Pandemia

A desistência de ações judiciais em troca do auxílio emergencial

Por que a contrapartida exigida pela União não viola a Constituição

icms, Estados pedem ao Congresso prorrogação do auxílio renda emergencial, suspensão do teto de gastos e do pagamento de dívidas
Crédito: Marcos Oliveira/Agência Senado

Publicada no último dia 27 de maio, a Lei Complementar nº 173/2020 estabeleceu diversos condicionamentos para que estados, Distrito Federal e municípios recebam o auxílio emergencial a ser pago pela União para amenizar a crise fiscal provocada pela pandemia. Entre eles, destaca-se o seguinte: para fazerem jus ao repasse, devem renunciar ao direito sobre o qual se fundam eventuais ações judiciais contra a União.

Como noticiado pelo JOTA, a maioria dos estados e municípios abriram mão dos processos judiciais em atendimento à previsão legal, ao mesmo tempo em que a Rede Sustentabilidade ajuizou a ADI nº 6.442, sustentando que a exigência dessa contrapartida violaria os seguintes preceitos:

1) o princípio federativo (art. 1º, caput, da CF);

2) o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, inciso XXXV, da CF);

3) o princípio do devido processo legal (art. 5º, incisos LIV e LV, da CF);

4) o princípio da supremacia e indisponibilidade do interesse público; e

5) a competência originária do STF para dirimir conflitos federativos (art. 102, inciso I, alínea f, da CF).

Em síntese, o partido autor sustenta que as contrapartidas estabelecidas no art. 2º, § 6º, e no art. 5º, § 7º, da LC nº 173/20 não possuiriam natureza financeira e limitariam o direito de ação dos estados, DF e municípios, retirando o direito dessas unidades de se defender em juízo, subordinando-as ao interesse jurídico (e econômico) da União, e, portanto, violando o pacto federativo.

No entanto, cumpre afastar qualquer violação à Constituição por parte das normas impugnadas. Em primeiro lugar, porque não excluem da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, o que sim seria vedado pela CF.

Na verdade, os dispositivos se limitam a estabelecer uma condição para adesão ao Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus proposto pela União, sendo certo que tal adesão por parte das unidades federadas é totalmente opcional, não há obrigação, mas mera faculdade. Caso os entes prefiram seguir com as discussões no âmbito judicial, poderão fazê-lo sem quaisquer problemas.

O art. 5º, § 7º, da LC nº 173/20 prevê que o auxílio financeiro da União só será pago ao estado, DF ou município que tenha previamente renunciado ao direito sobre o qual se funde eventual ação ajuizada que tenha como causa de pedir, direta ou indiretamente, a pandemia da Covid-19.

A delimitação se encaixa perfeitamente no escopo da norma e visa a evitar o bis in idem, impedindo que um ente federado venha a receber recursos em duplicidade. Não seria admissível que a mesma receita já paga na via administrativa viesse também a ser paga na via judicial.

A estipulação não é leonina e, além de razoável, é necessária para conferir segurança jurídica, economicidade e eficiência, sobretudo diante da situação de calamidade pública e de recursos escassos.

Por seu turno, a renúncia estabelecida no art. 2º, § 6º, da LC nº 173/20 é condição para que o saldo devedor de valores anteriores a 1º de março de 2020, e eventualmente não pagos em razão de liminar em ação judicial, sejam incluídos no regime de suspensão das dívidas criado pelo Programa.

Como consequência da adesão a essa proposta da União, tais valores serão apartados e incorporados aos respectivos saldos devedores somente em 1º de janeiro de 2022 e, além disso, serão objeto de simples correção monetária, sem a incidência de juros, multas, outros encargos pela mora ou inclusão no cadastro de inadimplentes, conforme o art. 2º, § 1º, inciso I, e § 2º, da LC nº 173/20.

Como se vê, sem ferir o acesso à justiça, as previsões legais tão somente respeitam o já reconhecido princípio da unidade da jurisdição[1], na linha de previsões análogas previstas no ordenamento jurídico pátrio com vistas a evitar a concomitância de instâncias administrativa e judicial sobre o mesmo objeto, por razões de economia processual e eficiência.

Por exemplo a contrario sensu, citem-se art. 38, parágrafo único, da Lei nº 6.830/80 (Lei de Execução Fiscal) e o art. 126, § 3º, da Lei nº 8.213/91 (Lei dos Planos de Benefícios da Previdência Social) que preceituam a prevalência automática da via judicial e perda de objeto do processo administrativo que verse sobre a mesma relação jurídica base.

Assista ao novo episódio do podcast Sem Precedentes sobre coesão do STF ao manter inquérito das fake news:

Ao mesmo tempo, já em segundo lugar, a condição estabelecida nas normas contestadas (de renúncia ao direito sobre o qual se fundam ações judiciais) equivale a uma proposta da União de “transação”, pela qual os interessados fazem concessões mútuas para terminarem uma controvérsia, o que também atende a objetivos de redução da litigiosidade junto ao Poder Judiciário, que tende a se acentuar em razão da pandemia. Trata-se de claro meio de autocomposição dos conflitos, há muito previsto no art. 840 do CC.

A partir do momento em que é lícito à Administração Pública se valer dos meios alternativos de solução de conflitos (MASC) para dirimir litígios – vide o art. 174 do CPC, o art. 1º, § 1º, da Lei nº 9.307/96 (Lei de Arbitragem) e os arts. 1º, 35 e 37 da Lei nº 13.140/15 (Lei de Mediação) –, a fortiori, também resta permitida a autocomposição entre os entes federados, sem necessidade de intervenção judicial para homologar o acordo alcançado nesse caso.

