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Pelo MP: O teste de integridade

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Capítulo 1

Dez medidas de combate à corrupção

Da lista de dez medidas contra a corrupção apresentadas pelo Ministério Público Federal e que contam com o apoio de milhares de brasileiros para projetos de lei de iniciativa popular, a primeira, referente ao tema mais amplo da prevenção à corrupção, abrange uma proposta já envolta em polêmica: o teste de integridade.

O teste de integridade, de fato, vem causando certa apreensão entre alguns no meio jurídico brasileiro – mas não deveria. A proposta veicula nada mais que um instrumento para prevenir e constatar ilícitos administrativos, cíveis e criminais e não representa nenhuma extraordinária limitação a direitos de quem quer que seja. É uma medida eficaz de combate à corrupção, recomendado pelas Nações Unidas e por organismos como a [simple_tooltip contente=’TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. POPE, Jeremy. TI Source Book 2000 – Confronting corruption: the elements of a national integrity system. Disponível em: <http://archive.transparency.org/publications/sourcebook>, acesso em 02.02.2016.’]Transparência Internacional[/simple_tooltip]. Não é uma novidade no exterior: testes de integridade vêm sendo aplicados com sucesso em diversos países, como Estados Unidos, Austrália e Reino Unido. Na prática, não é sequer no Brasil uma grande novidade, considerando que nosso direito processual penal já prevê instituto bastante semelhante em muitos aspectos (a infiltração de agentes).

A polêmica instaurada tem como base supostas (e, a nosso ver, inexistentes) violações a direitos fundamentais e, especialmente, a invocação equivocada da dogmática penal referente ao chamado “crime impossível por obra do agente provocador”.

Em razão do entendimento hoje aparentemente prevalente no campo penal quanto ao chamado “flagrante provocado”, talvez seja necessária uma evolução jurisprudencial e doutrinária para se admitir a utilização de testes de integridade para fins de sancionamento penal da própria conduta praticada pelo agente público na simulação. Todavia, com relação a seu emprego para fins de sancionamento administrativo – como instrumento para avaliação do preenchimento dos requisitos subjetivos para exercer a função pública (idoneidade moral e respeito aos princípios da administração pública – e para investigações cíveis e investigações criminais sobre fatos distintos – ou seja, como meio para a obtenção de elementos informativos sobre ilícitos já praticados ou em execução –, o teste de integridade não deveria inspirar objeções.

Para a compreensão da polêmica, é antes importante entender, de acordo com a concepção do projeto de lei, o que é o teste de integridade, quando e como poderá utilizado e a que objetivos se presta.

Capítulo 2

O que é o teste de integridade

Simulação

Os testes de integridade consistem “na simulação de situações sem o conhecimento do agente público, com o objetivo de testar sua conduta moral e predisposição para cometer ilícitos contra a Administração Pública” ([simple_tooltip content=’Disponível em <http://www.combateacorrupcao.mpf.mp.br/10-medidas/docs/medidas-anticorrupcao_versao-2015-06-25.pdf>, acesso em 27.01.2016.’]art. 3º da proposta[/simple_tooltip]). Cuida-se, como se vê, da criação de uma oportunidade disfarçada para a prática de um ilícito. A encenação não visa a criar no funcionário público a predisposição para a prática de um ilícito administrativo ou crime. Não visa a incutir no funcionário público a ideia da prática do ato de corrupção, muito menos forçá-lo a tanto. Visa, isto sim, a aferir se realmente existe de sua parte a predisposição ao ato ilícito e, concomitantemente, se essa predisposição, efetivamente testada mediante a encenação de uma situação concreta, levará este funcionário a praticar a conduta ímproba.

De acordo com o [simple_tooltip content=’Nações Unidas. Technical Guide to the United Nations Convention Against Corruption. Nova Iorque: 2009, p. 186. Disponível em <https://www.unodc.org/documents/corruption/Technical_Guide_UNCAC.pdf>, acesso em 27.01.2016.’]Manual Técnico para a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção[/simple_tooltip] – convenção da qual o [simple_tooltip content=’This Decreto n.º 5.867/2006.’]Brasil é signatário[/simple_tooltip]:

Integrity testing is a method that enhances both the prevention and prosecution of corruption and has proved to be an extremely effective and efficient deterrent to corruption. Integrity testing is usually utilized in circumstances where intelligence exists providing indications that an individual or a number of individuals, usually public officials, are corrupt.

A scenario is created in which, for example, a public civil servant is placed in a typical everyday situation where he or she has the opportunity to use personal discretion in deciding whether or not to engage in criminal or other inappropriate behaviour. The employee may be offered the opportunity to take a bribe by an undercover officer or be presented with an opportunity to solicit a bribe through, for example, an abuse of public functions.

Como expressamente consta na justificativa do anteprojeto:

O objetivo central do teste de integridade é criar, preventivamente, a percepção de que todo o trabalho do agente público está sujeito a escrutínio e, a qualquer momento, a atividade pode estar sendo objeto de análise, inclusive sob o ponto de vista de honestidade. A realização do teste não parte da premissa da desconfiança sobre os servidores em geral, mas sim da noção de que todo agente público tem um dever de transparência e accountability, sendo natural o exame de sua atividade.

Aplicado o teste de integridade, seus resultados poderão ser utilizados para instruir tanto um processo administrativo quanto processos ou investigações criminais (policiais ou do Ministério Público) e cíveis (inquéritos civis).

Capítulo 3

Quando e como poderá ser aplicado o teste de integridade

As regras

Segundo o anteprojeto, “a administração pública poderá, e os órgãos policiais deverão, submeter os agentes públicos a testes de integridade aleatórios ou dirigidos, cujos resultados poderão ser usados para fins disciplinares, bem como para a instrução de ações cíveis, inclusive a de improbidade administrativa, e criminais” ([simple_tooltip content=’As demais menções a artigos correspondem aos dispositivos do anteprojeto de lei, disponível em <http://www.combateacorrupcao.mpf.mp.br/10-medidas/docs/medidas-anticorrupcao_versao-2015-06-25.pdf>.’]art. 2º da proposta[/simple_tooltip]). Nesse artigo já fica claro que um dos principais focos de aplicação do teste de integridade é a conduta de policiais, que, pela particular  gravidade da atividade que desempenham e pelo potencial de afetação a direitos fundamentais – como os de cidadãos sujeitos a abordagens policiais – precisa de fiscalização constante e rigorosa. Mas não somente policiais podem ser fiscalizados pelo instrumento: qualquer agente público pode ser submetido aos testes, que “serão realizados preferencialmente pela Corregedoria, Controladoria, Ouvidoria ou órgão congênere de fiscalização e controle” (art. 4º).

