Mark Tushnet é professor emérito da Universidade de Harvard e especialista em Direito Constitucional Comparado. Em um de seus últimos livros (The New Fourth Branch), Tushnet desenvolveu um estudo sobre como diversos países do mundo têm construído instituições de combate à corrupção, solução de problemas eleitorais e outras questões que, em essência, representam a defesa da própria democracia.
Em conversa — conduzida por David Sobreira, host do podcast “Onze Supremos” —, Tushnet discorre sobre a estrutura das Instituições de Proteção da Democracia (IPDs) e como elas têm sido pensadas mundo afora. Trabalha, também, problemas envolvendo o design dessas instituições e a necessidade de balancear accountability e independência.
O livro inclui, ainda, estudos de caso envolvendo operações anticorrupção no Brasil (Operação Lava Jato) e na África do Sul, além de trazer reflexões sobre a regulamentação eleitoral nos Estados Unidos.
Leia abaixo a entrevista:
Professor, o que é “o novo Quarto Poder”?
A Constituição da África do Sul, de meados dos anos 90, possui um capítulo intitulado “Instituições para a Proteção da Democracia Constitucional”. Nesse capítulo, está incluso um número de instituições que existem em outros países pelo mundo, como comissões eleitorais para supervisionar eleições, um ombuds, agências de auditoria e uma variedade de agências anticorrupção.
A Constituição sul-africana foi a primeira, creio eu, que fez de tais instituições constitucionalmente independentes, em vez de prevê-las apenas na legislação comum. E, como diz o capítulo, elas foram desenhadas para proteger a democracia constitucional.
Atualmente, essas instituições estão razoavelmente espalhadas pelo mundo e, em razão da independência constitucional que lhes foi garantida, elas não se adequam aos tradicionais Poderes Executivo, Judiciário ou Legislativo. Assim, eu entendi ser útil tentar compreender tais instituições como um novo Quarto Poder, independente e com estatura igual aos demais.
No segundo capítulo do seu livro, o senhor fala sobre a estrutura lógica dessas instituições, como elas funcionam no sistema constitucional e porque elas não se encaixam na tripartição clássica de Montesquieu.
A ideia clássica era que, se houvesse três Poderes, cada um estaria na posição de supervisionar os outros dois. Essa separação de poderes – ou freios e contrapesos – garantiria os objetivos da Constituição. Ter-se-ia, então, uma espécie de triângulo autossustentável, e há uma certa lógica por trás dessa ideia. A melhor expressão que conheço sobre isso vem de James Madison, que disse que a separação de poderes garantiria a democracia porque os interesses daqueles no poder estariam conectados com o interesse do local. Então, se o Executivo se excedesse, o Legislativo responderia em defesa, ou se o Legislativo se excedesse, o Executivo ou as cortes o impediria. A ambição colocaria freios na ambição.
Contudo, durante o curso do século XIX, ocorreu o florescimento do governo por meio de partidos políticos nas democracias e, uma vez instaurado um governo de partidos, o sistema de freios e contrapesos se torna desajeitado (awkward). O exemplo mais óbvio é aquele em um sistema presidencialista quando o Presidente e a maioria do Congresso pertencem ao mesmo partido. Nesse casos, o Executivo e o Legislativo trabalharão em conjunto – não em conflito –, o que pode resultar no enfraquecimento da democracia.
Existe uma variedade de configurações de poder partidário que podem levar àquilo que chamo no livro de convergência ou conflito de interesses, que bloqueiam o poder do sistema de freios e contrapesos de preservar a democracia.
No início do século XX, Hans Kelsen, focando especificamente nos problemas criados pelo governo partidário, disse que precisávamos de uma nova instituição para proteger a democracia. Sua proposta foi a Corte Constitucional, que estaria acima dos partidos e das cortes ordinárias.
Por uma variedade de razões – parte por causa do desenvolvimento dos direitos humanos, parte por causa de outros fatores institucionais – designers constitucionais começaram a ver a Corte Constitucional como apenas um exemplo de Instituição de Proteção da Democracia. Com isso, passaram a incluir outras instituições nas suas Constituições.
