
Pessoas de esquerda “não merecem ser tratadas como se fossem pessoas normais”, disse o presidente da República em janeiro de 2020, numa solenidade no Palácio do Planalto. Ele já havia feito comentários depreciativos como esse em 2019 e os multiplicou após 2021 e, agora, na campanha eleitoral de 2022.
A afirmação é reveladora. Mostra uma visão política que rejeita ao seu oponente eleitoral a condição de participante de uma democracia, com direito de participar de um pleito em condições de igualdade. No mesmo sentido, quando criticou o presidente do TSE e os tribunais superiores enquanto instituição, o candidato à reeleição também deixou claro que nega a legitimidade do regime político concebido pela Constituição que jurou cumprir, ao assumir o poder. Em sua visão, as pessoas que “não merecem ser tratadas como se fossem normais” não são consideradas como pertencentes ao povo.
Na prática, isso traduz uma aversão às conquistas políticas, pluralistas e identitárias propiciadas pela Constituição, há 34 anos. Aponta um desprezo às minorias, ensejando que elas têm de ser incorporadas aos valores das maiorias. No limite, a ação política do bolsonarismo busca a unidade da sociedade – “quem não está conosco está contra nós”, já dizia o político italiano da década de 1920 que tinha como lema Deus, pátria e família, aceitando como iguais apenas aqueles que expressam visões de mundo e formas de vida semelhantes à sua. Prometendo “reerguer a nação”, exigia a adesão incondicional ao seu poder e defendia a eliminação da dissidência. Se no Estado liberal para ser cidadão bastava respeitar as leis, no Estado fascista para ser cidadão é necessário seguir a vontade, as determinações e a ideologia do governante.
Radicalização, intolerância, desqualificação moral do outro e incapacidade de aceitar quem diverge como sujeito de direito – características básicas do bolsonarismo – trazem à tona um professor italiano de literatura contemporânea e um constitucionalista alemão do século passado que, em um período de ascensão das massas à vida política, crise econômica do capitalismo e tensão social, criticou o normativismo formal e opôs um Estado forte ao Estado liberal. Segundo ele, o Estado só se mantém como poder soberano se for capaz de esmagar revoltas e resistências. Defendia, ainda, a integração do povo pelo Estado e a concentração dos mecanismos de poder no Executivo.
O professor italiano é Antonio Scurati, autor de três livros – “O filho do século”, “O homem da Providência” e “M, os últimos dias da Europa” – que apresentam um competente retrato de Mussolini e do fascismo. Em tom de romance e com sólida fundamentação histórica, a trilogia mostra como o clima de medo e sua conversão em ódio foi um instrumento de tomada do poder instituído; como as liberdades democráticas foram sendo revogadas progressivamente; e como uma visão de mundo binária e rasteira levou a um período histórico em que o Duce – o condutor da nação – decidia e todos obedeciam sem discutir. As semelhanças entre aquele período na Itália e o que está ocorrendo no Brasil são assustadoras.
Naquele tempo, como hoje, a ênfase à religião, ao nacionalismo, aos valores de família e à tradição era usada para forjar uma identidade comum. “O fascismo é uma religião e o verbo sagrado de todas as religiões é, desde sempre, um só: obedecer!”, diz Scurati, mostrando o modo de pensar de Mussolini, ao lado dos “broncos, medíocres, obtusos e ignorantes” que o cercavam. “Ou conosco ou contra nós. O domínio do fascismo é completo, a política é um estado de guerra permanente, guerrear significa abater os inimigos e o Duce do fascismo, agora, tem toda a força” – prossegue o autor. “Trata-se de estrangular ainda na garganta o resmungo de milhões de murmuradores em potencial, antes que ele chegue aos lábios. Aliás, antes até que invada a mente”, afirma Scurati, após mostrar como a Itália foi marcada, em razão da “plena utilização total da força, por uma ascensão aos extremos da violência, breve, brutal, resolutiva, dividindo irrevogavelmente o mundo entre vencedores e derrotados, vivos e mortos”.
Se a descrição feita por Scurati é fascinante, as ideias do jurista alemão são apresentadas de modo engenhoso. Trata-se de Carl Schmitt (1888-1985), para quem uma comunidade nacional se organiza com base no interesse comum frente a outras, o que dá origem ao Estado e ao direito. Afirmando que o Estado pressupõe um conceito de política, ele define o Estado como agrupamento humano que se converte numa associação política a partir da decisão última determinante de quem é amigo ou inimigo, criando uma substância constitucional que é o imperativo do interesse nacional. Enquanto o constitucionalismo liberal partia da ideia do cidadão como portador de direitos, o que assegura juridicamente suas respectivas diferenças, para Schmitt – que participou do Terceiro Reich alemão, entre 1933 e 1936 – o Estado se alicerça na homogeneidade de seus integrantes, o que leva a uma identidade substancial. Assim, uma Constituição não é um encadeamento lógico de normas abstratas, mas uma unidade sistemática com base nessa identidade substancial.