O teste de integridade também pode ser realizado “pelo Ministério Público ou pelos órgãos policiais, mediante autorização judicial, em investigações criminais ou que digam respeito à prática de atos de improbidade administrativa” (art. 9º). Assim, quando o objetivo é a verificação da prática de um ato de improbidade administrativa (pelo Ministério Público, titular da ação civil por ato de improbidade administrativa) ou de um crime (pelo Ministério Público ou pela polícia, atores responsáveis pela investigação criminal), a medida depende de prévia autorização judicial. Considerando a especificidade da hipótese, é necessária a prévia existência de uma investigação criminal (procedimento investigatório criminal do Ministério Público ou Inquérito Policial) ou cível, por ato de improbidade administrativa (inquérito civil).

Ainda de acordo com o art. 2º, [simple_tooltip content=’ZANELLATO, Vilvana Damiani. Teste de integridade: 1ª medida contra a corrupção. Disponível em <http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/teste-de-integridade-1a-medida-contra-a-corrupcao/>, acesso em 27.01.2016′]os testes podem ser aleatórios ou dirigidos, ou seja, podem ser aplicados “ao agente sobre o qual se tem suspeita ou notícia da prática de ato de improbidade”[/simple_tooltip] ou, no caso dos testes aleatórios, em relação a qualquer agente, como verdadeira política permanente de fiscalização e controle, independentemente de notícia específica contra determinada pessoa. Quando se tratar de um teste de integridade dirigido, a suspeita deve ser fundamentada: não pode ser fruto de simples construção mental daquele responsável por aplicar o teste.

Em qualquer caso, seja para a posterior instrução de processos administrativos, cíveis ou criminais, “os órgãos que forem executar os testes de integridade darão ciência prévia ao Ministério Público, de modo sigiloso e com antecedência mínima de 15 (quinze) dias, e informarão a abrangência, o modo de execução e os critérios de seleção dos examinados, podendo o Ministério Público recomendar medidas complementares” (art. 6º).

A simulação não pode criar para o agente público sujeito ao teste uma oportunidade de vantagem exagerada, desproporcional. Dito de outra forma, o agente que for realizar a simulação não pode oferecer uma vantagem muito alta em troca de um benefício muito pequeno – por exemplo, dar ou prometer milhares de reais a um agente de trânsito para que ele deixe de aplicar uma pequena multa por estacionamento irregular.

Essa proporcionalidade, logicamente, deve ser ponderada de acordo não somente com a remuneração do agente público mas também com os benefícios diretos e indiretos buscados pelo corruptor e os interesses potencialmente em jogo na simulação. Uma pessoa que se preocupa com sua imagem pública, por exemplo, poderia pagar uma propina vultosa para não ser flagrada dirigindo alcoolizada. Tudo dependerá das peculiaridades concretas do teste. Além disso, o sentido do teste de integridade é reproduzir uma situação real, costumeira, e não uma situação extrema. O desrespeito a essa proporcionalidade pode caracterizar um desmedido incentivo, uma verdadeira indução à prática do crime e se assemelharia àquilo que outros ordenamentos chamam de [simple_tooltip content='”Law enforcement officials go too far when they implant in the mind of an innocent person the disposition to commit the alleged offense and induce its commission in order that they may prosecute.” U.S. Supreme Court, Jacobson v. United States (No. 90-1124), decisão de 06.04.1992. Disponível em: <https://www.law.cornell.edu/supremecourt/text/503/540>, acesso em 27.01.2016.’]entrapment[/simple_tooltip], [simple_tooltip content=’“(…) consideration should be given to existing restrictions intended to prevent “entrapment”, whereby undercover agents are permitted to create opportunities for a suspect to commit an offence, but are not allowed to offer any actual encouragement to do so.” Nações Unidas. Technical Guide to the United Nations Convention Against Corruption. Nova Iorque: 2009, p. 186. Disponível em: <https://www.unodc.org/documents/corruption/Technical_Guide_UNCAC.pdf>, acesso em 27.01.2016.’]desaconselhado pelas Nações Unidas[/simple_tooltip].

Embora a modicidade de uma oferta num teste de integridade não conste expressamente do anteprojeto (há em relação a isso apenas uma breve menção na justificativa), tal necessidade pode ser extraída do princípio da proporcionalidade. O desrespeito à proporcionalidade poderá levar à invalidação da medida pela via judicial. Considerando que o anteprojeto de lei é omisso quanto a esse aspecto, mesmo que, a rigor, seja algo dependente da apreciação de cada caso concreto, há aí certo espaço para aprimoramento do texto, talvez pela inclusão de um parágrafo no artigo 3º, no qual se faça referência à necessária modicidade da proposta, quando for desse tipo o teste empregado.

Ademais, os testes de integridade não podem ser aplicados de modo indiscriminado, devendo estar embasados em uma investigação em curso ou ao menos em informações de inteligência que indiquem a possibilidade da prática de atos de corrupção em certo grupo de funcionários públicos. Até pelos custos materiais e humanos envolvidos, não há sentido em se aplicar testes de integridade em toda e qualquer repartição pública de nossa gigantesca administração. Mesmo nos chamados testes aleatórios, nos quais não são previamente individualizados os servidores a serem submetidos aos testes, há que se aplicá-los em órgãos ou atividades em relação as quais se possa previamente perceber uma potencial vulnerabilidade.

O teste deve ser devidamente registrado e documentado pela autoridade responsável pela execução da medida – por gravação audiovisual ou por qualquer outro método (arts. 5º e 10) –, de modo a permitir seu controle, incluindo o eventual questionamento pelo funcionário sujeito a essa fiscalização. A impugnação, pelo funcionário que for “alvo” do teste de integridade, pode se dar em sede administrativa – no bojo do processo administrativo em que está sendo realizada a medida – ou judicial, em ação própria ou dentro do processo em que tiver sido judicialmente autorizada, se for esse o caso. Ao referir-se ao registro “por qualquer outro método”, a proposta abre a possibilidade de utilização de quaisquer recursos tecnológicos atuais – como e-mails e logs de diálogos travados em programas de mensagens instantâneas –, ou mesmo recursos ainda hoje não existentes. O que importa é que sejam fiéis aos fatos e que sejam devidamente preservados, como meio para a adequada verificação de sua legalidade.

Capítulo 4

Para que serve o teste de integridade

Extrai-se dos termos da proposta, especialmente dos arts. 2ª e 9º, que o teste de integridade pode ser utilizado para três propósitos distintos: (a) como instrumento de aferição de um ilícito civil e administrativo – correspondente à inobservância, pelo funcionário público, dos princípios regentes da administração pública, especialmente os princípios da moralidade e da legalidade; (b) como instrumento de investigação de crimes ou atos de improbidade já praticados ou em execução; (c) como instrumento para a constatação de um crime a ser punido de modo independente de outros crimes sob investigação, anteriores ou em andamento. Nessas três hipóteses, os resultados do teste de integridade podem ser utilizados respectivamente para: (a) o sancionamento administrativo e cível, por ato de improbidade administrativa; (b) para instruir investigações sobre outros fatos; e (c) para o sancionamento criminal da própria conduta constatada no teste.

