Direitos humanos

MST requer condenação do Brasil na Corte IDH por agricultor morto pela PM

Advogados defendem que crimes de militares contra a vida de civis sejam sempre julgados pela Justiça comum

sem-terra
Representantes do MST na Corte IDH / Crédito: Corte IDH/Divulgação

Representantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) pediram à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) que condene o Estado brasileiro por uma ação policial que terminou com o assassinato do agricultor Antônio Tavares Pereira e ferimento de outros 185 militantes.

Os fatos foram no ano 2000, quando um grupo de aproximadamente 1,5 mil sem-terra seguia de ônibus para um ato de reivindicação pela reforma agrária em Curitiba. Conforme os relatos, eles foram emboscados e atacados pela Polícia Militar (PM) na BR-277, em Campo Largo, na região metropolitana da capital paranaense.

“Quando a gente chegou com o ônibus, a polícia já tinha feito a barreira. Mandaram todo mundo desembarcar do ônibus, sair. Mandaram a gente para trás. A gente foi se afastando e um policial, com arma na mão, foi socando todo mundo, entrando no meio do povo. Quando a gente viu, saiu o tiro. Quando eu olhei para o lado, o pessoal já estava segurando o seu Antônio para deitar no chão. Eu tinha um lencinho, coloquei em cima dele, porque tinha muito sangue escorrendo. Naquele exato momento que foi o conflito. A polícia já veio com tiro de borracha, bomba de gás, atirando em todo mundo e batendo”, relatou a agricultora Loreci Lisboa, uma das presentes no dia, em audiência na Corte IDH, na terça-feira (28/6).

A sem-terra contou ter levado uma coronhada na cabeça e três tiros de bala de borracha – na perna, no braço e na nádega. “A partir do momento que eu estava deitada, mandaram a gente colocar a mão na cabeça e deitar no chão. A gente deitou e eles pisavam em cima da cabeça, colocavam a cara da gente no chão e diziam assim: ‘Você queria terra, vagabunda, agora tu come terra aí. É essa terra que você vai ganhar. Aproveite’”.

Loreci disse que, ao ser socorrida, foi algemada em uma maca e “despejada igual bicho” em um hospital em Curitiba, para onde foi levada no camburão da polícia junto a outras 12 pessoas feridas.

A viúva de Antônio Tavares Pereira, Maria Sebastiana Barbosa Pereira, relembrou que, quando perdeu o marido, precisou cuidar sozinha de cinco filhos pequenos. Ela disse que, anos depois, o estado do Paraná ofereceu um acordo de indenização, que foi só parcialmente pago: dois salários mínimos mensais para dividir entre os filhos. Até hoje ela diz não ter tido justiça pela perda de Antônio.

“É muito difícil, porque são 22 anos esperando, lutando. Ter que sair do meu país para reivindicar uma coisa que é meu direito é muito difícil. A gente espera por justiça, que não demore mais 22 anos”, suplicou a viúva.

O processo sobre a ação policial foi arquivado tanto pela Justiça Militar quanto pela comum, sem nenhuma responsabilização. Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), o Brasil foi omisso ao não apresentar explicações que legitimassem a ação policial como algo “adequado, necessário e proporcional”.

Pelo contrário, a Comissão considerou que o Estado violou os direitos à vida, integridade pessoal, garantias judiciais, liberdade de pensamento e expressão, reunião, circulação, residência e proteção judicial. Conforme o informe da CIDH, as autoridades sabiam da marcha e, em vezes de tomar medidas que protegessem os manifestantes, ordenou que a PM impedisse o exercício dos direitos fundamentais deles.

De acordo com a representação das vítimas, o inquérito policial militar instaurado foi parcial e tendencioso ao não indicar claramente quais infrações penais e militares seriam objetos de apuração, por exemplo, e ao responsabilizar os integrantes do MST, chamados de “arruaceiros” pelo promotor responsável pela apuração.

A parcialidade na condução das investigações foi ressaltada pela ex-vice-procuradora-geral da União Ela Wiecko, também professora de Direito Penal da Universidade de Brasília (UnB), convidada como perita pela Corte IDH.

“A operação militar que mobilizou todo o estado do Paraná e que iniciou antes do dia 2 de maio não foi esclarecida – o uso de bala de borracha, de munição de guerra química e de cães não foi questionado. Mas a apreensão de foices, facões e canivetes em número bem inferior ao total dos sem-terra foi supervalorizada. Isso decorre do próprio tipo de apuração. Como é feita a apuração pela PM, acaba não seguindo uma linha objetiva e imparcial, porque o encarregado do inquérito instaura a portaria conforme o seu superior determinou”, comentou ela.

A perita afirmou que o objetivo do inquérito foi “construir uma narrativa de que os militantes estavam organizados, premeditados, com objetivos definidos, comando único e dispunham de poderia bélico”.

