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‘Sem coordenação, fila única poderia trazer mais problemas que soluções’

Avaliação é do advogado e professor do Insper Beto Vasconcelos, que foi entrevistado junto com Davi Tangerino

“Sem coordenação entre os entes federativos, a fila única poderia trazer mais problemas que soluções.” A avaliação é do advogado Beto Vasconcelos, professor do Insper e ex-subchefe para Assuntos Jurídicos da Presidência da República. Ele participou, junto com o criminalista Davi Tangerino, de uma entrevista ao JOTA sobre aspectos administrativos e penais da pandemia de coronavírus.

O mecanismo, que unificaria a fila de espera para tratamento da Covid-19 em unidades públicas e privadas de saúde, configura “o maior grau possível de intervenção do Estado na gestão da rede particular”, segundo o advogado. “Isso é possível juridicamente? A Constituição não delimitou quais são os modelos dessa requisição. A legislação estabeleceu condições, como perigo iminente, público, e a dimensão da necessidade, para fundamentar um ato tão drástico quanto esse, é a demonstração fática de que uma fila única seja necessária.”

De acordo com Vasconcelos, a pergunta mais relevante a ser feita é uma fila única faz sentido e se é pertinente em termos de motivação e finalidade alcançável. Vasconcelos avalia que há descoordenação entre entes federativos, sobretudo na comunicação da União federal para estados e municípios.

“Como estamos falando de bens escassos, se não houver excelência na condução de um processo como esse o efeito pode ser o contrário”, diz. “Mesmo onde havia eventualmente boas gestões locais e regionais para solução do problema, ao se impor um modelo único, todo o processo de atendimento local é desordenado se não houver competência institucional, se não houver cooperação.”

Infrações penais

De acordo com Tangerino, vários tipos penais poderiam ser, em tese, cogitados para ser usados na pandemia.

Os crimes de lesão corporal, tentativa de homicídio e homicídio em virtude da transmissão do vírus são alguns deles. “Transmitir Covid-19 é ato idôneo para lesão corporal ou mesmo morte. Mas qual é a dificuldade de se construir uma imputação com base nesses artigos? Demonstrar o nexo de causalidade. Muito difícil mostrar que foi o vírus da Laura que infectou João, Maria ou Pedro. Eu ficaria muito surpreso de imputações nesse sentido”, explicou o advogado,que também é professor da FGV Direito SP e da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

Segundo ele, no entanto, “o Direito Penal está imunizado, digamos, contra essas dificuldades, criando outras modalidades de tipo penal, que são os chamados crimes de perigo. Nesses casos, você não precisa mais demonstrar o nexo de causalidade, sendo suficiente mostrar que houve um incremento doloso, na maioria dos casos, ao bem jurídico protegido, que é a saúde pública. Chegamos aí ao artigo 267, de causar epidemia, e o 268, ambos do Código Penal, de infração a alguma medida sanitária relacionada à epidemia.”

O artigo 267 foi pensado, de acordo com Tangerino, mais para quem “cria uma arma viral ou bacteriana e, dolosamente, bota isso em curso”. Mas também seria possível enquadrar nesse tipo penal uma pessoa que propaga a Covid-19. “O exemplo mais polêmico poderia ser o do próprio presidente Jair Bolsonaro, que conclama manifestações, aglomerações, porque está mobilizando milhões de pessoas, em volume tal que seria equivalente a causar epidemia”, afirmou.

Para o cidadão comum, o que se enquadraria com mais facilidade seria o crime previsto pelo artigo 268. Ele pode ser aplicado para uma pessoa que desrespeita medida de isolamento, determinada por médico ou agente sanitário, ou para quem desobedecer a quarentena, por exemplo, ao abrir um negócio não essencial.

Fake news

Perguntados sobre a apresentação, em inúmeras localidades, de projetos de lei destinados a criminalizar a produção e disseminação de notícias falsas, os especialistas reagiram com ceticismo. “A solução não estará na restrição da liberdade de expressão”, disse Vasconcelos.

Para Tangerino, “não devemos avançar num projeto de criminalização de fake news porque inevitavelmente esse tipo penal vai ser horrorosamente aberto e, portanto, muito sujeito à interpretação ad hoc, muito pontual, do que são fake news ou não”.

A resposta para as fake news, na visão dele, é complexa, e está muito mais ligada à engenharia de comunicação. Tangerino considera muito mais positivas a iniciativa do WhatsApp de restringir o número de possibilidade de encaminhamentos ou as ideias de a própria rede social marcar conteúdos como provável informação falsa.

Vasconcelos entende que, no curto prazo, ações coletivas, com pedido de indenização por danos causados pelas informações inverídicas deveriam ser mais exploradas no combate ao que chamou de “epidemia de fake news”.

“Outra ponta dessa história, que talvez tenha sido pouco utilizado em matéria penal, mas sobretudo em matéria civil, é a ponta reparatória, que deve constituir também solução de curto prazo. São mecanismos rápidos e eficazes de condenação e indenização dos responsáveis por financiamento, produção e propagação de mentiras”, defendeu. Vasconcelos avalia que esses instrumentos podem e devem ser utilizados por particulares e por órgãos públicos que têm o dever da tutela coletiva.

Resposta estatal à crise

Para Vasconcelos, o fato de a política pública de restrição sanitária ter sido encampada por governadores e prefeitos, mas não plenamente pela União, além de as respostas econômicas à crise serem “pouco efetivas”, deixa o Brasil “com o pior dos mundos”.

“Nós precisamos rapidamente de uma reorganização de resposta a esse cenário. No campo do Direito Administrativo, ha vários instrumentos que permitem e várias determinações constitucionais que impõem isso. Espero que sejamos capazes de cobrar nossos governantes, a sentarem numa mesa composta por União, estados e municípios, sociedade civil e academia, para que se possa alcançar um melhor resultado diante dessa crise aguda”, afirmou.

Veja a íntegra da entrevista:

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