Por coerência, apenas uma destas situações poderia ser o campo de debates à luz da dogmática penal: o teste de integridade como instrumento para a constatação de um crime independente de outros crimes sob investigação – ou seja, o teste utilizado para o sancionamento criminal da própria conduta do funcionário público constatada na simulação. Aqui, de fato, há larga margem para debate, considerando o atual panorama jurisprudencial e doutrinário. No tópico seguinte serão tratadas cada uma dessas hipóteses.

As provas produzidas num teste de integridade regularmente aplicado pela administração podem ser posteriormente utilizadas para instruir processos cíveis, por improbidade administrativa ou criminais. Da mesma sorte, as provas produzidas em teste de integridade realizado mediante autorização judicial podem ser compartilhadas em outras esferas. A possibilidade de compartilhamento de provas entre as esferas administrativa e a esfera judicial, bem como entre as esferas cível e criminal, é assentada em nossa jurisprudência.

1. Instrumento de aferição da inobservância dos princípios da administração pública (sancionamento administrativo e civil)

O concurso público é o instrumento pelo qual são avaliados o conhecimento técnico dos candidatos a um cargo público e o preenchimento de outros requisitos legais, como aptidão física e mental. Para o serviço público da União, autarquias e fundações públicas federais, esses requisitos gerais estão no [simple_tooltip content=’Lei 8.112/90, art. 5º: São requisitos básicos para investidura em cargo público: I – a nacionalidade brasileira; II – o gozo dos direitos políticos; III – a quitação com as obrigações militares e eleitorais;IV – o nível de escolaridade exigido para o exercício do cargo;V – a idade mínima de dezoito anos;VI – aptidão física e mental. § 1o  As atribuições do cargo podem justificar a exigência de outros requisitos estabelecidos em lei.’]art. 5º da lei 8.112/90[/simple_tooltip]. Por melhores que sejam as provas aplicadas e por mais que os concursos públicos venham evoluindo, cobrando dos candidatos o conhecimento quando às suas obrigações e sobre ética no serviço público, pouco podem fazer para evitar que pessoas mal intencionadas ingressem no serviço público, dispostas a cometer crimes e atos de improbidade, atraídas pelo ganho rápido e fácil da corrupção. O candidato e o servidor público já empossado podem ser altamente qualificados, podem ser exímios conhecedores de seus deveres, e mesmo assim praticar ilícitos. O mesmo se pode dizer da experiência e da aprovação em avaliações de desempenho, às quais alguns servidores públicos ocasionalmente são submetidos. Para a posse em cargos em comissão, para os quais não há sequer aplicação de provas – muito menos de ética no serviço público –, a seleção é ainda mais permeável a pessoas desonestas.

Um caso emblemático: investigado no complexo de investigações e processos denominado “operação Lava Jato”, um graduado e experiente funcionário da Petrobras S.A. chegou a figurar na capa do [simple_tooltip content=’“Envolvido em esquema de corrupção já foi capa do código de ética da Petrobras”. Disponível em: <http://extra.globo.com/noticias/extra-extra/envolvido-em-esquema-de-corrupcao-ja-foi-capa-do-codigo-de-etica-da-petrobras-15573111.html>; acesso em 27.01.2016′]Código de Ética da empresa[/simple_tooltip]. Enredado por diversas provas, o (ex)funcionário fechou com um Ministério Público Federal um acordo de colaboração premiada, pelo qual confessou sua participação nos crimes investigados e relatou fatos novos, além de devolver cerca de 100 milhões de dólares recebidos reconhecidamente como propina. O exemplo mostra claramente que qualificação técnica e experiência não têm nada a ver com probidade.

De acordo com ao art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa (lei n. 8.429/92), “constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”.

No serviço público federal, os deveres do funcionário estão previstos no art. 116 da lei n. 8.112/90. Dentre tais deveres destacam-se os de “ser leal às instituições a que servir” (inciso II) e “manter conduta compatível com a moralidade administrativa” (inciso IX).

O funcionário público que é flagrado num teste de integridade, por exemplo, solicitando ou aceitando propina em razão da sua função estará desrespeitando seu dever de manter conduta compatível com a moralidade administrativa e violando seus deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições. Por essa conduta, poderá ser punido administrativamente com a perda do cargo, seja pela não confirmação em seu estágio probatório, seja pela condenação em regular processo administrativo, caso se trate de servidor estável. Pela mesma conduta, tenha sido o teste aplicado mediante autorização judicial ou pela própria administração, poderá ser processado por ato de improbidade administrativa, o que também o sujeita à perda da função pública, dentre outras possíveis sanções (art. 12, III, da lei n. 8.429/92).

Quanto à punição administrativa e cível decorrente da aplicação do teste de integridade, não há maiores restrições para sua admissão, considerando a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Sobre esse ponto, [simple_tooltip content=’OLIVEIRA, J. M. F. et al. Como combater a corrupção? Uma avaliação de impacto legislativo de propostas em discussão no Congresso Nacional. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Julho/2015 (Texto para Discussão nº 179), p. 19-020. Disponível em: <http://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td179>; acesso em 29.01.2016′]estudo realizado pelo Senado a respeito da medida é bastante incisivo[/simple_tooltip]:

No direito comparado, Cortes judiciais têm aceitado a prática, como parte integrante do “contrato de trabalho”, da relação entre empregador e empregado. As decisões das Cortes que vêm aceitando a prática se baseiam no argumento de que o investigado não se exime por ter sido induzido por outrem. No Brasil, porém, essa defesa valeria, por se configurar flagrante preparado (STJ, Sexta Turma, HC nº 118.989/SP, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe de 08/3/2010).

É possível sustentar, porém, com maior nível de segurança, que o teste poderia ser usado, pelo menos, para suscitar punições administrativas. Nesse sentido já decidiu o próprio STF, no julgamento do Mandado de Segurança (MS) nº 22.373, Relatora Ministra Ellen Gracie. Nesse julgado, a Corte considerou que a proibição do flagrante preparado, constante da citada Súmula nº 145, não se aplica aos processos administrativos disciplinares.

A propósito, já no julgamento do HC nº 40.289/DF, Relator Ministro Gonçalves de Oliveira, DJ de 27/11/1963 – um dos precedentes que inspiraram a Súmula nº 145 – ficou consignado não ter havido crime, mas também se registrou ter ocorrido “fato realmente grave e que enseja processo administrativo para demissão do acusado” (voto do Relator, p. 4).

Assim, é razoável supor que o teste de integridade, se adotado, sofrerá grandes questionamentos quanto à constitucionalidade de sua aplicação na esfera penal; o mesmo não se pode dizer, contudo, da aplicação às searas administrativa e civil, em que a tendência seria a admissão.

Sendo assim, como instrumento para aferir a inobservância dos princípios da administração pública e ensejar o sancionamento administrativo e civil do funcionário público faltoso, o teste de integridade é claramente compatível com nosso ordenamento jurídico.

