Direitos humanos

Corte IDH faz audiência inédita sobre violações contra indígenas isolados

Representantes dos povos Tagaeri e Taromenane afirmam que chegada de petroleiras causou destruição e mortes

CIDH
Audiência pública da Corte Interamericana de Direitos Humanos nesta terça-feira (23/8). Crédito: Gustavo Lima/STJ

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) realizou nesta terça-feira (23/8), no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, audiência pública sobre violações de direitos de dois povos indígenas em isolamento voluntário na Amazônia equatoriana, os Tagaeri e os Taromenane.

É a primeira vez que o tribunal analisa um caso sobre indígenas não contatados, presentes em sete países do continente — no Brasil, há ao menos cinco grupos desse tipo sob risco de desaparecimento.

A ação em questão busca responsabilizar o Equador pela omissão frente à invasão e destruição do território ancestral dos Tagaeri e Taromenane, fundamentalmente por parte de petroleiras e madeireiras do país, e também pela morte de violenta de vários desses indígenas.

De acordo com a denúncia, embora o Estado tenha demarcado parte das terras para proteção dos indígenas, a área não corresponde com o território original deles, já que padrões de deslocamento para plantio e colheita sazonais não foram levados em conta.

Os indígenas também alegam que o artigo 407 da Constituição equatoriana, que permite a realização de atividades extrativistas em áreas demarcadas, os deixam desprotegidos. Eles mencionam indícios da pressão exercidas por empresas petroleiras para diminuir a proteção dos territórios.

Segundo a denúncia, a ineficácia do Estado em proteger efetivamente o território isolado causou três episódios de matanças aos Tagaeri e aos Taromenane, em 2003, 2006 e 2013.

No último caso, dezenas de indígenas acabaram mortos após membros de outro povo indígena da região, os Waorani, atacarem os Tagaeri com armas de fogo e lanças para vingar a morte de dois de seus anciãos.

Esse massacre também deixou como saldo a separação de duas irmãs, de 2 e 6 anos. Elas foram sequestradas pelos Waorani e levadas para outra cidade. Diante disso, o governo equatoriano interveio, resgatando a mais velha, chamada Conta, e a levando para viver sob proteção estatal em outro local. Desde então, ela está sob custódia do Estado e nunca mais viu a irmã.

Conta, hoje adolescente, participou da audiência pública por vídeo e relatou o momento em que agentes estatais a separaram da irmã. “Vieram três pessoas com máscaras e me levaram. Eu chorava, com medo. Depois, não conhecia mais que mundo eu estava. Eu não entendia e queria me comunicar para entender, mas só falavam em espanhol. Eu estava triste, chorando, porque iriam me separar da minha família”.

Ela pediu que os juízes visitem o local. “Eu quero que a Corte venha para conversar pessoalmente. Que venham e digam ao governo que nos deixem viver, livres, com nosso território, que não acabem com a floresta”, rogou.

Convocada como perita pela Corte, a antropóloga Laura Rival destacou que a falta de ações do Equador contra invasores gera, além dos danos ambientais, problemas sociais como aumento de alcoolismo, prostituição e conflitos internos.

Ela afirmou que a ideia de que a exportação do petróleo leva desenvolvimento ao país é equivocada e deve ser combatida. “O petróleo cria muitos problemas, cria muita pobreza. Esses poços não dão recursos, eles retiram. Um país como o Equador tem que cortar esse tumor maligno, transacionar a economia. Temos alternativas de desenvolvimento que poderiam criar mais paz e mais riqueza, também”.

Advogado do povos Tagaeri e Taromenane, David Cordeiro Heredia disse que o Estado optou por “formalismos” e “ações ilusórias” para investigar as violações contra os indígenas. Ele citou que o Equador abandonou o processo sobre as mortes de 2013, por exemplo, simplesmente porque os indígenas não tinham cédula de identidade.

“Para o Estado, as vítimas do massacre de 2013 não eram pessoas, somente porque não tinham cédula de identidade. As investigações nunca foram em frente e nenhum agente de Estado ou as indústrias extrativistas foram julgados pelo sofrimento físico e emocional que causaram”.

Cordeiro reforçou a relação dos povos com seu território ancestral. “A contaminação dos rios e o ruído na construção de estradas constitui um marco violento que pode até ser comparado aos massacres mais brutais. Esses povos são ecossistêmicos, porque sua sobrevivência está ligada especialmente à delicada relação com seus territórios. Se não existissem esses povos isolados, provavelmente as florestas já estariam devastadas”.

Ao defender-se, Marcos Miranda Burgos, subsecretário-geral jurídico da Presidência da República do Equador, reconheceu que o Estado violou os direitos a garantias judiciais e a proteção judicial, especificamente em relação aos massacres de 2003 e 2006. Segundo ele, o Equador falhou em investigar e levar adiante os processos sobre as mortes.

No entanto, o defensor do Estado disse que houve um “desvirtuamento” em relação ao que foi alegado sobre as petroleiras e que o governo trabalha pela proteção do meio ambiente e dos povos indígenas.

Em razão do que foi apresentado, os requerentes pediram que o Estado do Equador seja declarado responsável pela violação dos direitos à vida, à integridade pessoal, à liberdade, a garantias judiciais, à honra e dignidade, à propriedade, à liberdade de locomoção e residência, à proteção judicial, à saúde e direitos culturais e aos direitos da criança, em relação a Conta. Eles pediram também o reconhecimento e ampliação da zona demarcada e a criação de uma “zona de paz”, sem a presença das petroleiras e madeireiras por perto.

O julgamento também teve presença de organizações de proteção de povos indígenas brasileiras, como o Grupo de Trabalho pela Proteção dos Povos Indígenas em Isolamento e Contato Inicial (GTI-PIACI), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).

Toya Manchineri, coordenador da Coiab, afirmou que a chegada do caso à Corte IDH traz relevância ao debate sobre as violações contra povos indígenas em isolamento. “Para nós é muito importante, porque traz o foco para a violação dos Estados contra os povos indígenas isolados. Se pegarmos toda a bacia amazônica, incluindo o Brasil, as violações infelizmente acontecem da mesma forma”.

Kleber Karipuna, da Apib, disse estar esperançoso por uma sentença que amenize os impactos de invasores contra os povos isolados e ressaltou a importância de cortes internacionais como a IDH. “Precisamos que os povos indígenas continuem acessando esses mecanismos internacionais para garantir a proteção dos nossos parentes, das nossas florestas, dos nossos territórios. Isso não é um simples julgamento. É a busca por direitos não só de nossos parentes equatorianos, mas de todos os povos indígenas”.

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