Covid-19

Se governo não divulgar o cronograma de vacina estará violando a Constituição?

Assessoria do ministério da Saúde informou que dado não seria divulgado. Após repercussão, Queiroga recuou

cronograma de vacinação
Marcelo Queiroga, ministro da Saúde / Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Ao não divulgar o cronograma de vacinação, o governo federal fere a Constituição?

A questão ganhou força na última semana, quando a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde informou que não faria mais a divulgação da previsão de doses de vacinas para Covid-19 que espera receber mensalmente – informação que deveria ser coletada diretamente com os fabricantes, de acordo com o que foi confirmado ao jornal O Estado de S. Paulo. Após repercussão negativa, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, negou que o cronograma seria omitido. Nesta quarta-feira (14/4), disse que o Brasil receberá 15,5 milhões de doses da Pfizer entre abril e junho, duas milhões a mais do que o previsto no cronograma do site oficial (datado de 19/3).

De acordo com Fernando Aith, professor da Faculdade de Saúde Pública e diretor geral do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (USP), além de ser um “absurdo em termos de gestão”, se o governo não informar a previsão de entrega das vacinas estará cometendo uma violação ao seu dever constitucional em coordenar o Sistema Único de Saúde (SUS), especialmente em relação às emergências de saúde pública.

Para ele, “o governo federal estaria se isentando da sua responsabilidade” e não estaria cumprindo os artigos  37º, 196º e 198º da Constituição Federal de 1988,que preveem:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: 

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:   (Vide ADPF 672)

III – participação da comunidade.

O professor explica que a importância da transparência sobre a previsão de vacinas é para que exista “a capacidade de controle e responsabilização das autoridades públicas”.

“É preciso saber o que eles fizeram e o que eles estão planejando fazer para poder cobrar. Se eles não vão mais informar isso, não saberemos mais nem se eles estão fazendo alguma coisa ou se existe alguma possibilidade de saída dessa crise”, diz Aith.

“Uma decisão assim pode comprometer de forma muito grave o Programa Nacional de Imunização, porque ela não permite que estados e municípios se organizem e se programem em termos de continuidade da vacinação conforme os grupos prioritários”, avalia Aith. Explica, ainda, que “na medida em que não se tem uma previsão e fluxo de chegada da vacina ao longo dos meses e anos é impossível de se fazer um planejamento e uma execução adequada do Programa.” 

Thomas Conti, professor de economia no Insper e CEO da aeD Consulting, acredita que uma decisão como essa é “muito preocupante” e “repercute sobre economia na medida em que dificulta a previsibilidade do cronograma de vacinação e a tomada de decisão, tanto do cidadão quanto dos agentes de mercado”.

“Não seria a primeira vez, infelizmente, que medidas de falta de transparência foram tomadas”, pontua Conti.

Ele lembra que em junho de 2020, os veículos de comunicação G1, O Globo, Extra, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo e UOL formaram parceria para a criação de um consórcio de imprensa para trazer mais transparência nos dados relacionados à Covid-19 no Brasil. Em janeiro deste ano, começaram a divulgar os dados sobre a vacinação.

Conti também menciona que no dia 23 de março, o Ministério da Saúde alterou os campos de preenchimento obrigatório no Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe), causando uma queda artificial no registro de óbitos causados pelo novo Coronavírus.

A opinião é corroborada por Gustavo Binenbojm, professor de Direito Administrativo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Ele destaca que é dever constitucional da Administração Pública prestar informações de interesse público.

“A sociedade tem direito a saber a programação da vacinação para poder se organizar na sua vida social e econômica, além do interesse coletivo na preservação da vida e da saúde. O dever constitucional de transparência impõe a divulgação dessas informações, ainda que elas tenham que ser constantemente atualizadas”.

Lei 14.124/2021

Para além dos princípios de transparência e as questões constitucionais, há debate em torno de se a retirada da divulgação do cronograma de vacinação poderia infringir a  Lei nº 14.124, de 10 de março deste ano. A regulação prevê, em seu artigo 14º, que a administração pública deve disponibilizar, no site oficial da internet, informações atualizadas sobre o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, que deve conter, no mínimo:

a relação do quantitativo de vacinas adquiridas, com indicação do laboratório de origem, custos despendidos, grupos elegíveis, região onde ocorreu ou ocorrerá a imunização, os insumos, os bens e serviços de logística, a tecnologia da informação e comunicação, a comunicação social e publicitária e os treinamentos destinados à vacinação contra a Covid-19”.

Para Aith, a Lei não seria violada com a decisão discutida – já que dispõe sobre as vacinas compradas e não sobre a previsão de distribuição mensal delas. A visão é compartilhada por José Vicente Santos de Mendonça, professor adjunto de Direito Administrativo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), acredita que se o governo decidir não divulgar as previsões estaria dentro da legalidade.

“Não é possível divulgar aquilo que pode afetar o curso de negociações, como por exemplo as negociações estratégicas em curso. O problema é que o panorama global da oferta e da demanda de vacinas é muito instável. O cenário muda bem rápido, é importante divulgar as quantidades efetivamente contratadas”, pontua.

Apesar disso, Aith interpreta que, com base na Lei de Acesso à Informação e nos princípios de publicidade e transparência do poder público, “as compras que estão sendo planejadas e ainda não estão contratadas, devem ser disponibilizadas para conhecimento da população com base no princípio democrático de transparência do Estado brasileiro”. O importante, pontua o professor da USP, é que as previsões sejam informadas, mesmo que depois sejam alteradas.

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