2. Instrumento de investigação de crimes ou atos de improbidade já praticados ou em execução (apuração de fatos distintos)

O teste de integridade pode se prestar a meio de colheita de elementos de convicção a respeito de crimes ou atos de improbidade já praticados ou em execução. Existindo uma investigação em curso, administrativa, policial ou do Ministério Público, que tenha por objeto crimes já perpetrados ou em andamento, teste de integridade pode ser útil para reunir várias informações relevantes, como a identificação de servidores e terceiros envolvidos e seu modus operandi.

A utilidade do teste de integridade, nessa hipótese, será a de instruir investigações sobre outros ilícitos que não a própria conduta constatada no teste de integridade.

Um exemplo: a corregedoria de um órgão policial com atribuição de polícia rodoviária investiga o pagamento de propina por caminhoneiros a equipes policiais suas. A investigação fora iniciada com base no depoimento de um caminhoneiro, preso por policiais civis no momento em que fazia a entrega de certa quantidade de mercadoria contrabandeada a um receptador, que estava sendo interceptado com autorização judicial. O caminhoneiro, entretanto, não consegue apontar com exatidão o local nem a equipe policial a que havia pago propina. Coincidentemente, no curso dessa investigação, a corregedoria desse órgão recebe uma notitia anônima dando conta de que uma de suas equipes policiais, responsável pela fiscalização de determinado trecho de uma estrada, está cobrando propina para a liberação de caminhões transportando carga ilegal. O relato anônimo informa o valor que costuma ser cobrado e e apresenta uma descrição preliminar dos policiais envolvidos. Com base no depoimento do caminhoneiro e nas informações da notitia, a corregedoria resolve realizar um teste de integridade. Para isso, um funcionário simula ser um motorista de caminhão fazendo o transporte de carga e passa pelo trecho da rodovia, quando é abordado e achacado pelos policiais, de forma semelhante ao relato do motorista que motivou a instauração das investigações. O teste, regularmente documentado, é usado para fundamentar a realização de uma diligência de reconhecimento pessoal, na qual o motorista do caminhão acaba por identificar os policiais a quem havia pago propina. Os elementos de convicção, nesse exemplo, podem ser usados para instruir as investigações ou processo criminal decorrente da prisão do caminheiro pelos policiais civis.

Outro exemplo: no curso de um inquérito civil, que tem por objeto apurar supostas fraudes em licitações em determinado ente público municipal, o Ministério Público tem diante de si diversos nomes de funcionários que assinaram os atos da licitação que se revelaram altamente prejudiciais ao patrimônio público. Estes funcionários se calaram sobre os fatos quando formalmente ouvidas, mas aparentavam estar bastante temerosos. Suspeita-se que o chefe da repartição, embora não assine nenhum ato do procedimento licitatório, seja o mentor das fraudes, considerando que, além de ter o poder de provocar demissão dos demais, é o único funcionário do setor com qualificação para realizar fraudes com a sofisticação identificada – os demais funcionários têm baixa instrução escolar e não aparentam ter auferido vantagem pecuniária. O Ministério Público resolve, então solicitar a realização de um teste de integridade, o que é deferido pelo juiz competente. A simulação é realizada: um agente público, passando-se por um empresário fornecedor de mercadorias usualmente adquiridas, procura o chefe do setor e simula o interesse em participar de licitações daquele órgão. No curso da reunião, gravada em vídeo com uma câmera escondida, o chefe do setor propõe fraudar as licitações em benefício da empresa, cobrando um determinado valor de propina. Nos diálogos, o chefe suspeito informa a conta na qual deve ser depositado o valor correspondente à vantagem indevida. As informações obtidas nesse teste de integridade são utilizadas para uma “quebra” de sigilo bancário, que resulta na identificação de um laranja e de muitos depósitos anteriores na conta informada pelo chefe do setor, inclusive depósitos feitos por pessoas relacionadas exatamente às empresas vencedoras de licitações anteriores que se suspeitava haviam sido fraudadas.

Nos exemplos citados, o teste de integridade guarda alguma semelhança com o instrumento da infiltração de agentes, ou infiltração policial, técnica especial de investigação prevista na Lei de Organizações Criminosas (lei n.º 12.850/13, arts. 10 a 14). A infiltração policial havia sido introduzida no ordenamento brasileiro com a alteração feita pela lei n.º 10.217/01 na Lei do Crime Organizado (art. 2º, II e V da lei n.º 9.034/95) e já era prevista também no art. 53, incisos I e II, da lei n.º 11.343/2006 (Lei de Drogas).

ARAS explica assim a [simple_tooltip content=’ARAS, Vladimir. O repórter infiltrado. Disponível em: <https://blogdovladimir.wordpress.com/2012/03/30/o-reporter-infiltrado/>, acesso em 02.02.2016.’]infiltração de agentes[/simple_tooltip]:

Na infiltração policial, a Polícia toma parte dos eventos criminosos, mediante dissimulação. O policial destacado para a missão faz um papel, assume uma personagem, faz-se passar por quem não é para obter provas de um crime. Obviamente, o sigilo é essencial, e o risco desse tipo de diligência é acentuado, pois o policial estará inserido no contexto criminoso; é um ator.

[simple_tooltip content=’LIMA, Renato Brasileiro de. Manuela de Processo Penal. Salvador: Juspodivm, 2 ed, 2014, 763-764.’]LIMA[/simple_tooltip] identifica as seguintes características do agente infiltrado: a) agente policial; (b) atuação de forma disfarçada, ocultando a verdadeira identidade; c) prévia autorização judicial; d) inserção, de forma estável, e não esporádica, nas organizações criminosas; e) fazer-se passar por criminoso para ganhar a confiança dos integrantes da organização; f) objetivo precípuo de identificar fontes de provas de crimes graves.

Em ambos instrumentos o que se tem é uma simulação. Na comparação entre o anteprojeto do teste de integridade e a Lei de Organizações Criminosas notam-se algumas diferenças, especialmente quanto aos requisitos para uma e outra medida. Entretanto, no que diz respeito a sua execução, a diferença essencial, a nosso ver, é que, diversamente do teste de integridade, na infiltração de agentes a simulação é prolongada: ainda que seja limitada no tempo, o que permite o sucesso da diligência é a relativa estabilidade do vínculo criado pelo policial disfarçado (undercover agent) e a organização criminosa investigada. No teste de integridade, a seu turno, tem-se uma simulação pontual, episódica, mesmo que seja desdobrada em mais de um ato e em mais de uma ocasião. Não há, no teste de integridade, a característica de permanência própria da técnica especial de infiltração de agentes.

Dir-se-á também que, na infiltração de agentes, o policial deve agir como um observador ou, no máximo, um partícipe de crimes de iniciativa alheia, jamais como um “agente provocador”, a instigar a prática da conduta ilícita. A linha é tênue num e noutro caso. Em resposta, pode-se dizer que o funcionário que aplicar o teste de integridade, assim como o agente infiltrado, não pode “fazer nascer” a ideia de praticar o crime. Sua função, assim como a do agente infiltrado, não é a de incutir no sujeito a vontade de praticar o ilícito; não é a de convencê-lo a uma conduta que não teria a intenção de praticar não fosse a insistência de quem aplica o teste.

