
Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional uma proposta de emenda à Constituição cujo objetivo declarado é combater os efeitos da acentuada alta de preços dos combustíveis e do gás de cozinha. Ela se propõe a fazê-lo por meio de uma série de medidas válidas apenas para o restante de 2022 e que compreendem, entre outras, a criação de auxílios para caminhoneiros autônomos e taxistas; o aumento do valor do vale gás; o repasse de recursos para garantir a mobilidade urbana de idosos; e o aumento do valor do Auxílio Brasil. No Senado, a PEC foi já aprovada em dois turnos, em processo que congregou duas propostas: a PEC 1/2022 (apelidada de PEC Kamikaze por seus efeitos orçamentários) e a PEC 16/2022. Essas medidas interessam diretamente ao presidente Jair Bolsonaro, que busca aumentar suas chances de reeleição.
Contudo, esse tipo de medida, isto é, “a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública”, é vedada em ano eleitoral (art. 73, §10º da lei 9.504/97). Por essa razão, a PEC é polêmica e suscitou diversos debates na esfera pública. Para se justificar perante essa proibição, o parecer do relator, senador Fernando Bezerra, recorre a uma exceção prevista pela regra mencionada acima, argumentando que o país se encontra em uma “situação de emergência provocada pelo forte aumento no preço dos combustíveis (…)”.
O relator faz questão, ainda, de salientar que essas medidas não são “políticas com fins eleitorais”, mas apenas “respostas necessárias que a população espera do Congresso Nacional” em face do aumento de preços e conclui: “Por esse motivo, o substitutivo começa por reconhecer o estado de emergência para 2022”.
Para além das questões de legitimidade e de orçamento, essas medidas nos colocam a seguinte questão jurídica: essa emenda é inconstitucional?
Discussões sobre emendas constitucionais inconstitucionais têm proliferado nos últimos anos no Brasil e no exterior. Além de limites procedimentais, que não serão discutidos aqui, a literatura contemporânea identifica dois grupos de limites substantivos ao poder de emendar constituições: explícitos e implícitos.
Limites substantivos explícitos são aqueles determinados pelo próprio texto constitucional. O art. 60, §4º da Constituição proíbe mudanças constitucionais tendentes a abolir:
- i. a forma federativa de Estado;
- ii. o voto direto, secreto, universal e periódico;
- iii. a separação dos Poderes;
- iv. os direitos e garantias individuais.
No caso da PEC em análise, temos que a proposta não altera a distribuição de competências entre os entes da federação, nem entre os Poderes do Estado; portanto, não atinge o federalismo nem a separação de Poderes (i e iii). Ela não retira direitos ou garantias individuais; na verdade, até cria benefícios para certos grupos de pessoas. Portanto, não viola o inciso IV. Por fim, ela não atinge o caráter direto do voto, seu segredo, universalidade ou periodicidade. Não se pode dizer, então, que viola o inciso II. O conteúdo protegido pelas cláusulas pétreas parece ileso em face dessa PEC.
Para além dos limites explícitos no texto constitucional, costuma-se reconhecer que o poder de reforma se encontra sujeito a certos limites implícitos: ele não pode substituir a Constituição (v), nem atingir ou destruir sua “estrutura básica” ou “identidade” (vi); além disso, não pode modificar o próprio procedimento definido para aprovar emendas constitucionais (vii).
Evidentemente, não se trata dos casos (v) e (vii). O argumento da estrutura básica, por sua vez, embora bastante difundido, é frágil. Ele consiste em identificar um núcleo substantivo da Constituição e sustentar que ele não pode ser alterado senão por um poder constituinte originário. Não há clareza sobre como identificar esse núcleo – se ele corresponde a características centrais da estrutura estatal existente, como presidencialismo e federalismo; ou a algum modelo de Estado formulado em abstrato, como um Estado “liberal” ou “social” ou, ainda, a certas normas, estruturas e valores que definem algo como uma “identidade nacional”.
Além da vagueza, o problema fundamental dessa perspectiva – aquilo que a torna inadequada para aferir a regularidade de emendas constitucionais – é o fato de que ela cristaliza uma suposta “identidade” constitucional, definida a posteriori e em detrimento do texto da Constituição, e a coloca fora do alcance das decisões democráticas. É, no mínimo, duvidoso que esse argumento se justifique. Autodeterminação democrática implica a possibilidade de revisar criticamente os próprios compromissos normativos, não se prender a um núcleo constitucional essencializado, supostamente legado por gerações passadas, mas cujo conteúdo será, em geral, definido por juízes e juízas do presente.
A PEC, portanto, não é inconstitucional. Essa conclusão, contudo, não elimina o incômodo gerado pela proposta. Há algo errado com ela e isso passa pela percepção de que o recurso a uma emenda constitucional – em vez de uma lei ordinária – e a alegada “situação de emergência” não são mais que uma tentativa de dar uma aura de legalidade a uma medida que, de outro modo, seria claramente insustentável.
Ao mesmo tempo, parece que o direito não nos oferece defesa contra esse movimento: como visto acima, nem as cláusulas pétreas, nem eventuais limites implícitos justificam considerá-la inválida. Idealmente, uma medida desse tipo deveria ser barrada na arena política, mas a estrutura de incentivos criada pela Constituição faz com que os políticos se vejam quase obrigados a aprová-la: como votar contra benefícios sociais em pleno ano eleitoral?
Gostaria de sugerir um caminho jurídico para lidar com a questão, que pode, talvez, ser generalizado para lidar com outras medidas aparentemente “legais” que vêm sendo empregadas por líderes autoritários em todo o mundo, a fim de minar o Estado democrático de Direito. Ele consiste em argumentar que, embora a emenda não seja “inconstitucional”, ela é, em certo sentido, “anticonstitucional” – e a Constituição pode ser defendida também contra esse tipo de medida.
A PEC em questão gera desconforto porque atenta contra os próprios fundamentos de uma Constituição – contra o sentido de ter uma ordem jurídica orientada pelo constitucionalismo. Seu caráter antijurídico independe do conteúdo concreto da Constituição, porque as medidas que ela institui seriam elemento estranho, deletério, em qualquer sistema constitucional democrático. Ela expressa a ideia de que o direito é apenas um instrumento dos poderosos, que pode ser sempre dobrado e manipulado para atingir seus fins. Essa é uma compreensão reducionista e inadequada.
Genericamente, constituições se propõem a garantir as condições para o autogoverno democrático, isto é, para um governo orientado por um processo de formação livre e informada da vontade da população. A regra do art. 73, §10º da Lei 9.504/97 busca exatamente coibir o uso de um mecanismo voltado a distorcer esse processo de formação de vontade: uma espécie de compra de votos.
A PEC 1/2022 busca institucionalizar essa distorção do processo de formação de vontade popular. Isso é incompatível com qualquer concepção viável de democracia, ou seja, com aquilo que se encontra no cerne de uma ordem constitucional. Assim, ela contraria a própria lógica da “constitucionalidade”, do viver sob um regime constitucional – um regime em que o poder é exercido democraticamente à luz de certos direitos fundamentais.
Ela desnatura a democracia e, com isso a própria Constituição: é um movimento inválido dentro dessa prática de autogoverno por meio do direito, porque contrário às regras que a constituem. Portanto, pode e deve ser barrada. Isso implica uma espécie de controle constitucional procedimental: um controle para garantir o funcionamento justo de uma parte essencial do jogo democrático – as eleições. Como órgão encarregado de fazer valer, em última instância, a Constituição, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem a competência para realizá-lo.