Apesar de a disputa presidencial estar indefinida, uma coisa é certa: a nova configuração do Congresso – com o avanço da direita bolsonarista e da turma da Lava Jato, a chegada de negacionistas da ciência, mas também de alguns parlamentares de esquerda vinculados ao PSOL e muito bem votados – obrigará o vencedor da eleição do próximo dia 30 a negociar com bancadas partidárias cujas ideologias e visões de mundo são distintas e, acima de tudo, colidentes.
Com seu avanço, a direita bolsonarista teve aumentada a possibilidade de deter os cargos mais importantes da Câmara dos Deputados e ampliou sua base no Senado. Mesmo assim, ela não terá tanta facilidade como imagina para aprovar o que vier do Executivo, dada a capacidade de ação e reação que marca o perfil de vários oposicionistas eleitos. No caso de Lula, a situação será ainda mais difícil. Por mais que exista um centrão da vida para ser comprado no âmbito do Legislativo, desta vez quem estiver na chefia do Poder Executivo terá de ir muito além dessa aquisição, se quiser governar. Por isso, caso não tenha de saída capacidade de forjar uma coalizão que apoie programas, planos e projetos fundados em critérios minimamente técnicos, o vencedor correrá o risco de seu governo tornar-se refém de debates parlamentares passionais, que tendem a carecer de fundamentação.
Esse é o risco que Bolsonaro ou Lula correrá, uma vez que as paixões podem inviabilizar entendimentos e pactuações. Como disse recentemente o filósofo francês Luc Ferry, lembrando “Democracia e Totalitarismo”, um clássico de Raymond Aron, o problema das paixões é que, por serem irracionais, elas são difíceis de serem controladas. Com paixão, os debates parlamentares tenderão a ser exaltados e veementes, mas fracos no conteúdo. Sem uma discussão com um mínimo de racionalidade, o debate não caminha com base em um senso de compromisso, convertendo-se em “luta de boxe”, diz Ferry.
Pelo perfil dos dois candidatos que disputarão a eleição de 30 de outubro, que mais xingaram e atacaram do que fizeram uma política proativa na campanha do primeiro turno, esta não é uma hipótese a ser descartada. Quase certamente, ambos repetirão essa estratégia, uma vez que ela pode atrair votos. O perigo é que ela gere um cenário de ingovernabilidade e, por consequência, de degradação da própria democracia, seja pela conhecida tendência de Jair Bolsonaro de tentar recorrer à força ou insinuar um golpe todas as vezes em que uma iniciativa sua é derrubada pelo Legislativo ou considerada inconstitucional pelo Judiciário, seja pela possibilidade de seu adversário de tentar recorrer a plebiscitos e consultas públicas no caso de não ter maioria para aprovar seus programas, planos e projetos. Quem ganhar receberá a economia com graves problemas, motivo pelo qual não terá liberdade para fazer o que bem entende, advertiu o professor Armando Castelar Pinheiro, do Instituto Brasileiro de Economia, vinculado à FGV.
Outra questão importante para avaliar o grau de governabilidade do país a partir de 2023 está no regionalismo da política brasileira – mais precisamente, no desequilíbrio dos estados na representação política no Congresso. Os jornais deram muito destaque ao desempenho dos candidatos bolsonaristas ao Senado e à Câmara em São Paulo e Minas – estados que, juntos, formam o maior colégio eleitoral do país. Ao mesmo tempo noticiaram em pé de página a esperada e significativa vitória de Lula no Nordeste. Foi um erro de edição, que ignorou alguns números do IBGE atualizados em 5 de setembro deste ano. Esta região concentra 27,1% do eleitorado e tem 29,4% da Câmara e 33,3% do Senado. Já o Sudeste, onde estão São Paulo e Minas, concentra 42,6% do eleitorado, mas tem apenas 14,8% do Senado e 34,9% da Câmara. No caso específico de São Paulo, o estado tem 1/5 da população e do eleitorado e 1/3 do PIB, mas controla menos de 1/6 da Câmara. Não foi acaso que, um dia após a eleição, o jornal Folha de S.Paulo publicou uma nota sobre um banqueiro não nominado, para quem o desempenho de Bolsonaro nas regiões Sul e Sudeste poderia ser interpretado como “uma vingança das regiões que puxam o PIB” contra os efeitos políticos do desequilíbrio federativo.