A comparação com a técnica da infiltração policial revela que o teste de integridade não é uma novidade absolutamente estranha no ordenamento brasileiro. Tampouco deve inspirar maior resistência jurisprudencial ou acadêmica quando utilizada para investigar fatos pretéritos ou em execução.

3. Instrumento para a constatação de um crime e sua punição independentemente de outros crimes

A polêmica maior em relação à aceitação do teste de integridade no Brasil reside na possibilidade de sua utilização para punir criminalmente a própria conduta ilícita cometida no teste. É saber: comete crime o funcionário público que, num teste de integridade, é flagrado praticando ato de corrupção (em sentido amplo)? Ou isso será isso um “crime impossível”?

A doutrina brasileira assim conceitua o flagrante provocado, também sinônimo de flagrante preparado ou crime impossível por obra do agente provocador:

Trata-se do chamado flagrante provocado, erigido a crime impossível e, assim, não se poderá falar em flagrante. Para que haja o chamado flagrante provocado, a atuação do agente da autoridade deve ser tal que acabe transformando o ato delituoso em verdadeira peça teatral, sendo manipulada a vontade do agente, que passa a ser um mero ‘ator’ do fato criado, de molde que, sem a intervenção policial não se daria a [simple_tooltip content=’LIMA, Marcellus Polastri. Manual de Porcesso Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 5 ed. 2010, p. 616′]prática delituosa[/simple_tooltip].

Não há que se confundir flagrante provocado com o flagrante forjado, pelo qual alguém, policial ou não, “planta” uma prova, forjando um quadro de aparente flagrância de modo a incriminar outrem. Um exemplo é o do policial que deposita uma trouxinha de droga no bolso de alguém, sem que este perceba, e em seguida o prende em flagrante pelo crime de porte ou tráfico de substância entorpecente. Na verdade, tem-se aí crime – [simple_tooltip content=’Código Penal, art. 339: Dar causa à instauração de investigação policial, de processo judicial, instauração de investigação administrativa, inquérito civil ou ação de improbidade administrativa contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente: Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa. Além disso, esse exemplo de flagrante forjado pode caracterizar o crime de abuso de autoridade (arts. 3º e 4º da lei n.º 4.898/65). O auto de prisão em flagrante lavrado nessas circunstâncias também será ideologicamente falso (art. 299 do CP)’]de denunciação caluniosa, no mínimo[/simple_tooltip] (art. 339 do CP) –, praticado por quem forjou a situação de flagrância, não por quem foi vítima da encenação.

O entendimento doutrinário e jurisprudencial sobre o crime impossível por obra do agente provocador é sintetizado na súmula n. 145 do STF: “Não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação.

[simple_tooltip content=’ PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. São Paulo: Atlas. 18 ed., 2014, p. 535-538′]PACELLI, em lição luminar, revela o equívoco de tal entendimento[/simple_tooltip]:

A rejeição ao flagrante dito preparado ocorre geralmente por dupla fundamentação, a saber: a primeira, porque haveria, na hipótese, a intervenção decisiva de um terceiro a preparar ou a provocar a prática de ação criminosa e, assim, do próprio flagrante; a segunda, porque dessa preparação, por parte das autoridades e agentes policiais, resultaria uma situação de impossibilidade de consumação da infração de tal maneira que a hipótese se aproximaria do conhecido crime impossível.

(…)

De nossa parte, não vemos como acompanhar qualquer um dos dois argumentos.

O segundo deles, o da vontade viciada pela provocação à prática do delito, parece-nos, de longe, o mais inconsistente.

(…) na participação por determinação, (art. 31 do CP), a ideia do crime nem sequer existia na mente do autor, mas , por obra e graça da ação provocadora do partícipe, a vontade é gerada e o crime, praticado. Solução: punição do autor e do partícipe.

(…) não vemos como afastar a responsabilidade penal do autor que age por provocação de terceiro, pelo menos sob o argumento da influência no ânimo e contaminação da vontade do agente. Como vimos, na participação por determinação há, inegavelmente, a mencionada intervenção (influência no ânimo) e a presença de suas consequências (vício ou contaminação da vontade), revelando-se, porém, insuficientes para fastar a responsabilidade penal do autor.

Voltemos os olhos agora para o argumento da impossibilidade de consumação do crime.

Observa-se, primeiro, que não é inteiramente correto falar-se em crime impossível, porquanto, pelo menos em tese, será sempre possível a fuga. (…)

Mas a crítica mais contundente que se pode fazer em relação ao apontado argumento nem é essa.

(…)

No flagrante esperado, não há intervenção de terceiros na prática do crime, mas informação de sua existência. (…) Nesse caso, a ação policial sera de espera, não de provocação, donde a diferença de ser esse um flagrante válido, ao contrário daquel’outro.

Note-se, porém que ambas as situações podem estar tratando de uma única e mesma realidade: a ação policial suficiente a impedir a consumação do crime (ou seu exaurimento), tudo dependendo do caso concreto. Não nos parece possível, com efeito,fixar qualquer diferença entre a preparação e a espera do flagrante, no que se refere à impossibilidade de consumação do crime, fundada na ideia de eficiente atuação policial. Em ambos os casos, como visto, seria possível, em tese, tornar impossível, na mesma medida, a ação delituosa em curso. Por que então a validade de um (esperado) e invalidade de outro (o preparado)?

Mas que fique repetidamente registrado: jurisprudência e doutrina permanecem alheias a essas questões, reproduzindo o antigo entendimento.

A inconsistência da tese, em face de nossa realidade e do uso cada vez mais frequente de recursos materiais de alta tecnologia, vem sendo posta a descoberto em inúmeras reportagens televisivas (…).

Assim, de duas uma: ou se aceita ambas as hipóteses como de flagrante válido, como nos parece mais acertado, as duas devem ser igualmente recusadas, por coerência na respetiva fundamentação.

Tomando como base a lição de PACELLI, aquele que, num teste de integridade, “provoca” o funcionário público, não seria punido por incidir, para ele, a excludente de ilicitude do estrito cumprimento do dever legal (art. 23, III, do CP). Para o funcionário flagrado no teste, não se enquadrando a situação em nenhuma hipótese legal de impossibilidade absoluta de consumação nem em nenhuma outra excludente de punibilidade, ser-lhe-á aplicável a sanção pelo crime consumado ou tentado, conforme o caso.

Outros países não comungam do mesmo entendimento sufragado na súmula 145 do STF.

