Equilíbrio fiscal

Teto de gastos: especialistas não veem espaço para flexibilização

Única saída seria acionamento de gatilhos, que ainda assim conta com problemas de redação

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O ministro da Economia, Paulo Guedes | Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
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Agosto costuma ser o mês de discussões orçamentárias acaloradas em Brasília. A cada ano, o governo tem até o dia 31 de agosto para enviar o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) ao Congresso Nacional. Neste ano, a crise econômica causada pelo novo coronavírus pressiona o governo a ampliar o gasto público em obras de infraestrutura. E surge a questão: até onde é possível flexibilizar a regra do teto de gastos? No modelo atual regido pela regra, há pouco – ou quase nenhum – espaço orçamentário para gastos discricionários, como investimentos.

A pressão se intensifica e as declarações contrárias e favoráveis ao teto de gastos se assomam. Mas, do ponto de vista legal, auditores, economistas e ministros acreditam que, no arcabouço jurídico atual, não há espaço para flexibilização do teto de gastos. Eles avaliam que, apesar da tentativa do governo de tentar gastar fora do limite estabelecido na Constituição, há riscos para abertura de créditos extraordinários ou uso de restos a pagar para financiar obras públicas ou programas que não sejam urgentes e imprevisíveis.

A recente intenção do governo de abrir crédito extraordinário de R$ 5 bilhões para obras de infraestrutura pode causar riscos ao governo tanto no Tribunal de Contas da União (TCU) como no Supremo Tribunal Federal (STF).

Isso porque especialistas em direito financeiro afirmam que a Constituição Federal é clara ao estabelecer que o crédito extraordinário só pode ser aberto para atender despesas imprevisíveis e urgentes, o que não seria o caso de obras públicas.

O tema já foi apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4048, relatada pelo ministro Gilmar Mendes, que questionava uma Medida Provisória editada pelo ex-presidente Lula, que abriu crédito extraordinário de R$ 5 bilhões para o Executivo e a Justiça Federal em 2007.

Na ocasião, o Supremo interpretou que, além dos requisitos de relevância e urgência (artigo 62), a Constituição exige que a abertura do crédito extraordinário seja feita apenas para atender a despesas imprevisíveis e urgentes.

“Ao contrário do que ocorre em relação aos requisitos de relevância e urgência (art  62), que se submetem a uma ampla margem de discricionariedade por parte do Presidente da República, os requisitos de imprevisibilidade e urgência (art. 167, § 3º) recebem densificação normativa da Constituição”, pontuou a ementa da ADI.

Com esse precedente, que já está sendo lembrado também por ministros do TCU, especialistas acreditam que o presidente Jair Bolsonaro pode ter problemas com o  STF caso leve à frente a ideia de abrir crédito extraordinário para financiar obras públicas.

“O crédito para investimento será muito questionado pelo STF e TCU, pois não faz sentido abrir crédito para investimento público e enfrentar uma calamidade pública”, disse o economista Leonardo Ribeiro, analista do Senado e especialista em finanças públicas.

“Essa necessidade que o governo vê de investir está relacionada a recuperar a economia, e não simplesmente enfrentar o estado calamidade pública na saúde, por exemplo”, completou o economista.

Uso de restos a pagar

A procuradora Élida Graziane, Ministério Público de Contas que atua perante o Tribunal de Contas de São Paulo (TCESP), avalia que o governo também não pode executar recursos que sobrarem de créditos extraordinários abertos este ano para 2021, como restos a pagar.

Essa manobra, segundo ela, quebraria um dos requisitos fundamentais para uso de créditos extraordinários, que é o de urgência. “Se foi aberto este ano, é preciso usar em 2020”, interpretou a procuradora.

O economista Leonardo Ribeiro lembra que, além disso, o governo não pode alterar o objetivo do gasto aberto por crédito extraordinário e destiná-lo para outra rubrica. “A legislação obriga que a administração fique presa ao objetivo do crédito”, explicou.

O diretor-executivo do Instituto Fiscal Independente (IFI) do Senado Federal, Felipe Salto, avalia da mesma maneira. Para ele, a sobra do recurso destinado a algum programa para uso em 2021 em outra finalidade só pode ser feita por meio de uma reclassificação, permitindo a troca de finalidade do gasto. E ainda assim, contabilizada dentro do teto.

“Não há que se falar em sobras de dotações quando o país está caminhando para um déficit de R$ 877,8 bilhões, de acordo com as nossas projeções, na IFI. Se há essa ‘sobra’ na dotação de algum programa criado para combater a pandemia e/ou seus efeitos econômicos, gastar esse orçamento em outras finalidades não pode ser feito ‘por fora’ do teto”, avaliou Salto.

Como exemplo, ele cita o programa Bolsa Família. Com o auxílio emergencial, o governo optou que beneficiários do programa substituam a renda mensal pelo benefício de R$ 600. Com isso, até julho de 2020, abriu-se uma folga contábil na dotação do Bolsa Família de R$ 9,5 bilhões.

Felipe Salto pondera, porém, que isso não quer dizer que haja um recurso no caixa da União aguardando para ser destinado a outras finalidades. “Trata-se apenas de uma autorização de despesa que não será utilizada”, apontou.

Uma recente decisão do TCU (acórdão 2026/2020) traz mais dúvidas jurídicas no remanejamento de recursos. No início de agosto, a Corte de Contas recomendou que o governo utilize o espaço fiscal gerado por cancelamento de dotações apenas em: despesas relacionadas ao enfrentamento da calamidade e de seus efeitos sociais e econômico e; despesas que sejam da mesma área da dotação cancelada ou substituída.

“A deliberação do TCU, portanto, vai na contramão do que pretenderia o governo, isto é, utilizar os créditos excedentes para investimentos em infraestrutura”, apontou o IFI.

Gatilhos

A única saída possível para o rompimento do teto de gastos seria o acionamento dos gatilhos previstos no artigo 109 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o que não seria visto como uma flexibilização do teto, mas sim um estouro constitucional.

Estudo publicado na quarta-feira (19/8) pelo IFI destaca que, caso os gatilhos fossem acionados, abriria-se espaço de R$ 40 bilhões para gastos no orçamento em 2021 e 2022, representando 0,5% do PIB.

Estão previstos nos gatilhos a proibição de criação de cargos que implique em aumento de despesa, realização de concursos públicos, alteração de estrutura de carreira, aumento de salário a servidores, criação de despesa obrigatória e reajuste de despesa obrigatória acima da inflação.

Ainda assim, há dificuldades para o acionamento dos gatilhos, uma vez que no texto da emenda constitucional, o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) não poderia conter o orçamento acima do teto de gastos.

Felipe Salto avalia, porém, que não seria necessária uma PEC para alterar o texto. Bastaria uma consulta prévia ao Tribunal de Contas da União e ao Supremo na tentativa de dar segurança para o governo estourar o teto e acionar os gatilhos.

Com o acionamento dos gatilhos, Leonardo Ribeiro lembra, porém, que não há limites para o gasto com obras públicas, o que pode representar um risco para o equilíbrio fiscal. “Despesas obrigatórias não poderão ser criadas, mas a regra não limita a criação de despesas discricionárias”, ponderou o economista.