Ao tratar da lógica funcional e da lógica estrutural das IPDs, o senhor fala sobre o debate entre o pensamento kelseniano e o schmittiano sobre a Corte Constitucional. Nesse momento, o senhor introduz a ideia do “problema policêntrico” (Lon Fuller), que surge quando se atribui à Corte Constitucional a função de solucionar as demandas envolvendo a democracia. Eu lhe pergunto: no que consiste a ideia do “problema policêntrico” e como ele pode afetar as Cortes Constitucionais enquanto IPDs?
A ideia de Kelsen, uma Corte Constitucional para proteger a democracia, demorou entre 20 e 25 anos para se consolidar. Uma vez instituída a Corte Constitucional, o instinto natural é atribuí-la a função de resolver todas as tarefas necessárias à proteção da democracia. A primeira dessas tarefas que veio à mente foi a de supervisionar eleições – impedir corrupção, fraude em votações etc. É normal que Cortes Constitucionais tenham a função de supervisionar eleições, o problema – e é aqui que entra o pensamento de Fuller – é que as questões envolvendo o gerenciamento de eleições são muito complicadas. O desenho de distritos eleitorais,[1] por exemplo, pode afetar outros fatores do sistema, a depender da forma que for realizado. É exatamente isso que Fuller quer dizer quando fala em “problemas policêntricos”. Usando a metáfora de uma teia de aranha, Fuller explica que “problemas policêntricos” são como as intervenções em determinados pontos da teia que podem resultar em alterações em outro ponto distinto. Quando uma mosca é pega em algum ponto teia, a teia sofre efeitos que irradiam em todo o seu “corpo”.
Fuller diz, portanto, que as Cortes Constitucionais não resolverão bem essas questões, porque são incapazes de antecipar os problemas que podem surgir de suas intervenções. O que vai acontecer, então, é que as Cortes transformaram o problema a ser enfrentado em uma questão “legalmente tratável”. Voltamos, aqui, ao exemplo dos distritos eleitorais. Há várias questões que devem ser levadas em conta nessa tarefa, mas as Cortes são guiadas pelo princípio de “uma pessoa, um voto” (com um adicional de 10% de desvio). Cortes não levarão em conta nada além disso, porque assim terão um problema passível de resolução. Elas não poderiam levar em conta parâmetros como população, comunidades interessadas, limitações geográficas – questões de expertise em geral.
Você tem, então, esses problemas – como gerenciamento de eleições e corrupção – que são policêntricos. Você tem uma instituição – a Corte Constitucional – à qual se pode atribuir a tarefa de resolver os problemas, mas você sabe que ela não fará um bom trabalho por causa da natureza dessas demandas. O que você quer, como eu coloco no livro, é pessoas que sejam experts em seus campos de atuação, seja ele gerenciamento de eleições, seja corrupção. Sobre este último, um problema de difícil resolução para Cortes é o de manipulação financeira, porque é complicado de provar. Para isso, você precisa de auditores especialistas que consigam rastrear o dinheiro.
Então, a estrutura lógica é: a separação de poderes não vai funcionar bem em uma estrutura de governo partidário. A lógica funcional, por sua vez, é: cortes, especialmente Cortes Constitucionais, carecem da expertise necessária à resolução de problemas policêntricos.
Ainda nesse contexto, em determinado ponto do seu livro, o senhor fala em dois sistemas diferentes. Um com uma IPD com várias atribuições e outro com várias IPDs com diversas atribuições. Qual a diferença entre esses dois sistemas?
Não está claro se a teoria do design constitucional resolveu qual o melhor caminho para solucionar esses problemas. Há um número crescente de instituições sendo incluídas na categoria de IPD. As pessoas parecem pensar que um maior número delas pode ajudar. O que eu argumento, no livro, é que se você observar como essas instituições operam, é possível notar que muito depende das particularidades de quem está encarregado da instituição. Eu tenho vários estudos de caso em que instituições foram surpreendentemente efetivas porque tinham um líder dinâmico, não por causa de sua estrutura. Então, o primeiro ponto é que não há como prever se essas coisas serão efetivas só olhando para suas estruturas. Muito depende de fatores aleatórios e de quem está encarregado da instituição. Em razão disso, meu primeiro pensamento foi de que se houver um maior número de instituições, há uma maior chance de uma delas conseguir resolver o problema. Há um estudo de caso sobre a África do Sul, no livro, em que inúmeras pessoas foram investigadas por corrupção. A figura-chave do ocorrido foi a ombudsperson, que, por uma questão ética pessoal, promoveu a investigação contra aquele que foi seu padrinho político. O resultado poderia ter sido diferente se outra pessoa estivesse ocupando o cargo naquele momento, ou outra instituição poderia ter feito o trabalho. Isso parece indicar que quanto mais instituições, melhor.
