O Brasil vive nesse momento a transição de um governo conservador de extrema-direita para um de visão mais progressista – e, entre as mudanças que estão no horizonte, as principais giram em torno dos direitos humanos. A expectativa é, inclusive, a recriação do Ministério que leva este nome, desmontado em 2016 e rebaixado à condição de secretaria, submetida à controversa pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos no governo Bolsonaro.
A recriação da pasta “é um alívio”, mas requer um olhar especial “após quatro anos de um discurso muito erosivo”, afirma a advogada Melina Girardi Fachin, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos da instituição.
“É necessário resgatar os direitos humanos como pauta central de governo. É muito difícil ter uma Pasta que não tenha interlocução com alguma questão específica de direitos humanos. Como pensar um novo Ministério da Justiça, por exemplo, sem colocar os direitos humanos no centro? Os ministérios terão que criar essa ponte e talvez a solução seja pensar na pasta de Direitos Humanos como a grande articuladora dessas aproximações”, afirma.
Ao JOTA, a professora discute os primeiros sinais de como o novo governo deve tratar a área e comenta decisões recentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos que dizem respeito à liberdade de imprensa e a direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais, que dialogam diretamente com o contexto do Brasil, Estado-membro da Convenção.
O governo eleito promete recriar, entre outras pastas, o Ministério de Direitos Humanos, desmontado em 2016. O que podemos esperar deste novo Ministério?
Nós estamos saindo de um período de quatro anos em que não só houve menos investimentos em políticas de direitos humanos, mas houve um discurso institucional muito erosivo. A própria configuração do Ministério [da Mulher, Família e Direitos Humanos], que foi tão controversa, já dava em seu título uma conotação de que esses direitos não eram a prioridade do governo e estariam submetidos a outros interesses da pauta conservadora. Vemos com alívio o que virá pela frente porque estávamos dentro de uma política institucional de erosão democrática e de erosão dos direitos humanos, que são dois processos que caminham conjuntamente, mas há muito o que se fazer em muitos setores, em especial dos mais vulneráveis, que mais sofreram com o desamparo institucional.
O que deve ser feito é justamente resgatar essa pauta como uma pauta central de governo mesmo frente às dificuldades, porque políticas de direitos humanos precisam de financiamento e estamos num cenário bastante grave em termos de orçamento público. Mas, de toda maneira, é um alívio ver o fim de uma política institucional de direitos humanos contra os direitos humanos, a pluralidade, a democracia.
“Vemos com alívio o que virá pela frente porque estávamos dentro de uma política institucional de erosão democrática e de erosão dos direitos humanos”
Quando pensamos num novo Ministério dos Direitos Humanos, alinhado com as discussões do assunto em 2023, como ele deve operar? A pasta deve ser atualizada em comparação à que foi desmontada anos atrás?
Sim. Necessariamente exige um reposicionamento. Primeiro por ter sido uma das áreas mais erodidas nos últimos anos, mas também por ser uma matéria muito transversal. É muito difícil ter uma Pasta ministerial que não tenha interlocução com alguma questão específica de direitos humanos – alguns de forma mais destacada, como gênero e povos originários, mas mesmo discussões econômicas, sobre trabalho e emprego, precisam dessa articulação. Como pensar um novo Ministério da Justiça sem colocar os direitos humanos no centro? Os ministérios terão que criar essa ponte e talvez a solução seja pensar na Pasta de Direitos Humanos como a grande articuladora dessas aproximações.
A senhora mencionou que há muito o que se fazer nos setores mais vulneráveis. Neste sentido, que parcelas da população devem ser prioridade?
Sempre digo aos meus alunos e alunas que as violações de direitos humanos não são uma competição, mas, se eu fosse apontar uma urgência, diria que a fome é, de fato, o tema mais urgente. É uma endemia nacional. Nós já avançamos no passado, mas, agravados pela pandemia, chegamos a um estágio bastante vexatório para uma sociedade que produz tanto alimento como a nossa. Esse é um cenário de desigualdade flagrante e que merece ser o foco agora. Mas diria que todos os grupos que de alguma maneira estiveram em vulnerabilidade nos últimos anos necessariamente precisam de atenção – grupos LGBTQIAP +, povos originários, que foram tão violentados nos últimos anos.
Nomes como Anielle Franco e Silvio Almeida foram muito celebrados quando anunciados na equipe de transição. Como a senhora analisa o olhar do novo governo para os direitos humanos em termos de representatividade?
É fundamental ter um olhar bastante atento para isso. Como a gente vem de um período muito ruim nos direitos humanos, essas convocações representam um avanço, claro. Mas é importante que a gente pense a representatividade de gênero, raça e diversidade sexual para além das pastas que lidam com elas. É fundamental que mulheres pensem políticas para mulheres, que negros e negras pensem políticas raciais, mas precisamos desta representatividade em outras pastas que não só estas. Precisamos ver mulheres e pessoas negras em todos os postos de articulação porque é fundamental ter esse olhar transversal na transição e também no novo governo. Nenhuma discussão econômica, por exemplo, faz sentido se não incluir a maior parte da população brasileira, que são mulheres e negros. Os nomes que você citou, por exemplo, contribuiriam muito para além das pautas em que foram colocados.
