line, o executado é intimado para se manifestar (art. 854,            § 3º, do CPC). Essa manifestação é limitada a dois temas: a) impenhorabilidade; ou, b) excesso de indisponibilidade.

Com a crise de saúde pública que se instaurou pela disseminação do novo Coronavírus, o mercado médico-hospitalar demonstra uma busca implacável por equipamentos de proteção, que consistem, por exemplo, em máscaras de proteção, álcool, álcool em gel, luvas, avental impermeável e viseiras (máscaras de acrílico).

Tendo isso em vista, imaginemos a seguinte situação:

Em determinada execução, a executada é pessoa jurídica que tem como atividade econômica principal o comércio de instrumentos e materiais para uso médico, hospitalar e de laboratórios (serviço considerado essencial). Além disso, considere-se que em meio à crise, a empresa esteja conseguindo importar essas mercadorias, suprindo as necessidades mais urgentes de unidades de saúde.

Suponhamos, nesse contexto, que contra a empresa, na condição de executada, tenha sido requerida a penhora eletrônica (on line). E que com o deferimento do pedido do exequente constate-se prejuízo na sua atividade de abastecimento de hospitais.

Diante das possíveis linhas argumentativas oportunizadas pelo art. 854, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil, comecemos pela primeira: a impenhorabilidade do valor bloqueado.

O art. 833 do Código de Processo Civil é responsável por elencar um rol de bens considerados impenhoráveis. Até que ponto, contudo, esse rol deve ser taxativo? A título exemplificativo, o inciso X do referido artigo prevê que é impenhorável “a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos.”.

Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça estendeu o alcance dessa impenhorabilidade para além da caderneta de poupança, englobando também os 40 salários-mínimos depositados em conta-corrente, fundos de investimentos ou, inclusive, guardados em papel moeda.[3] Isto é, a Corte Superior redimensionou a regra de impenhorabilidade, atribuindo-a uma interpretação extensiva.

Desse modo, considerando que o rol de bens impenhoráveis já foi outrora redimensionado, pode-se argumentar que, neste momento de crise, o próprio capital seja um bem indispensável à atividade da empresa, sendo considerado impenhorável, nos termos do inciso V do art. 833. Isso porque é por intermédio dele que a pessoa jurídica é capaz de remunerar os seus funcionários, os quais garantem a manutenção da atividade empresarial por ela desenvolvida.

O reconhecimento da impenhorabilidade na hipótese proposta é a única alternativa existente para que a empresa continue a fornecer aos hospitais e demais instituições de saúde os instrumentos essenciais para o combate ao Coronavírus, como já vinha fazendo antes de ter seu capital bloqueado.

E não há falar que o argumento do capital, nos termos expostos acima, pode ser utilizado em qualquer caso. Evidentemente, o dinheiro é necessário para a manutenção de qualquer negócio. Contudo, o que torna, no caso concreto, o capital impenhorável é o reconhecimento do papel desempenhado pela empresa executada em um ambiente absolutamente anormal de pandemia.

Quanto ao segundo argumento de defesa possível, para além da indisponibilidade excessiva, deve ser considerado um conceito ainda mais abrangente: o da onerosidade excessiva.

Em um primeiro momento, pode-se achar que a onerosidade excessiva, in casu, recai apenas sobre a empresa executada. Contudo, uma análise mais aprofundada nos permite concluir que tal onerosidade não recai apenas sobre a empresa, mas, também, sobre todos os hospitais que carecem de equipamentos médicos e hospitalares para conter o vírus e, consequentemente, sobre todos aqueles que precisam e/ou precisarão de atendimento médico em hospitais.

Situações complexas como essa exigem que a interpretação do Direito considere as peculiaridades do ambiente de aplicação da norma, no caso concreto, a crise mundial de saúde a as medidas necessárias para combatê-la. Nesse contexto, o próprio texto constitucional, em seu art. 196, pontua que a saúde é direito de todos e dever do Estado.

Diante do direito à saúde constitucionalmente assegurados a todos, permitir a satisfação do crédito no feito executivo e, como efeito colateral, impedir o exercício da atividade de empresa que presta serviços essenciais para o combate da pandemia não encontra sustentação jurídica, principalmente à luz da interpretação sistemática.

A interpretação do Código de Processo Civil deve levar em conta as peculiaridades imprevisíveis do caso concreto. Os métodos previstos hipoteticamente pelo Código para a satisfação de créditos – penhora eletrônica – não podem, em um ambiente totalmente atípico e imprevisível, ser aplicados sem observar o tipo de atividade desenvolvida pelo executado, tendo como finalidade a promoção do  direito fundamental à saúde, que guarda íntima relação com o princípio da dignidade da pessoa humana. Percebe-se aqui um dever de correspondência, de modo que, se o referido método utilizado para buscar a satisfação do direito de crédito não preserva o direito de todos à saúde, os interesses do exequente devem ser mitigados pelo Poder Judiciário.

Em síntese: entendemos que as consequências negativas da COVID-19 na sociedade são suficientes para obstaculizar o direito do credor à penhora eletrônica, caso demonstrada a relação entre as atividades da executada e o combate à epidemia.

Situações como esta comprovam que o Direito sempre será posto à prova com circunstâncias novas. Assim sendo, a imprevisibilidade intrínseca à vida humana faz com que a completude de qualquer ordenamento jurídico seja meramente ilusória.

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[1] Processo n.º 0261352-40.2018.8.19.0001

[2] LAMEGO, José. Elementos de metodologia jurídica. Coimbra: Almedina, 2018. p. 180.

[3] Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp n.º 1.566.145/RS, Min. Rel. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, Julgamento em 15/12/2015.

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