A dificuldade, contudo, é que, por vezes, as IPDs podem entrar no caminho umas das outras. Há um estudo de caso, que não é meu, sobre investigações de corrupção no Peru em que duas instituições entraram em conflito. O resultado foi que as investigações anticorrupção ficaram paralisadas por um tempo. Outro problema com a multiplicidade de instituições é que alvos de investigações podem “jogar” com as entidades envolvidas, escolhendo com qual delas cooperar. Então, eu acredito que não sabemos o suficiente para dizer qual o melhor sistema.
No capítulo quatro, que trata de problemas de design de IPD, o senhor divide as instituições em três grupos: ad hoc, incidentais e permanentes. Poderia, por gentileza, desenvolver esse raciocínio?
Instituições ad hoc surgem junto com um determinado problema, como uma eleição contestada ou um escândalo de corrupção específico. Cria-se, assim, uma instituição para lidar com aquele problema particular. O problema é conhecido, então a instituição é desenhada para lidar com ele. A vantagem desse modelo é que, se o sistema funciona bem, essas instituições só precisarão ser criadas conforme surjam eventuais problemas. A dificuldade, por outro lado, é que quando o problema surgir, sua importância política será aparente, isso faz com que o desenho de uma instituição que esteja “acima” da política seja muito complicado.
As incidentais – geralmente a Corte Constitucional, mas pode ser o Legislativo – são instituições que já existem e têm suas tarefas ordinárias, às quais são somadas atribuições de proteção da democracia (por exemplo: Cortes supervisionando eleições ou ombudsperson relatando questões ao Legislativo). Isso pode funcionar, mas sempre existirão os problemas de expertise, no primeiro caso, e as questões de alinhamento partidário entre Executivo e Legislativo, no segundo.
Na categoria final, estão as instituições independentes. Essas são colocadas “acima” da política e recebem status constitucional. Esse é um excelente design se existem problemas duradouros. O gerenciamento eleitoral em um país como a Índia é enorme. Em todas as eleições, haverá vários tipos de dificuldades, o que faz com que uma instituição para supervisionar eleições faça sentido. Em outros países, onde as eleições ocorrem com tranquilidade, como na Alemanha, não faria sentido ter uma instituição permanente para lidar com esses problemas, que ocorreriam uma vez a cada 15 anos.
Então, escolher entre instituições ad hoc, incidentais ou permanentes depende muito das características do sistema político em que essas instituições estão inseridas.
Ainda nesse tópico, o senhor trata, no seu livro, de um problema envolvendo especialmente as instituições permanentes: quanto maior a independência, menor a accountability. Quando cheguei nesse ponto, não pude deixar de notar o quanto esse problema é evidente no sistema brasileiro.
Nós sabíamos, por meio de reflexões sobre Cortes Constitucionais, que sempre haveria uma tensão entre independência e accountability. O segredo está em descobrir como equilibrá-las. Quando essas novas instituições surgiram as soluções de design foram semelhantes àquelas dadas às Cortes Constitucionais (v.g., mandatos longos, multiplicidade de membros). Essas lições foram parcial e imperfeitamente aprendidas, provavelmente porque Cortes Constitucionais são independentes demais e pouco responsáveis (accountable). Algumas dessas instituições, como agências anticorrupção, podem ser independentes demais.
Devo destacar dois pontos aqui. Primeiro uma questão geral. Uma vez criada uma dessas instituições, elas terão interesse em achar problemas para resolver. Uma agência anticorrupção, por exemplo, vai procurar atividades que, por vezes, não são perigosas para a democracia. Elas tendem a ter uma mentalidade voltada a processar casos de corrupção, além de ser menos sensíveis às implicações políticas do que estão fazendo. Isso se assemelha às Cortes Constitucionais, que farão Direito Constitucional como Lei, sem sensibilidade suficiente para perceber como suas decisões afetam o sistema político como um todo.
