Falta de água

Crise hídrica gera emergência energética e projeta sombra para indústria

Governo federal começou nesta semana a lançar medidas para reduzir demanda elétrica; outros usos ficam em segundo plano

ANA saneamento
Crédito: José Fernando Ogura/Agência de Notícias do Paraná

A corda está próxima de arrebentar para o setor elétrico diante da crise hídrica – que já desgastou o abastecimento de água, com dezenas de municípios em esquema de racionamento. Em novembro, a capacidade de geração de energia no país poderá chegar ao limite, devido às baixas nos reservatórios das hidrelétricas. Até esta semana, o governo federal vinha apostando em alternativas para aumentar a oferta energética. Agora, emergencialmente, tenta reduzir a demanda.

No início da semana, o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), formado por membros do governo e de órgãos técnicos, deu um alerta definitivo sobre a “relevante piora” do problema. Boletim mais recente do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) aponta que os reservatórios das hidrelétricas do Sudeste e do Centro-Oeste operam com apenas 22,7% de sua capacidade. No maior deles, Furnas, está em 18,3%. . O JOTA tem feito uma cobertura intensiva da crise institucional no JOTA PRO Poder, solução corporativa de inteligência política, monitoramento e análise dos Três Poderes. Conheça e traga mais previsibilidade ao seu negócio!

Pressionado a achatar a demanda, o Ministério de Minas e Energia definiu, na segunda-feira (23/8), as regras para iniciar o programa de redução do uso de energia por grandes consumidores, que deve começar em setembro. Dias depois, anunciou, sem detalhar, plano de descontos também para consumidores residenciais que pouparem energia; além de ordem para que prédios públicos economizem de 10% a 20% de luz até abril de 2022.

Em relação ao programa para os maiores consumidores, que compram energia diretamente do gerador, a adesão é voluntária. Conforme anunciado pelo governo, a empresa poderá ofertar seu preço por uma redução de consumo, com lotes mínimos de 5 MW multiplicados pelas horas de duração, variando de quatro a sete horas – os períodos reduzidos serão compensados posteriormente seguindo o padrão R$/MWh.

Aumento de custos é inevitável

Para a indústria, principal alvo da medida, o programa é visto com bons olhos se puder evitar quedas de energia. “Havia a demanda para reduzir as ofertas, o que foi feito e achamos positivo por contemplar empresas menores. Cada indústria terá uma capacidade de adesão, mas resta saber se quem participar terá benefícios no caso de racionamento”, diz Paulo Pedrosa, presidente da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e Consumidores Livres, alvos do programa.

Ficará a cargo do ONS definir de antemão quais horários serão permitidos para a redução e também para a compensação. Pela regra, a oferta deverá seguir o Preço de Liquidação das Diferenças, que hoje tem valor máximo de R$ 583,88 por MWh. Diferenças seriam compensadas em encargos na conta. Assim, o custo da redução do consumo tem chances de ser mais baixo que o da cara geração termelétrica.

Porém, aumentos de custos devem ser inevitáveis. Para os consumidores livres, a conta deve chegar já neste ano. O receio é que o encarecimento seja um entrave em um momento de retomada produtiva. Em levantamento da Confederação Nacional das Indústrias (CNI), nove entre cada dez empresários consultados se preocupam com a crise hídrica, principalmente aumento de preços (83%), racionamento (63%) e instabilidade ou interrupções no fornecimento de energia (61%). “O risco de aumento de custo vai afetar a competitividade. Os produtos ficarão mais caros, tanto para o consumidor interno como para o externo. Quanto ao racionamento, acreditamos que o risco está sob controle”, diz Roberto Wagner Pereira, especialista em energia da Confederação.

“O risco de aumento de custo vai afetar a competitividade. Os produtos ficarão mais caros, tanto para o consumidor interno como para o externo”

Isso atinge em cheio o momento de otimismo para o setor. Em agosto, pelo quarto mês consecutivo, o Índice de Confiança do Empresário Industrial (Icei), da CNI, mostra que todos os 30 setores consultados estão confiantes com os resultados.