Em outras palavras, se os candidatos de Bolsonaro tiveram mais votos, Lula obteve mais assentos no Congresso. Sua vitória no Nordeste foi expressiva numericamente. Além disso, os senadores eleitos por sua coligação no Nordeste são antigos governadores e parlamentares competentes, e não gente despreparada, ignara e raivosa, como é o caso de muitos dos parlamentares eleitos pela direita, o que faz muita diferença na dinâmica do jogo parlamentar.
Lula também foi bem no Norte. A região tem apenas 8% do eleitorado, mas conta com 12,7% dos assentos da Câmara e 25,9%% do Senado. Ou seja, só nesta casa legislativa o Norte tem 1/5 dos assentos. Como uma Proposta de Emenda Constitucional tem de ser aprovada em duas votações na Câmara e no Senado por um quórum de 3/5, na prática isso significa que as bancadas das regiões Norte e Nordeste têm no Senado e na Câmara um poder de veto nas questões relativas a reformas constitucionais.
Há dez anos, o professor José Arthur Giannotti publicou um artigo no Estadão, afirmando que a ação política pode atravessar uma zona cinzenta e passar pelo purgatório, antes de terminar como moral ou imoral. Por isso se tornam imorais os partidos que se apresentam sob a forma de uma encarnação da pureza política, transformando em bandeira eleitoral um veemente mas vago discurso contra a corrupção. Eles tendem a enganar ao esconderem a possibilidade de suas ações se tornarem imorais quando ascenderem ao poder, pois comportar-se-ão de modo tão corrupto quanto seus adversários.
Giannotti escreveu esse artigo refutando as críticas que Lula e o PT fizeram a Fernando Henrique Cardoso e seus dois governos, classificando-os como corruptos. Hoje, é Lula quem vem sendo acusado de corrupção por Bolsonaro. A atualidade do texto de Giannotti é inequívoca, como inequívoco é outro clássico texto seu, em que fala das três premissas que regem a vida política brasileira: 1) o exercício do poder no país se confunde com a gestão de recursos escassos; 2) a distribuição desses recursos cruza a zona cinzenta da moralidade; 3) como política é competição, é preciso criar um espaço de tolerância para certas faltas, sem o que é impossível governar. E concluía dizendo que não há política sem politicagem, dissimulação, troca de favores e indulgências.
Um dos principais espaços em que essas três premissas se assentam é, justamente, o das negociações entre o Executivo e o Legislativo. É na Câmara e no Senado que o vencedor da disputa presidencial terá de lidar com elas. Seja Lula, seja Bolsonaro, o próximo presidente terá de ser capaz de conviver com o dissenso, como é comum na democracia. Ambos passaram pelo Congresso e ascenderam ao Palácio do Planalto. No exercício da Presidência, Lula mostrou essa capacidade. Contudo, entendeu mal a ideia de se criar e cruzar “um espaço de tolerância para certas faltas”, fato esse que levou seu adversário a repetir o mantra de que o PT é corrupto. Pouco inteligente, autoritário e impulsivo, em seu primeiro mandato Bolsonaro demonstrou ser o típico político oportunista, populista e que compra imóveis com dinheiro vivo – ou seja, o político que rouba, mente e se emporcalha, mas que, espertalhão e dissimulado, apresenta-se sempre como alguém que toma banho a cada apartamento adquirido.
Independentemente de quem vencer a eleição, hoje é difícil cravar se as relações entre o Executivo e o Legislativo terminarão em luta de boxe ou em pactuação. De que modo o próximo inquilino do Planalto atuará no espaço das negociações entre o Executivo e o Legislativo, para ver aprovados seus projetos, seus programas e seus planos?