Em segundo lugar, meu ponto é especificamente sobre a Operação Lava Jato, sobre a qual tenho um estudo de caso no meu livro. Eu não digo isso especificamente no livro, mas quando eu comecei a trabalhar nele – período que durou de cinco a seis anos –, a Operação era vista como um tremendo sucesso no combate à corrupção de alto escalão. Quando eu terminei o livro, os problemas da Operação tornaram-se aparentemente claros. Não apenas em relação às conversas entre o então juiz Sergio Moro e os procuradores – essa é uma questão bastante complicada –, mas também, e aqui eu posso estar errado, ao que a maior parte dos observadores enxerga como um exagero na caracterização de certos atos de corrupção de menor porte, que foram encontrados nos estágios iniciais, como se fossem de grande porte.
Por fim, há também o risco – o que parece ter ocorrido no Brasil – de enviesamento político da investigação. Muitos observadores, com os quais eu simpatizo, acreditam que a Operação Lava Jato estava perseguindo de maneira estrutural o Partido dos Trabalhadores, mesmo que alguns políticos que não eram do PT tenham sido presos.
Existem muitos problemas na proteção da democracia, mas seu livro parece dar atenção a dois em especial: gerenciamento de eleições e corrupção. Ao falar sobre corrupção no estudo de caso da Operação Lava Jato no Brasil, o senhor levanta um ponto importante: a dificuldade estrutural de combater a corrupção em alguns países. Em razão disso, são apontadas algumas tendências dos procuradores de inovar nas interpretações jurídicas de forma a permitir o avanço bem-sucedido das operações. Poderia, então, falar um pouco sobre essa dificuldade de combater a corrupção em sistemas que apresentam problemas nessa seara?
Inicialmente, preciso dizer que não sou um especialista no Direito brasileiro. No meu trabalho sobre a Operação Lava Jato, eu contei bastante com ajuda de autores brasileiros que, para mim, pareciam ter uma visão balanceada dos problemas. Então, vou tentar descrever como eu interpretei as questões [envolvendo a Lava Jato] conforme os problemas surgiam.
Existe um corpo de normas, substantivas e procedimentais, com as quais os procuradores estavam trabalhando. Eles concluíram, com base na investigação, que as regras existentes não estavam permitindo que continuassem com o trabalho de forma efetiva. Desenvolveram, então, o que eu descreveria como “inovações interpretativas da legislação existente”. Eles não inventaram nada, apenas olharam para o que já existia e disseram: veja bem, nós temos essas regras e podemos interpretá-las de forma que permitam novas técnicas de investigação. Praticamente todas as coisas que sugiram nessas discussões, como a prisão antes do julgamento e a definição do que conta como corrupção, parecem-me estar nos limites da adaptação criativa. Eu não as enxergo como tão ofensivas quanto alguns comentaristas brasileiros – talvez pelo fato de eu escrever a partir de um sistema de Common Law, em que adaptações dessa natureza são bastante comuns.
Porém, no contexto de uma investigação altamente politizada, muitos observadores – tanto acadêmicos quanto pessoas comuns – dirão que essas adaptações estavam fora dos limites precisamente por causa de seus impactos políticos.
Novamente, esse é um exemplo de como uma investigação direcionada pode entrar em apuros por não ter cuidado em pensar o suficiente sobre a política no que está fazendo. Eu devo ressaltar, aqui, que simpatizo com aqueles que dizem que os procuradores estavam completamente atentos às implicações políticas de suas ações, eles queriam bloquear o poder do PT. Eu simpatizo com essa posição, mas não é necessário aceitar isso para ver o problema estrutural da Lava Jato.
Outro problema sobre o qual o senhor fala, que desempenha um papel fundamental no bom funcionamento das IPDs, é a estrutura político-partidária adotada pelo país. São mencionados quatro modelos de sistemas político-partidários e em dois deles as IPDs podem, de acordo com as circunstâncias, exercer um papel importante. Nos outros dois, grupo em que se insere o Brasil com o seu sistema político-partidário “caótico”, as IPDs não desempenham suas funções de forma satisfatória.
