Representatividade no funcionalismo

Conheça as propostas para a nova lei de cotas no serviço público

Projeto de lei poderá ser encaminhado ao Congresso Nacional ainda este ano. Atual legislação perde validade em junho

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Especialistas discutem na Enap melhorias na política de cotas no serviço público / Crédito: Ana Paula Fornari Benvegnu - Enap

O governo federal prepara uma série de modificações na atual lei de cotas raciais no serviço público, que vigora há quase dez anos e perde validade em junho de 2024. O texto já está praticamente fechado e, segundo o Ministério da Igualdade Racial, poderá ser encaminhado ao Congresso ainda este ano.

Entre as novidades previstas estão a ampliação do percentual destinado à ação afirmativa, que passará de 20% para 30%; o estímulo ao ingresso de mulheres negras no serviço público federal; e a adoção de mecanismos que evitem a burla das regras do sistema, especialmente nas universidades federais.

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Hoje, segundo a lei, 20% das novas vagas no funcionalismo devem ser preenchidas por meio do sistema de cotas. Porém, a falta de concursos públicos na última década e a dificuldade de implementação das regras nas escolas de ensino superior fizeram com que os resultados ficassem aquém do esperado.

O governo monitora os números e sabe que são vários os exemplos de não cumprimento das cotas. Dados levantados pelo Instituto República.org apontam que pretos e pardos representam 55,7% do total de brasileiros, porém sua representação é de apenas 35% entre os servidores federais ativos (Siape, 2020).

Além disso, a representatividade racial é ainda menor nas funções de liderança e nas carreiras com melhor remuneração, sendo que, no caso das mulheres negras, a situação é ainda pior.

Informações do Atlas do Estado Brasileiro, levantados em 2021 pelo Ipea, apontam que, na carreira de auditor fiscal da Receita Federal, há 11,6% de homens e apenas 2,9% de mulheres negras. No caso da diplomacia, são 9,2% de homens e 2,9% de mulheres negras.

Entre os delegados da Polícia Federal, a desproporção fica mais nítida: são 16,8% de homens negros. De 14,2% de mulheres nessa posição, somente 1,8% do total são negras.

Para superar essa barreira, o projeto de lei deve propor ao Congresso que, do total de 30% de vagas destinadas à ação afirmativa, metade delas (50%) sejam preenchidas por mulheres negras.

“A gente quer incentivar a entrada de mulheres negras em algumas áreas, mas olhando para o todo. Agora, se não tiver pessoas aprovadas em número suficiente, essas vagas serão revertidas para as demais pessoas negras aprovadas e, depois, para ampla concorrência”, explica a diretora de Políticas de Ações Afirmativas do Ministério da Igualdade Racial, Anna Venturini.

A proposta ainda prevê que os órgãos federais divulguem informações periódicas sobre o cumprimento de metas e cotas raciais. Segundo a diretora do Mir, esse é um ponto importante para executar o acompanhamento e o monitoramento da lei. “Os ministérios também são responsáveis pelo aprimoramento da transparência”, afirma.

Como a nova lei de cotas só deve ser votada no primeiro semestre de 2024, ela não deve ser aplicada para o preenchimento de cerca de 6,6 mil vagas no concurso nacional unificado, previsto para março.

As burlas ao sistema e os comissionados

Nos últimos cinco meses, técnicos de diferentes ministérios estudaram os detalhes da atual lei de cotas — e as decisões judiciais que vieram após a sua introdução no serviço público federal — para preparar o texto que deve ser apresentado ao Congresso.

Uma das principais constatações diz respeito a mecanismos que foram adotados ao longo dos anos para burlar a ação afirmativa. O principal deles foi encontrado nas universidades, onde havia o sistemático fracionamento de vagas.

Com isso, os departamentos de determinados cursos lançavam editais para uma ou duas vagas, sendo que a atual lei só se aplica a partir de três vagas. Após a adoção de providências infralegais, o fracionamento passou a ser combatido.

Na nova lei, caso seja aprovada no Congresso, a cota se aplicará a todos os concursos federais a partir de duas vagas em disputa. Ou seja, nesse caso, ela seria aplicada sobre 50% do total de vagas.

Outro tema tratado na nova lei diz respeito à garantia de que a política afirmativa será respeitada na convocação de candidatos que estão no cadastro de reserva. Essa burla ocorria até 2017, quando o Supremo Tribunal Federal entendeu que a regra também deveria ser cumprida para o preenchimento dessas vagas.

O governo ainda deverá propor ao Congresso que as chamadas bancas de heteroidentificação, que comprovam a cor declarada pelo candidato, mudem de nome. Com a aprovação do texto, esses grupos de avaliação serão chamados de bancas de confirmação.

As bancas que validam a cor de pele declarada pelo candidato estão na lista de pontos que devem enfrentar resistências no Congresso, na avaliação do governo. Em outubro, o Legislativo aprovou a Lei de Cotas para as universidades, sancionada na segunda-feira (13/11) pelo presidente Lula.

Em paralelo, governo e sociedade discutem mecanismos para ampliar a ocupação de cargos comissionados por pessoas negras. Atualmente, o governo trabalha com uma meta de 30%. Embora tenha sido estipulada por meio de decreto, ela é atingida apenas considerando os números globais. Porém, há grandes variações no governo, e a meta não é alcançada em órgãos específicos.

Para Anna Venturini, do Ministério da Igualdade Racial, a própria lei de cotas é o primeiro passo para estimular esse movimento, uma vez que 60% dessas funções devem ser ocupadas por servidores efetivos.

“As cotas impactam diretamente o preenchimento de cargos comissionados. Hoje, 60% dessas funções são para servidores efetivos. Logo, a gente precisa de servidores negros no serviço público por um determinado período para ocupar essas posições”, afirma Anna Venturini, diretora de Políticas de Ações Afirmativas do Ministério da Igualdade Racial.

Na avaliação da coordenadora da secretaria-executiva do Movimento Pessoas à Frente, Clarissa Malinverni, também é preciso romper barreiras culturais que criam o chamado “teto de vidro” para homens e mulheres negras no serviço público.

“As experiências nos estados, em outros países e na iniciativa privada têm demonstrado que romper ciclos de indicações de redes homogêneas, sem tirar os fatores da confiança e do alinhamento político, que são super importantes, é crucial. É preciso que existam processos de seleção estruturados, que permitam amplo acesso e ampla concorrência”, explica a pesquisadora.