[simple_tooltip content=’ARAS, Vladimir. Técnicas especiais de investigação. In Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013, 2. ed., p. 543′]ARAS[/simple_tooltip], assentado em lição de [simple_tooltip content=’PÉREZ, Tereza Molina. Técnicas especiales de investigación del delito: el agente provocador, el agente infiltrado e figuras afines. Disponível em <http://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/2916235.pdf>; acesso em 12.02.2016′]PÉREZ[/simple_tooltip], tratando da técnica de infiltração de agentes e, especificamente, da figura do entrapment, discorre:

(…) o Tribunal Supremo espanhol abandonou entendimento semelhante ao adotado pelo STF. Atualmente a Corte espanhola entende que o delito provocado só ocorre quando a Polícia faz surgir na mente do suspeito a intenção de cometer o crime, que de outra forma não seria cometido. Na verdade, não há entrapment quando o suspeito está predisposto à aprática do crime e a autoridade policial simplesmente cria a oportunidade para sua consumação, sem o provocar, incitar ou instigar.

Para legitimar uma operação desse tipo, a cogitação de cometer o ilícito e a iniciativa de fazê-lo devem partir do suspeito, ao passo que a intervenção da Polícia deve ser passiva. Atendidos esses critérios subjetivos e objetivos, não há flagrante preparado nem entrapment. O TEDH admite que na infiltração o agente não desempenhe um papel exclusivamente passivo (Caso Lüdi), mas não tolera a provocação (caso Teixeira de Castro). Há provocação quando a conduta do infiltrado ou do agente encoberto é decisiva para a consumação do crime. Não há provocação quando o dolo (cogitatio) é latente e antecede o induzimento policial, não havendo ardil ou persuasão dos investigadores para viciar a vontade do suspeito ou fazer surgir a intenção criminosa.

Na provocação, o agente faz surgir a ideação ou deliberação e leva o suspeito a percorrer todo o iter criminis até a execução. A atuação do agente provocador é a verdadeira causa do crime, pois no sujeito provocado não existia qualquer vontade primária de praticar o ilícito.(…)

Fato é que, no Brasil, doutrina e jurisprudência atuais ao menos aparentemente preponderantes não admitem a participação do agente público numa simulação para caracterizar um crime. O acusado, nessas circunstâncias, deveria ser absolvido.

O anteprojeto, entretanto, caso se transforme em lei, pode alterar esse quadro. E essa alteração, a nosso ver, nada teria de inconstitucional.

Em primeiro lugar, deve-se levar em conta que a Súmula n. 145 do STF foi aprovada em 1963 e os precedentes referidos como leading cases para sua edição remontam aos anos de 1940 (RHC 27.566), 1951 (RHC 12.531), 1961 (HC 38.758) e 1963 (HC 40.289). A realidade constitucional e social, portanto, era completamente distinta. O panorama da dogmática penal era também completamente diferente: macrocriminalidade e crimes do colarinho branco não eram o foco da doutrina nem dos tribunais, que ainda se ocupavam da criminalidade “tradicional”.

Para que seja utilizado como instrumento para a constatação de um novo crime – ou, noutras palavras, um crime que pode ser objeto de sancionamento penal independente de crimes anteriores –, devem existir fundadas suspeitas da prática de crimes pretéritos, crimes que são precisamente o motivo da instauração da investigação. Somente essa fundada suspeita, que deve ser concretamente demonstrada pelo Ministério Público, pode levar o poder judiciário a autorizar a realização de um teste de integridade. Naturalmente, a fundada suspeita ocorrerá no curso de uma investigação de crimes já praticados: não se inicia nenhuma investigação sem que haja a suspeita de prática de um crime. A questão, aqui, está apenas em se considerar a conduta praticada pelo agente público flagrada num teste de integridade como um ilícito autônomo e passível de sancionamento penal, independente dos crimes anteriores por ele praticados, e não somente (as provas colhidas nessa simulação) como meios para provar crimes pretéritos.

Há desvalor na conduta do agente flagrado num teste de integridade? É possível o sancionamento penal dessa conduta?

Note-se que, de acordo com o Código Penal, só existem duas hipóteses de crime impossível: “Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime” (art. 17 do CP). A palavra absoluta, usada para qualificar tanto a impropriedade do objeto quanto a consumação do crime, não é vã. Para que a tentativa não seja punida a consumação do crime deve ser absolutamente impossível. Não basta que seja relativamente impossível. Num quadro no qual alguém oferece propina a um funcionário público para fraudar uma licitação e dividir o butim, é absolutamente impossível que o resultado se consume? É absolutamente impossível que o agente que ofereceu propina mude de ideia e dê seguimento à “simulação”, concorrendo para a prática de um crime . Pode-se afirmar: um funcionário aplicando um teste de integridade em outro “jamais faria isso!”, “jamais daria continuidade ao crime!” Incorreto: pode ser até altamente improvável; absolutamente impossível, não. Fato é que, no sentido do art. 17 do Código Penal, houve uma tentativa, e não era absolutamente impossível que essa tentativa se consumasse.

Imagine-se a situação em que o agente público, acreditando estar diante do representante de uma empresa de construção civil (na verdade, um policial disfarçado), solicita dinheiro para fraudar uma licitação em benefício dessa empresa. A negociação quanto ao valor a ser pago e os atos a serem praticados ocorrem numa reunião presencial, gravada, e a solicitação de propina é feita verbalmente pelo funcionário público. Voltemos ao Código Penal e indaguemos: a solicitação verbal de dinheiro feita pelo funcionário em razão de sua função é meio absolutamente ineficaz para que se caracterize o crime de corrupção passiva? O processo licitatório a ser fraudado é objeto absolutamente impróprio? O art. 17 do CP determina que a tentativa não seja punida apenas quando houver ineficácia absoluta do meio ou absoluta impropriedade do objeto – a palavra absoluta, repetida, não é sem razão. É a ineficácia absoluta do meio ou a impropriedade absoluta do objeto que tornam impossível a consumação do crime.

[simple_tooltip content=’FISCHER, Douglas, e PACELLI, Eugênio. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. São Paulo: Atlas, 7. ed., 2015, p. 634′]Sobre flagrante preparado e impossibilidade absoluta de consumação, PACELLI e FISCHER acentuam[/simple_tooltip]:

Pensamos que, exclusivamente sob tal fundamentação (intervenção do agente), não se pode invalidar o flagrante,. E, menos ainda, sob o argumento da impossibilidade de consumação, já que, por definição, o crime impossível exige a impossibilidade absoluta do meio. Pode-se até aceitar a invalidade; no entanto, ela deverá se estender também ao flagrante esperado, quando igualmente impossível a respectiva consumação.

Em resumo: ou bem se invalida ambos ou se aceita a respectiva validade, sem prejuízo de eventual excludente de culpabilidade do agente (do crime) e de atipicidade do provocador, por ausência de dolo (quanto ao resultado da ação).