Inclusive, por expressa previsão do art. 35, § 4º, da Lei de Mediação, a adesão à transação implicará renúncia do interessado ao direito sobre o qual se fundamenta a ação ou o recurso, eventualmente pendentes, de natureza administrativa ou judicial, no que tange aos pontos compreendidos pelo objeto da resolução administrativa.

Vale enfatizar que tais meios consensuais de resolução de conflitos não se restringem a lides sobre direitos patrimoniais disponíveis, abrangendo também os direitos indisponíveis que admitam transação (art. 3º da Lei de Mediação).

De fato, não há que se confundir indisponibilidade com intransigibilidade, sendo certo que esta última depende de previsão legal expressa, como era o caso do art. 17, § 1º, da Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), que vedava a transação, acordo ou conciliação nas ações de improbidade administrativa, na redação anterior à Lei nº 13.964/19. Repita-se: só por lei se pode excluir a possibilidade de transação.

Por isso, por exemplo, é reconhecida a possibilidade de parcelamento dos tributos, que são indisponíveis. A propósito, para aderir aos programas de parcelamento ordinário de débitos tributários ou programas especiais de recuperação fiscal (Refis), os particulares também precisam atender a condições semelhantes às impugnadas na ADI nº 6.442, inclusive a renúncia ao direito sobre o qual se funda a ação judicial.

Recorde-se que a Lei nº 11.941/09 (“Refis da crise”) trouxe tal exigência de renúncia em seu art. 6º e leis anteriores já estabeleceram o mesmo, como art. 4º da Lei nº 10.684/03 (PAES).

Sobre o ponto, o STJ tem posicionamento firme no sentido de que a adesão a tais programas de parcelamento constitui faculdade do contribuinte e é condicionada à renúncia ao direito de discutir a dívida (AgRg no REsp 1077417/PR). Não há por que ser diferente a lógica para que os entes federados renegociem suas dívidas em relação à União.

Assim, ante a legítima e possível autocomposição entre União, estados, DF e municípios, não há que se falar em violação à competência originária do STF para dirimir conflitos federativos (art. 102, inciso I, alínea f, da CF), já que essa não é instância exclusiva para resolver controvérsias entre os entes federados.

Além disso, em terceiro lugar, os argumentos até agora expostos também servem para afastar a alegada lesão ao princípio do devido processo legal (art. 5º, incisos LIV e LV, da CF).

Pelo contrário, como se acaba de ver, as normas vêm atender tal preceito constitucional, na medida em que estabelecem legalmente um procedimento para o recebimento dos auxílios financeiros e refinanciamento de dívidas dos demais entes para com a União, evitando qualquer favorecimento pessoal ou político-partidário.

Na sequência, em quarto lugar, quanto ao princípio federativo, cumpre recordar que o seu pressuposto é o princípio da lealdade à federação, que se traduz na obrigação de todos os entes federados de manter relações intergovernamentais colaborativas e harmoniosas.

A lealdade federativa impõe, de parte a parte, a proibição do comportamento contraditório, a obrigação de evitar o abuso do direito e a abstenção dos entes federativos em provocar conflitos. Trata-se de dever de conduta pautado na preservação da federação.

No caso em juízo, concretamente, isso significa que, de um lado, a União deve atuar em prol de todos – tal como fez ao aprovar a LC nº 173/20 com o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus –, e, do outro lado, que os entes devem atender às coordenadas lançadas União para a cooperação recíproca de todos, respeitando as condições fixadas para o repasse de verbas.

Como a LC nº 173/20 atende a esse objetivo conjunto, resta evidenciado que a condição de renúncia não importa qualquer violação ao princípio federativo. De não ser assim, a prevalecer a argumentação da ADI nº 6.442, é que a federação inteira estaria em risco, pois os entes ficariam livres para tumultuar a alocação de recursos definida no Anexo I da LC nº 173/20, criando um federalismo de “fachada”, no qual os entes federados poderiam tudo, sem contrapartidas.

Essa mesma razão conduz, já em quinto lugar, à conclusão de que não há violação ao princípio da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, para cuja ocorrência seria necessário que a LC nº 173/20 contrariasse o interesse compartilhado entre todos os entes da federação, o que não é o caso.

A LC nº 173/20 atende ao interesse da federação, tendo criado um programa para todos. Afastar a exigência de renúncia é que significaria atender interesses particularísticos desprovidos de amplitude coletiva, violando o interesse público.

A ADI nº 6.442 será uma excelente oportunidade para o STF firmar esse importante posicionamento. Em liminares monocráticas nas ACO nº 2.805, nº 2.810 e na ADPF nº 382, todas da ministra Carmen Lúcia, tal requisito de renúncia foi afastado.

Nesses casos, a exigência de renúncia constou somente de decreto, que depois foi revogado, acarretando a perda superveniente de objeto das ações, sem que as cautelares tivessem sido ratificadas em plenário.

Assim, realizado o distinguishing, esses precedentes não se aplicam ao caso da ADI nº 6.442, em que a previsão conta com status legal, de norma primária e não meramente regulamentar, e em harmonia com o ordenamento.

 


[1] Também conhecido como princípio da jurisdição una, sistema inglês ou de controle judicial. Em oposição ao sistema francês ou de contencioso administrativo, não adotado no Brasil.

Sair da versão mobile