Eu acredito que a efetividade dessas instituições depende bastante da natureza do sistema partidário e da nação onde se localizam. O exemplo fácil é aquele em que o país possui um partido político dominante. Não se trata de um caso de autoritarismo, mas de uma situação em que um partido ganha todas as eleições, como é o caso da África do Sul e Singapura.
Se existe um partido político dominante – a África do Sul acabou sendo um caso problemático –, ele controlará o Executivo, o Legislativo, as cortes e as IPDs. Isso é o que “dominante” significa. O partido dominante indicará os responsáveis pelas comissões eleitorais ou pelas agências de corrupção. Esses agentes, então, farão o que o partido determinar. Isso pode significar que, eventualmente, eles conduzam eleições justas e investiguem corrupção. Contudo, em alguns casos eles farão vista grossa para a corrupção. Logo, instituições não farão muito para ser efetivas em um sistema de partido político dominante.
No sistema político-partidário caótico, como é o caso do Brasil, as IPDs também não serão satisfatoriamente efetivas, sobretudo porque a atuação delas pode ter resultados aleatórios para a democracia. Pode, por exemplo, haver uma denúncia de corrupção e os inúmeros partidos no Congresso revelarem-se incapazes de se juntar para decidir o que fazer sobre o assunto.
Então, no sistema de partido político dominante, IPDs não funcionam porque são controladas pelo partido. Enquanto no sistema político-partidário caótico, elas não são efetivas porque não dispõem de recursos políticos para usar.
Os casos intermediários são aqueles sistemas multipartidários bem-organizados, estáveis e com apenas alguns partidos. Eu acredito ter uma versão [no meu livro] em que existe um partido dominante com facções estáveis, como é o caso da África do Sul. Nesse caso, o sistema funciona como um desses modelos intermediários e você vai conseguir ter IPDs eficientes, porque o que elas fizerem vai encontrar eco em algum dos partidos. Eu não falo sobre a Austrália no meu livro, mas ela é um bom exemplo. Eu falo um pouco [no livro] sobre o Canadá. Todos concordam que as entidades responsáveis pela gerenciamento eleitoral da Austrália e do Canadá são muito boas.
O problema é que nessas estruturas partidárias – multipartidarismo estável –, o sistema madisoniano de separação de poderes faria um bom trabalho de qualquer forma. Eu repito bastante isso no livro, mas as IPDs não funcionam bem nos lugares em que mais são necessárias, e funcionam bem onde não são tão necessárias. Isso é um problema real. Deve haver um pouco de espaço para manipular as margens, mas não deveríamos colocar muitas esperanças na habilidade das IPDs de desempenhar bem suas funções em sistemas caóticos, como o Brasil, ou em sistemas de partido dominante, como Singapura.
Quando chegamos ao quinto capítulo, o senhor fala sobre princípios de design, algumas diretrizes que devem ser seguidas por IPDs. Nesse ponto, são elencados alguns números de uma pesquisa com mais de 100 países, dentre os quais:
- 83% possuem pelo menos uma comissão de auditoria;
- 52% possuem pelo menos um ombudsperson;
- 37% possuem pelo menos uma comissão de direitos humanos;
- 34% possuem pelo menos uma comissão de serviços civis e judiciais;
- 29% possuem pelo menos uma agência de combate à corrupção;
- 89% possuem pelo menos uma ou mais dessas instituições citadas.
Eu lhe pergunto, então, que outras diretrizes deve uma IPD seguir para desempenhar um papel satisfatório?
O problema central, como falei anteriormente, é equilibrar independência e accountability. A forma de realizar isso, creio eu, é fazendo com que as instituições estejam acima dos partidos, mas não completamente desconectadas do sistema partidário. Você atinge “estar acima dos partidos”: (I) garantindo que o mandato do responsável seja maior do que o dos parlamentares; (II) incluindo provisões de estrutura bipartidária ou multipartidária, se for o caso de uma instituição com muitos membros; e (III) delimitando critérios de expertise para integrar a comissão. Outro elemento, mais problemático, é que os membros das comissões não podem ter afiliações partidárias fortes. Essa é a parte da independência – mandatos longos, composição multipartidária etc.