“O inquérito diz que nenhum dos arruaceiros foi atingido por qualquer projétil, portanto lança-se a prova da inocorrência de tiros. Olha o preconceito que é emanado de uma autoridade pública, que deveria examinar os fatos de forma imparcial, porque não é verdadeira a informação de que nenhum dos sem-terra foi atingido por projétil com exceção de Antonio Tavares”, disse a perita.

Para Wiecko, há um problema grave na estrutura da Justiça Militar, que possibilita o arquivamento de quase todos os processos por crime doloso envolvendo policiais militares: a permissão para declarar exclusão de ilicitude e arquivar as investigações antes que cheguem à Justiça comum.

“O que acontece hoje no Brasil, na prática, é que há uma simultaneidade de apurações. São abertos inquéritos policiais e civis pelo crime doloso contra a vida, mas boa parte desses casos que são apurados pela Polícia Militar não são encaminhados à Justiça comum porque são arquivados ou não é reconhecida a prática de crime doloso, exatamente por causa das exclusões da ilicitude. Muito embora haja decisões do Supremo, do STJ, dizendo que quem define o que é o crime doloso contra a vida é a Justiça comum, a prática é essa. Isso tem sido reconhecido pelos próprios juízes militares, inclusive com a fundamentação de exclusão da ilicitude, que, na doutrina e na jurisprudência brasileira, se recomenda que seja reconhecida pelo tribunal do Júri, não pelo próprio juiz”.

Foi o que aconteceu no caso concreto: a Justiça comum trancou o processo penal seis meses após o recebimento da denúncia sob a justificativa de que não era possível prosseguir com o processo porque ele havia sido arquivado na esfera militar. Sem nenhuma condenação, o caso transitou em julgado em outubro de 2003.

Nas alegações finais, os representantes das vítimas consideram que não se trata de um caso isolado, mas de uma prática sistêmica de violência policial contra integrantes do MST, que começou bem antes do fato.

“Neste caso, na BR-227, a violência empregada pela Polícia Militar se deu em plena luz do dia, foi televisionada e nem mesmo isso coibiu a ação violenta da PM. Neste caso, portanto, a repressão estatal aos sem-terra subiu alguns níveis na escala de violência. Este episódio é considerado pelo MST do Paraná como um dos momentos mais emblemáticos do processo de violência e de criminalização na luta pela terra”, declarou Camila Gomes, advogada da entidade Terra de Direitos.

Por essa razão, os advogados pediram à Corte que o Estado não só a repare as vítimas, mas também implemente políticas de reforma agrária e combate à violência no campo. Também defendeu que crimes de militares contra a vida de civis sejam sempre julgados pela Justiça comum e que a Lei 13.491/17, que amplia a competência da Justiça Militar, seja revogada ou declarada inconstitucional.

Representante da Advocacia-Geral da União, Tony Lima afirmou que o Estado adotou “todas as medidas legais cabíveis, com pronta investigação e propositura penal”. Ele alegou que o inquérito policial militar foi efetivo e que o arquivamento se deu porque o promotor concluiu que o projétil que atingiu o sem-terra se desviou ao atingir o asfalto e, portanto, não houve intenção de matar, cabendo assim o excludente de ilicitude.

Ele se queixou da tentativa dos advogados das vítimas de “aumentar o escopo” do caso. Segundo o representante estatal, não é possível considerar o MST como vítima dos alegados crimes.

“Tal pedido é inoportuno, uma vez que a entidade [o MST] não foi e nem poderia ser apontada como vítima pela Comissão. Ademais, fere o artigo 35 do regulamento da Corte. O desenvolvimento do sistema interamericano não abarca a possibilidade de se considerar um movimento tal qual o MST como vítima de alegadas violações de direitos humanos, de acordo com a Opinião Consultiva 22 desta Corte e o protocolo da San Salvador”.

Lima também disse que não há provas que concluam que houve 185 pessoas feridas. Segundo ele, os nomes foram listados “unilateralmente” pelas entidades representantes do movimento dos trabalhadores.

“O referido rol foi formulado unilateralmente pela parte peticionária, sem confirmação por outros meios de provas. O Estado não quer, com isso, negar a ocorrência de danos a outras pessoas além de Antônio Tavares Pereira, mas tão somente recordar a necessidade que se apresente provas concretas para que os juízes possam deliberar sobre eventual responsabilidade estatal com precisão. Uma eventual condenação do Estado a compensar as supostas vítimas pelas violações alegadamente sofridas requer a diferenciação e individualização dos danos que cada vítima teria sofrido, não se podendo considerar suficiente que meramente se arrole os nomes das pretensas vítimas”.

O Estado também apresentou medidas que teria tomado para evitar conflitos por terra, como a criação, em 2019, da Comissão de Conflitos Fundiários e do Centro Judiciário de Solução de Conflitos Fundiários.

Com o fim da audiência pública, representantes das vítimas e Estado têm um mês para apresentarem, por escrito, as alegações finais. É o último passo para que a Corte possa emitir sentença.

O juiz Rodrigo Mudrovitsch não participará da deliberação da sentença do caso por ter nacionalidade brasileira, conforme prevê o artigo 19 do regimento da Corte IDH.

Sair da versão mobile