* Esta reportagem é uma produção conjunta de JOTA e ((o))eco
Daniel Freire é diretor do frigorífico Mercúrio, localizado em Castanhal, Pará. Ele caminha pelas instalações do abatedouro cumprimentando funcionários vestidos com aventais brancos e botas, salpicados de manchas de sangue, enquanto transformam bois adquiridos em fazendas do estado em cortes de carne consumidos no Brasil e no exterior. Uma a uma, ele vai passando pelas salas da instalação — abate, desossa, miúdos — e explicando sobre a reutilização do sangue pela indústria farmacêutica, sobre os ossos que dão origem a farinhas utilizadas em granjas e as partes dos bois que são compradas por pet shops para virar brinquedos de cachorros.
Perturbador para quem não é do ramo, o cenário é motivo de orgulho para Freire. O frigorífico teve um dos melhores resultados nas auditorias apresentadas por companhias que firmaram os chamados Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) da Carne no Pará. Os acordos, entre o Ministério Público Federal (MPF) e frigoríficos paraenses, têm por objetivo impedir a compra de cabeças de gado advindas de fazendas que desmataram a Amazônia ou se utilizaram de outras práticas ilícitas, como exploração de trabalho escravo ou ocupação de territórios indígenas.
A unidade de Castanhal do Frigorífico Mercúrio conseguiu comprovar que, em 2016, não adquiriu nenhuma cabeça de gado proveniente de fazendas com irregularidades. Apesar do desempenho excelente, entretanto, o Mercúrio não recebeu nenhuma distinção do MPF. Isso porque o órgão considerou satisfatórios os resultados das empresas com até 30% de compras irregulares em 2016, e optou por não punir nenhuma companhia auditada.
De acordo com os dados, divulgados entre os dias 8 e 9 de março, mesmo com os TACs, 17 frigoríficos adquiriram mais de 245 mil cabeças de gado de fazendas com irregularidades. Desse total, pelo menos 146 mil dos animais vieram de localidades que desmataram a Amazônia. As demais irregularidades envolvem, entre outras, compras de fazendas embargadas pelo Ibama ou de localidades sem Cadastro Ambiental Rural (CAR) ou Licença de Atividade Rural (LAR).
Apesar dos números, o MPF optou por não aplicar as sanções previstas nos acordos. Segundo o procurador Daniel Azeredo, que está à frente dos TACs desde 2009, caberá ao mercado valorizar as companhias com melhores resultados. Ficarão sob foco de fiscalização, apenas os frigoríficos que não apresentaram auditorias ou não assinaram TACs.
A decisão conseguiu desagradar tanto entidades que combatem o desmatamento na Amazônia quanto parte dos frigoríficos que fizeram auditorias. O fato acendeu ainda uma luz de alerta: tão importantes para o combate ao desmatamento na Amazônia, estariam os TACs perdendo a força?
Três Maracanãs
Firmados com empresas sediadas no Pará, entre frigoríficos e curtumes, os TACs da Carne começaram a ser assinados em 2009. Por meio dos documentos, as companhias se comprometem, dentre outros pontos, a não adquirir bois de fazendas que tenham desmatado territórios após a assinatura do TAC, que constem na “lista suja do trabalho escravo” do Ministério do Trabalho ou que tenham sido condenadas judicialmente por invasão de terras indígenas, violência agrária ou grilagem de terra.
Os termos tornaram os donos de frigoríficos responsáveis por parte da cadeia produtiva do setor. O fato foi motivo de comemoração por ambientalistas e, num primeiro momento, desagradou empresários e pecuaristas.
“Em 2009, as pessoas não queriam se ajustar”, diz Francisco Fonseca, coordenador de Produção Sustentável da ONG The Nature Conservancy.
A escolha de assinar os documentos com os frigoríficos foi estratégica: existem cerca de 400 mil fazendas de gado no Pará, que abastecem pouco mais de 100 frigoríficos com licenças estaduais e federais. “O TAC trabalha assim: se forem reunidos todos os produtores, teríamos que disponibilizar três Maracanãs cheios. Se conversarmos com quem compra gado de todos esses produtores, eu posso fazer uma reunião em uma sala de cem pessoas”, afirma Fonseca.
De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o Pará ocupa o posto de líder de desmatamento na Amazônia Legal desde 2006. Em 2009, quando foram assinados os primeiros TACs da Carne, mais de 4,2 mil km² de florestas haviam sido derrubadas no estado. Segundo o projeto TerraClass, do Inpe, em 2014 a pecuária ocupava aproximadamente 60% do total de áreas desmatadas em toda Amazônia.
“Pecuária e desmatamento andam juntos”, sintetiza Adriana Charoux, da campanha Amazônia, do Greenpeace. Segundo ela, a pecuária requer um nível de investimento menor em relação à soja, por exemplo, além de apresentar outros benefícios. “Estudos estão mostrando que o produtor não opta por outras formas produtivas, mesmo que mais lucrativas”, diz. Segundo ela, isso ocorre porque o gado pode ser vendido com mais rapidez caso o pecuarista precise de dinheiro. “É dinheiro ‘spot’”, conclui.
Segundo levantamento do Inpe, a região da Amazônia Legal, que abrange nove estados brasileiros, passou por uma queda na taxa de desmatamento entre 2004 e 2012. A partir de então, os dados demonstram que o desmatamento voltou a crescer.
De acordo com o pesquisador sênior do instituto de pesquisa Imazon, Paulo Barreto, de 2012 a 2017, a taxa média de desmatamento na Amazônia Legal aumentou 38%. Ele relaciona a assinatura dos TACs da Carne tanto à queda quanto à elevação das áreas devastadas. Segundo ele, em um primeiro momento as companhias que fizeram acordos com o MPF influenciaram na queda do desmatamento. Posteriormente, dentre outros problemas, ocorreu o que Barreto chama de “vazamento”.
“Quem assinou o TAC desmatou menos, porém as fazendas não cadastradas tiveram uma taxa de desmatamento muito maior do que seria o esperado. Então acabou que neutralizou, e o efeito líquido do acordo acabou sendo nulo”, afirmou.
“[O TAC] foi um fator inibidor de desmatamento, mas não foi suficiente para conter o seu avanço, concorda Adriana, do Greenpeace.