As consequências da crise dependerão do quanto será possível economizar e da volta do período de chuvas. A situação crítica é decorrente justamente da míngua no último período “molhado”, de novembro a março ou abril de 2020, em que a pior seca da história deixou os reservatórios das hidrelétricas das regiões Sudeste e Centro-Oeste terminarem no menor nível para a época desde 2015.

“Estamos lutando com o que temos. Por agora, sabemos que passaremos em uma situação muito justa, que pode exigir ainda mais esforços no ano que vem. Não há água para manter as vazões que historicamente estão baixas e, assim, se produz menos energia”, avalia Roberto Brandão, pesquisador sênior do Grupo de Estudos do Setor Elétrico da UFRJ. “O Brasil tende, e precisa, depender menos de hidrelétricas, apostando em outras fontes renováveis, como solar e eólica. Essa segunda cresceu muito nos últimos anos e pode mais”, sugere.

Incerteza no abastecimento e usos da água

Também nesta semana, o CSME autorizou que, com a piora do cenário, a água guardada nos reservatórios deve ser usada para gerar energia imediatamente. Isso afeta outros usos, incluindo abastecimento e navegação, com eventuais impactos sociais e também econômicos.

Quem está à frente da gestão da crise hídrica até o fim deste ano é a Câmara de Regras Excepcionais para Gestão Hidroenergética (Creg), formada por diferentes ministérios e liderado pelo ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, e estabelecida em junho.

Antes da Creg, cabia ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) definirem as vazões, assegurando requisitos ambientais e conciliando diferentes usos da água. Esses órgãos ficaram de fora do Comitê, bem como a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

Entre as medidas recentes da Câmara, foi liberado o aumento do nível de água em reservatórios de São Paulo. Como consequência, ficou comprometida navegabilidade da hidrovia Tietê-Paraná – que liga o transporte de cargas de produtores de Goiás e do oeste de Minas Gerais a São Paulo. Na última crise hídrica no estado, entre 2014 e 2015, a via foi paralisada, acumulando prejuízo estimado em R$ 700 milhões, segundo o Departamento Hidroviário estadual.

A situação do abastecimento também preocupa. Já se contam ao menos 40 municípios em racionamento de água nessa região, sendo 16 deles no Paraná, incluindo a capital, segundo a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar). A empresa justifica que tem adotado o rodízio ocorre “em função do baixo nível dos rios, poços e barragens que abastecem a região devido à crise hídrica que afeta o Paraná há mais de um ano”.

A ANA declarou situação crítica de escassez quantitativa dos recursos hídricos na Bacia Hidrográfica do Paraná (que engloba partes do próprio Paraná, Mato Grosso do Sul, Goiás, São Paulo e Minas Gerais) até novembro de 2021.

“Desde pelo menos 2013, as chuvas na região estão abaixo da média histórica, com uma piora no último ano. Não podemos dizer que é inesperado, mas que eventos extremos, tanto de seca quanto de mais chuvas, devem ser mais frequentes”, explica Tercio Ambrizzi, professor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP.

Ambrizzi aponta que o cenário enfrentado pela região vai em linha ao descrito no mais recente relatório do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU), divulgado no início de agosto. Entre os efeitos, chuvas fortes e secas prolongadas ficam mais frequentes e mais intensas conforme a temperatura do planeta aumenta.

Assim, a situação não deve ser passageira e apenas neste ano. As projeções mostram aumento das tempestades no Centro-Sul do Brasil, com grandes volumes de chuva concentrados em até cinco dias, enquanto o Nordeste e a Amazônia devem enfrentar períodos secos mais prolongados. Com a aridez, há impactos para os ecossistemas, a saúde humana, a agricultura e a silvicultura.

“Ainda que chova, não é positivo que o volume de água de um mês esteja concentrado em poucos dias, como temos visto”, explica Simone Erotildes Teleginski, professora de meteorologia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul. Segundo ela, as chuvas do Centro e Sul brasileiros são decorrentes da umidade trazida pela Amazônia.