Perceba-se que o teste de integridade, no que toca ao aspecto da suposta impossibilidade de consumação, também será muito semelhante a um flagrante esperado. No flagrante esperado, a polícia ou terceiro, informado da possível e futura prática de um crime, cerca-se de cuidados para impedir sua consumação. Um exemplo de flagrante esperado é o de uma informação recebida pelo serviço de disque-denúncia, dando conta de que quatro indivíduos planejam cometer um roubo numa determinada agência bancária na manhã seguinte. A polícia, então, aloca quarenta homens fortemente armados nas cercanias da agência. Quando os quatro indivíduos saem da agência carregando malotes de dinheiro que acabam de subtrair, são surpreendidos e presos em flagrante pelos quarenta policiais. A doutrina é assente: nesse caso, não se trata de crime impossível; há, no mínimo, tentativa. A explicação corriqueira é a de que não houve, por parte dos policiais, uma provocação; os policiais limitaram-se a aguardar a ação dos criminosos. Não se costuma adentrar o mérito da ineficácia do meio nem da impropriedade do objeto, a que se refere o art. 17 do CP. E, afinal, realmente não há, no exemplo do flagrante esperado, ineficácia do meio nem impropriedade do objeto – da mesma forma que não há ineficácia do meio nem impropriedade do objeto no crime cometido quando da aplicação de um teste de integridade.

A lei penal não exige, para todos os crimes, um resultado naturalístico para que se caracterize a ilicitude nem para que esta seja sancionada. Não é necessário adentrar a polêmica dos crimes formais e crimes de mera conduta. Está-se tratando aqui da tentativa: na tentativa, pode não haver nenhum resultado – senão o desvalor da conduta e o risco ao bem jurídico tutelado pela norma penal incriminadora. No teste de integridade, é, no mínimo, o desvalor da conduta que fundamentará a sanção criminal, por um crime tentado – eis que, em alguns casos, inciada a execução, o crime somente não se terá consumado “por circunstâncias alheias à vontade do agente” (art. 14, II, do CP). Não se pune o agente por sua intenção de cometer o crime, mas pela prática concreta de uma conduta descrita abstratamente como crime, um ação dolosa que apenas não alcançou o resultado desejado por circunstâncias alheias a sua vontade.

Tendo em conta a possibilidade de punição pelo menos por crime tentado, considerando que não se cuidará, a rigor, de um crime impossível, resta enfraquecido argumento da violação ao princípio da lesividade – princípio implícito, garantista, correspondente a um direito fundamental e corretamente extraído de nossa Constituição e de nossa legislação penal.

Todavia, é importante notar que, caso o teste de integridade flagre uma conduta que se amolda ao tipo da corrupção passiva (art. 317 do CP) nas modalidades solicitar ou aceitar promessa de vantagem indevida, estar-se-á diante de um crime formal. Para que o crime se consume, bastará, nesses casos, a solicitação ou a aceitação, pelo funcionário público, da promessa de vantagem indevida (em razão de sua função). Praticar ou deixar de praticar o ato de ofício são elementares somente para o tipo da corrupção passiva qualificada (art. 317, §1º). A punição, na corrupção passiva simples, assim como em outros crimes formais, não será pela tentativa, mas pelo crime consumado. O mesmo se diga da concussão (art. 316 CP): o funcionário flagrado num teste de integridade a exigir vantagem indevida em razão de sua função poderá ser punido pelo crime consumado. Essas situações inclusive devem ser as mais comuns no teste de integridade, tendo em conta que seu propósito é precisamente o de prevenir a prática de corrupção em sentido amplo.

O anteprojeto de lei tem como propósito inovar no ordenamento jurídico brasileiro. A alteração legislativa terá o condão de modificar a realidade normativa, como tradução de uma verdadeira política criminal do Estado, provocada por iniciativa popular (como é o caso do pacote de dez medidas contra a corrupção). Se essa política criminal é correta ou não, se ela deve ser implementada ou não, caberá ao legislador decidir. Mas caso implementada, não será inconstitucional. Toda a doutrina acerca da definição do crime impossível gira em torno da legislação penal infraconstitucional. Não há nenhum dispositivo constitucional, nem qualquer princípio expresso ou implícito, com o qual o teste de integridade seja incompatível.

Noutras palavras: o instituto não é inconstitucional. Eventualmente, a sua realização é que pode ofender algum princípio ou norma legal ou constitucional. Assim como o instituto da prisão cautelar não é inconstitucional, uma prisão cautelar concretamente analisada pode envolver a violação de algum princípio ou norma legal ou constitucional – por ausência de fundamentação, por alongar-se em demasia, por ser decretada por autoridade incompetente etc.

[simple_tooltip content=’ZANELLATO, Vilvana Damiani. Teste de integridade: 1ª medida contra a corrupção. Disponível em <http://canalcienciascriminais.com.br/artigo/teste-de-integridade-1a-medida-contra-a-corrupcao/>, acesso em 27.01.2016′]ZANELLATO, destacando que a medida estará alicerçada em lei, chega a conclusão semelhante[/simple_tooltip]:

Não obstante a atual jurisprudência entenda pela invalidade do flagrante preparado, há que se atentar que o conceito de situação de flagrância encontra-se definido apenas no Código de Processo Penal (art. 302) e, existindo, lei (se aprovada nesses termos) que permita referido proceder em casos específicos, não haveria porque se contestar a validade do ato.

(…)

Não se está aqui chancelando a prática desmedida do flagrante preparado. Não! A prática desautorizada, em qualquer seara, não merece validade e quem o realiza deve sofrer as represálias legais e adequadas.

No entanto, nada impede – a título do que já ocorre com a interceptação telefônica e outros tipos de investigações – que, havendo norma que permita em determinados casos atividade que aparentemente possa a vir a configurar situação de flagrante considerado pela doutrina e/ou pela jurisprudência como preparado, o ato seja válido para fins de prevenção da perpetração de comportamentos ímprobos e corruptos.

De qualquer modo, no que diz respeito estritamente ao sancionamento penal em razão da conduta constatada no teste de integridade, admita-se a polêmica. Para outros propósitos que não a aplicação de uma sanção criminal em razão do crime praticado num teste de integridade, não há, como visto, os mesmos motivos para rejeitar a proposta.

Capítulo 5

Algumas críticas e seus equívocos

Uma das críticas mais recorrentes ao teste de integridade é a que de ele criaria, para o agente público, um permanente “estado de tensão”. Disso se extrairia uma pretensa violação à “dignidade da pessoa humana”, tornando inconstitucional a proposta.

A crítica não procede.

A situação de um funcionário público no exercício de sua função é muito diversa da situação de um particular que exerce atividades privadas, A fiscalização da conduta de um funcionário público, qualquer que seja ele, deve ser constante e rotineira, pelo próprio Estado e pelos cidadãos. Ter sua conduta permanentemente fiscalizada é um dos ônus da função pública que optou por assumir ao tomar posse.

A imensa maioria dos funcionários públicos é honesta. Para um funcionário honesto, o ônus de poder ser submetido a um teste de integridade não soará pesado. Para um funcionário desonesto, propenso a praticar ilícitos administrativos e criminais, o teste de integridade será nada mais que um risco – um novo risco, que hoje simplesmente não existe para ele. Se a mera possibilidade de que lhe seja aplicado um teste de integridade submete o funcionário desonesto a um “estado permanente de tensão”, que assim o seja! Tanto melhor para a sociedade e para o Estado que um agente público predisposto a praticar um ilícito conviva com o risco de ser fiscalizado num teste de integridade. Não é dever do Estado proteger o interesse de um funcionário corrupto de praticar um ilícito, não é dever do Estado tutelar seu interesse de “não ser pego”. Um interesse particular não tutelado pela ordem jurídica não passa disso, um interesse. Ninguém tem direito à impunidade.