A questão da accountability, por sua vez, requer que os membros sejam apontados diretamente – pelo Executivo, Legislativo ou pelas cortes – ou indiretamente – por meio de comissões, criadas pelos Poderes estabelecidos, que buscarão nomes que serão submetidos à aprovação.
Agora, a forma como isso deve ser feito em casos particulares varia enormemente ao redor do mundo. Não acredito que existam diretrizes precisas sobre como essas instituições devem ser estruturadas, apenas informações que devem ser levadas em conta quando da criação dessas IPDs.
Terminando o seu livro, me ocorreu uma pergunta sobre dois institutos – não instituições – brasileiros e se eles são capazes de desempenhar, em alguma medida, o papel de proteção da democracia. Falo do voto obrigatório, opção do legislador, e do financiamento público de campanhas eleitorais, decisão do STF que muito se afasta do modelo americano estabelecido em Citizens United v. FEC (2010). O que o senhor pensa sobre esses dois pontos?
Inicialmente, preciso dizer que esses são problemas sobre os quais eu não refleti sistematicamente numa perspectiva comparada. Eu pensei sobre financiamento de campanhas nos Estados Unidos e acredito que os problemas são bastante difíceis. Estou inclinado a defender o financiamento público, mas não acredito que seja uma solução completa por uma variedade de razões.
Sobre a questão do voto obrigatório, acredito que exista uma visão geral dos acadêmicos que estudam o tema no sentido de que contribui para a democracia, se for dada ao eleitor, pelo menos, a opção de não votar em nenhum candidato. É dizer, o eleitor tem o dever de comparecer, mas pode dizer: “eu não gosto de nenhum desses candidatos”. A ideia geral é que isso contribuiu para a estabilidade democrática de algumas nações onde isso foi implementado, o Brasil talvez seja um exemplo do oposto. Mas eu não sei o suficiente sobre o tópico para ter uma visão efetiva.
Na conclusão, o senhor retorna à questão tratada no segundo capítulo, sobre a necessidade de as instituições serem desenhadas para fomentar a virtude cívica, essa, sim, o objetivo final para alcançar uma sociedade democrática. O que seria, então, a virtude cívica, por que precisamos dela e por que as instituições precisam fomentá-la para que tenhamos uma sociedade mais democrática?
Desde o início, nós temos conversado sobre instituições de governança, mas, no início da teorização sobre democracia, praticamente todos concordavam que uma sociedade com cidadãos comprometidos com o bem público era muito mais importante que qualquer instituição. Seria ótimo se existissem cidadãos que estivessem atentos às questões importantes.
Contudo, descobrir como conseguir isso é muito difícil. Uma resposta clássica apontaria que elementos como a religião, família e pequenos negócios ajudariam a cultivar a virtude cívica. Todos esses, na minha visão, foram colocados sob uma pressão severa com o avanço da sociedade moderna e do capitalismo. Então, foi necessário que buscássemos em outro lugar por fontes de virtude cívica. Existem dois candidatos, sendo o primeiro deles – sobre o qual eu não falo no meu livro – a educação pública. Ter educação sobre cidadania como parte do currículo geral. As pessoas sabem que eu não considero isso muito efetivo, mas é melhor que nada.
O que eu comento brevemente no livro – e em outros lugares, com mais detalhes – é desenvolver governança em níveis pequenos [descentralização radical], de forma que as pessoas tenham a experiência de lidar umas com as outras. Uma dessas ideias, considerada um experimento bem-sucedido, começou no Brasil com os orçamentos participativos – que acredito ter sido feito inicialmente em Porto Alegre, em nível municipal. Esse é o tipo de coisa, quando cidadãos de um pequeno bairro, região ou cidade se juntam para decidir por eles mesmos como as políticas ou orçamentos deveriam ser. Eles sabem do que precisam mais do que aqueles no governo central.
Ao participar do processo de governança, você entende o que significa ser cidadão de uma sociedade plural e complexa.
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[1] Problema tipicamente norte-americano, em que o desenho (ou manipulação – gerrymandering) de distritos eleitorais pode vir a afetar o resultado das eleições.