A última grande seca da região, entre 2014 e 2015, castigou o sistema de represas Cantareira, que abastece milhões de pessoas na Grande São Paulo. Na época, o reservatório chegou a ficar abaixo do volume morto. Mesmo com oscilações nos anos seguintes, ajustes no período mais grave e exploração de novas fontes podem ter deixado o sistema livre de novas crises de igual proporção.

Agora, com o Cantareira atingindo níveis abaixo dos 40%, considerado nível de alerta, a preocupação retorna à capital. Na última quinta-feira (24/8), o nível era de 37,7%, sendo que vem caindo nas últimas semanas. Porém, considerando o sistema integrado, está em cerca de 43,5%.

A Companhia de Saneamento Básico de São Paulo (Sabesp) informou que: “não há risco de desabastecimento neste momento na Região Metropolitana de São Paulo, mas reforça a necessidade do uso consciente da água. Também destaca que a queda no nível das represas é normal nesta época do ano devido ao período de estiagem e ao volume baixo de chuvas. A projeção da Sabesp aponta níveis satisfatórios para passar pela estiagem”.

Antecipação limitada dos problemas

Apesar da repetição do cenário crítico, há entraves e resistências em se fazer investimentos visando atravessar estiagens muito mais profundas. “O sistemas são projetados para passar raspando no pior cenário. Nenhum sistema, tanto de abastecimento quanto de energia elétrica é 100% seguro. É um complexo equilíbrio entre garantir a confiabilidade e o custo possível ao público”, diz Jerson Kelman, que já foi presidente da ANA, Aneel e de empresas estaduais de água e energia.

Para Karla Bertocco Trindade, ex-presidente da Sabesp, especialista em infraestrutura, seriam necessários investimentos públicos. “Não há condição de aumentar a capacidade de água, incluindo com diversificação de fontes, sem investimento. Hoje, se precisa de uma margem maior, mas, para aumentar segurança hídrica sem aportes públicos, haveria repasses tarifários”, afirma.

“Não há condição de aumentar a capacidade de água, incluindo com diversificação de fontes, sem investimento”

Com investimentos, também seria possível adequar limites para a perda de água nos sistemas em até 20% recomendados pela OCDE. Hoje, o índice nacional é quase o dobro, segundo o Instituto Trata Brasil, que calcula como resultado da mitigação em torno de 33 bilhões de pessoas abastecidas por um ano. Outra fragilidade é a lacuna de incentivos para exploração de água de reuso por indústria e agricultura, aponta Trindade.

“Isso também poderia ser feito com atualizações regulatórias, por estado ou a nível nacional. Agora, com o Marco Legal do Saneamento Básico, há metas com índice de perdas de água e eficiência energética para as prestadoras de serviço”, aponta. Pela legislação, que completou um ano recentemente, está aberto prazo para a adequação de contratos vigentes, até março de 2022. A revisão poderia ser uma oportunidade para estabelecer contrapartidas em segurança hídrica.

No setor elétrico, a margem de operações hidrelétricas é ainda mais limitada, passando próxima do limite de capacidade. “A percepção de que o futuro pode ser pior faz com que a gente tenha que apertar os cintos, sem necessariamente ampliar capacidade, mas otimizando recursos antes da emergência e pensando em opções mais sustentáveis”, diz Alexandre Street, professor do Departamento de Engenharia Elétrica da PUC do Rio de Janeiro.

Ele avalia que o fundamental seria ampliar a fontes elétricas, para não depender tanto da água, e também não precisar recorrer a medidas emergências poluentes, como o ligamento de térmicas a diesel. Na última quinta-feira (26/8), em valores acumulados, a energia hidráulica correspondia a 45% da matriz, seguida por térmica (29%) e eólica (19%).

Os especialistas – do clima, setor elétrico e gestão de águas – concordam que, a partir de agora, se deve esperar menos chuvas, apostando na redução de desperdícios em grande escala e na ampliação de alternativas para geração de energia elétrica limpa, capazes de mitigar as emissões de gases de efeito estufa que tendem a piorar as condições climáticas brasileiras.

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