Recentemente, em decisão contra a Costa Rica, a Corte Interamericana de Direitos Humanos reconheceu a justiçabilidade dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (Desca) em patamar equivalente a direitos civis e políticos, inclusive com possibilidade de responsabilização dos Estados por suas violações. Qual é a importância desta decisão?
Acho fundamental que o sistema interamericano avance nesses temas. A América Latina é uma região muito plural, mas com traços de discriminação comuns. A desigualdade social, sem dúvidas, é um deles. Por isso, avançar em pautas de Desca é fundamental. A nossa Constituição Federal fez essa aposta, mas a gente ainda vê a dificuldade de desenrolar essas políticas públicas de implementação de direitos econômicos e sociais dentro dos estados. Esse reforço, esse robustecimento que parte da Corte Interamericana para entender esses direitos como verdadeiros direitos humanos, da mesma tutela que direitos de natureza civil, por exemplo, é fundamental. Essa sentença não é o fim deste capítulo. Agora a ideia é que a aplicação seja progressiva. Daqui pra mais, nunca retroagir.
E, considerando o contexto dos Desca no Brasil, quais são os impactos desta decisão para o Estado brasileiro?
Quando a Corte julga um caso, não julga apenas para aquela vítima ou aquele Estado, mas julga com impacto transformador. E, como Estado-membro, temos deveres internacionais e constitucionais de atender os Desca como direitos humanos. O Estado brasileiro, inclusive, tem uma condenação neste sentido [do caso da fábrica de fogos de Santo Antônio de Jesus, no Recôncavo Baiano, julgado em 2020].
Nos últimos anos, especialmente neste último governo, o Brasil andou bastante distanciado do protagonismo que sempre teve nesses fóruns internacionais, então, agora nesta retomada, precisamos de um reposicionamento tanto externo quanto interno, pensando em como articular o cumprimento dessas decisões e entender que cumpri-las não é só pagar indenização para as famílias das vítimas. Essa, aliás, é a parte mais simples de cumprir, mas fazer as transformações institucionais que essa condenação nos exige.
“Nos últimos anos, especialmente neste último governo, o Brasil andou bastante distanciado do protagonismo que sempre teve nesses fóruns internacionais”
Outra decisão recente da Corte que dialoga diretamente com o contexto brasileiro é a condenação da Colômbia por violação à liberdade de imprensa. De que forma essa decisão, de setembro, pode impactar o Brasil?
A necessidade de ter essa proteção robusta da liberdade de expressão e de imprensa não é uma característica apenas brasileira, mas de toda a nossa região. A Corte reconhece esses direitos como cânones de sociedades democráticas e, inclusive, tem uma relatoria específica para esses casos, a RELE [Relatoria Para o Exercício da Liberdade de Expressão]. Como é comum na nossa região, o Brasil é um Estado democrático em construção, com avanços e recuos, e nosso recente processo de desdemocratização impacta diretamente no exercício da liberdade de imprensa.
Essa ideia de que os Estados na América Latina estão em construção democrática explica a dificuldade do Brasil em manter estabilidade em termos de direitos fundamentais?
Esse conceito não é meu, vários autores e autoras quando olham para a jurisprudência da Corte Interamericana identificam que existe uma dificuldade muito grande de consolidação do Estado de Direito, partindo desse diagnóstico de que nós ainda temos processos democráticos em consolidação. Isso fica claro quando a gente analisa a jurisprudência da Corte: não são raros casos de membros de tribunais institucionais destituídos porque investigam o governo ou porque não atendem a seus interesses. Esses casos mostram que ainda somos uma região que tem muito a avançar em termos democráticos que tem muito a avançar.
Hoje, 40 anos depois da ratificação da Convenção, a gente vê o impacto transformador do documento na sociedade latino-americana, porque os processos de democracia e garantia de direitos humanos caminham juntos, mas nem sempre a gente caminha para frente. Da mesma maneira que os processos democráticos não são lineares, a defesa dos direitos humanos também não é.
Nos últimos anos, o termo direitos humanos se tornou quase pejorativo, tido como exclusivo da esquerda, e não como um assunto fundamental para a democracia. Como recuperar essa noção?
Eu sou professora, acredito muito no potencial da educação em direitos humanos e acredito, também, que essa educação vai muito além da adaptação de currículo. Educar para os direitos humanos deve ser um projeto de Estado, não de governo, e precisa de comprometimento em longo prazo, porque no tempo de um mandato de quatro anos não se constrói um programa sólido, perene e comprometido com as gerações futuras. Além disso, temos que fazer com que a linguagem dos direitos humanos seja acessível e presente nos mais variados foros de discussão, e não manter esse tema encapsulado dentro de um órgão. É fundamental que a discussão esteja presente nas instituições públicas e privadas.
Seria desejável que a gente apostasse todas as nossas fichas na seara preventiva, promocional e educativa, claro, mas numa sociedade violenta, racista, machista e LGBTfóbica como a nossa, precisamos de respostas robustas de responsabilização, e esses processos precisam ser emblemáticos, estruturais, para que de fato a gente consiga avançar em relação a esses traços de discriminação tão arraigados.