Para o constitucionalismo liberal a ordem jurídica baliza debates e deliberações. Já o constitucionalismo de Schmitt está associado às ideias de ação, de comando. Segundo a tradição liberal, a ordem jurídica resulta de um poder constituinte originário. Ou seja: decorre da conexão de dependência que resulta da validade de uma norma que foi produzida de acordo com outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por uma outra – e assim por diante. Na visão de Schmitt, a ordem jurídica provém não da racionalidade e da impessoalidade, mas de uma autoridade pessoal: direito é decisão e poder.
Desse modo, um povo amorfo adquire forma e unidade quando o governante conduz o processo legislativo como intérprete da vontade geral. Com esse argumento, Schmitt descarta um dos primados do constitucionalismo liberal – o controle da constitucionalidade das leis pela Justiça – sob o argumento de que ele retiraria a autoridade suprema do chefe de Estado e, portanto, da legítima vontade do intérprete do povo – o governante.
É nesse cenário que Schmitt discute a relação amigo vs. inimigo como essência da política. O inimigo não é quem precisa ser eliminado por qualquer motivo. Na medida em que está no mesmo plano que o amigo, este se confronta com aquele com o objetivo de se conscientizar de seus limites. Como “o inimigo é a própria questão como configuração, devo confrontar-me com ele em luta para conquistar minha própria medida, meus próprios limites, minha própria configuração”, diz o autor. Quando vê opositor como inimigo, ele converte o jogo político na desqualificação dos adversários. Inimigo não é oponente pessoal, por quem se tem ódio, mas “um conjunto de homens que se contrapõe a um conjunto semelhante”. Assim, o manejo da distinção entre amigo e inimigo é um dos traços da soberania, conceito que ele relaciona a situações excepcionais.
Uma vez que dispõe de poder ilimitado e não está sujeito a determinações jurídicas que restrinjam suas ações, soberano é quem decide altercações jurídicas e estado de exceção. É quem distingue uma situação de normalidade (expressa pelo fato de o comportamento dos cidadãos estar regido por normas) e uma situação de exceção (que implica a prevalência da política por meio da força). É nesta situação que o soberano desponta, impondo o que julga ser necessário – de restrições de direitos à supressão de liberdades.
O fascismo primou por sua visão de mundo rasteira. Ainda que a imagem de Schmitt tenha sido marcada pelo nazismo, a quem serviu por três anos, a discussão por ele proposta é sofisticada e ele foi um intelectual respeitado por pensadores democráticos do porte de Jürgen Habermas e Norberto Bobbio.
De algum modo, as duas posições autocráticas estarão em jogo no pleito do dia 30. A diferença entre elas está no fato de que, enquanto Bolsonaro se comporta como bufão, fala bobagens e faz ameaças, a exemplo de seu par italiano, Schmitt já teve dias de influência no Brasil – e eles ocorreram nos tempos da ditadura militar. Basta ler a justificativa de três Atos Institucionais que suprimiram liberdades, direito de defesa e independência da Justiça. O primeiro ato foi escrito por Francisco Campos e os outros por seu assistente, Carlos Medeiros da Silva – ambos conhecedores da obra de Schmitt.
Editado em abril de 1964, o AI-1 dizia ser
“indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução. A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação (…). A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma”.
Já o AI-2, de outubro de 1965, afirmava que o
“Poder Constituinte não se exauriu, tanto que é próprio do processo revolucionário, que tem de ser dinâmico para atingir os seus objetivos. (…). A revolução está viva e não retrocede (…). Para isto precisa de tranquilidade. Agitadores de vários matizes (…) teimam, entretanto, em se valer do fato de haver ela reduzido a curto tempo o seu período de indispensável restrição a certas garantias constitucionais, e já ameaçam e desafiam a própria ordem revolucionária, precisamente no momento em que esta (…) procura colocar o povo na prática e na disciplina do exercício democrático. Democracia supõe liberdade, mas não exclui responsabilidade nem importa em licença para contrariar a própria vocação política da Nação”.
Por fim, baixado em dezembro de 1968, o AI-5 apresentou justificativas para o fechamento do Congresso, cassação de deputados e aposentadoria de ministros do STF,
“atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação (…) estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la; (…) torna-se imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução; (…) esses fatos perturbadores da ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição”.
Essas afirmações não escondem sua inspiração schmittiana. Por isso, se a possibilidade de continuidade bolsonarista tira o sono, argumentos como os que já foram invocados pelo estamento militar causam pesadelo.