Colhe-se da própria justificativa do anteprojeto, no ponto em que trata dos testes de integridade aleatórios, que estes [simple_tooltip content=’Disponível em <http://www.combateacorrupcao.mpf.mp.br/10-medidas/docs/medidas-anticorrupcao_versao-2015-06-25.pdf>, acesso em 27.01.2016′]“refletem o princípio de que a atividade de qualquer agente público está sujeita, a qualquer tempo, a escrutínio”[/simple_tooltip]. Se para qualquer funcionário público impõe-se a fiscalização, com muito mais razão se pode afirmá-lo em relação ao funcionário contra quem haja fundada suspeita de prática ímproba ou criminosa.

Também é importante observar a preocupação do anteprojeto com a preservação da imagem dos agentes envolvidos, ao proibir a administração pública de “revelar o resultado da execução dos testes de integridade nem fazer menção aos agentes públicos testados” (art. 8º). Talvez o projeto possa ser aprimorado para afirmar expressamente o caráter sigiloso do teste, embora tal sigilosidade possa ser extraída deste art. 8º e dos demais dispositivos, ali implícitos, como da própria natureza da medida.

Outra crítica que vem sendo feita é a de que o teste de integridade estaria partindo de uma [simple_tooltip content=’COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. MPF: As 10 medidas contra a corrupção são só ousadas? In Boletim IBCCRIM n. 277, dez. 2015, p.02-03′]“presunção de desonestidade” do funcionário público[/simple_tooltip], ou de um pressuposto de que “todos são suspeitos”. Isso também [simple_tooltip content=’Como se nota, a alusão ao princípio da dignidade da pessoa humana tem sido recorrente nas críticas ao teste de integridade. Foi o cerne, inclusive, da oposição feita pelo Conselho Federal da OAB à proposta e a diversas outras (<https://www.jota.info/para-oab-duas-de-cada-tres-propostas-anticorrupcao-mp-sao-inconstitucionais>, acesso em 12.02.2016).’]ofenderia sua dignidade[/simple_tooltip].

A crítica é sem sentido – ou se terá que afirmar o mesmo de todo e qualquer ato da administração pública sujeito a qualquer forma de fiscalização. Fiscalizar não é o mesmo que presumir a desonestidade do agente público. Quando as corregedorias investigam um ato praticado pelo funcionário, não se parte do pressuposto que ele agiu de modo indevido. Quando os Tribunais de Contas da União, Estados e Municípios escrutinam, um a um, todos os contratos firmados pela administração, ou qualquer ato praticado por autoridade públicas, não estão pressupondo a desonestidade de seus responsáveis.

Num outro exemplo extremo, seria o mesmo que dizer que a Receita Federal, ao receber milhões de declarações de imposto de renda todos os anos, está pressupondo a desonestidade dos contribuintes somente pelo fato analisar a veracidade das informações prestadas.

Mais uma crítica, muito semelhante às anteriores, é a de que o teste de integridade buscaria verificar “se o servidor público tem ‘intenções’ de cometer crimes, uma espécie de predefinição de caráter”, e que “o cidadão seria colocado como determinado ‘ente de risco’, propenso a delinquir e, portanto, passível de teste”.

É esse a opinião de [simple_tooltip content=’STRECK, Lenio Luiz. O pacote anticorrupção do Ministério Público e o fator Minority Report. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-mar-03/senso-incomum-pacote-anticorrupcao-mpf-fator-minority-report>, acesso em 07.03.2016′]STRECK[/simple_tooltip]:

Flagrante forjado: na pressa, o pacote do MPF ataca a presunção de inocência. (…) Em vez de apresentar provas lícitas que possam comprovar a prática de conduta ilícita de seu agente público, o Estado estará autorizado a simular situações que permitam testar a conduta do agente. Uma proposta, além de inconstitucional, patética.(…)

Teste de integridade: aqui entra o fator Minority Report, filme futurista em que o Estado consegue acabar com os assassinatos usando uma divisão pré-crime. Essa divisão visualiza o crime antes de ocorrer através dos precogs (pré-cognição, por óbvio). Ali, o culpado é punido antes que o crime seja praticado. Pois o pacote do MPF propõe algo parecido. Trata-se de o que chamo de “eugenia cívica”. Pelo pacote, o agente público deve se submeter a testes que apontem se é propenso a cometer crimes. Como assim?

A crítica é ácida e bem humorada, mas simplória. O teste não é considerado uma violação a direito fundamentais nos diversos países que já o aplicam, nem a ONU assim o considera, nem aqui o seria. Também não tem nada de “ficção científica” – mas não é tão simples quanto a crítica no tom “eugenia cívica” quer fazer parecer.

O equívoco da critica reside em afirmar que o teste puniria o agente apenas por sua predisposição, por sua “intenção”. Não. A constatação de uma conduta ilícita num teste de integridade pode ser, por si, a demonstração concreta da incompatibilidade daquele agente público para o exercício da função pública, por comprovado desrespeito aos princípios da administração pública. Não se exige, para tanto, a aplicação de uma sanção criminal: a conduta do agente, nessas circunstâncias, poderá ensejar punições no âmbito administrativo e cível (pelo ajuizamento de uma ação civil por ato de improbidade administrativa). O erro, nessa crítica, também está no fato de se apropriar de um entendimento específico do direito penal para evitar sua aplicação para o sancionamento administrativo e para a investigação criminal de crimes diversos. O entendimento baseado súmula 145 do STF, segundo o qual o teste de integridade caracteriza um flagrante forjado, ou um crime impossível por obra do agente provocador, pode ser fundamento suficiente para obstar o uso do teste de integridade para a punição criminal da própria conduta praticada na simulação; para outras esferas (cível e administrativa, e mesmo para a investigação de crimes distintos), esse óbice não há.

É curiosa, aliás, a alegação de que, ao “presumi-lo culpado”, a simples submissão de um funcionário público ao teste violaria sua dignidade, caracterizando, assim, também uma afronta ao [simple_tooltip content=’OLIVEIRA, Tânia M. S. O MPF e as 21 medidas legislativas: contra a corrupção ou contra o cidadão e a constituição? Disponível em <http://emporiododireito.com.br/o-mpf-e-as-21-medidas-legislativas-contra-a-corrupcao-ou-contra-o-cidadao-e-a-constituicao-por-tania-m-s-oliveira/>, acesso em 27.01.2016.’]princípio da dignidade da pessoa humana[/simple_tooltip]. O teste não é feito por se presumir o funcionário culpado, a não ser que o mesmo seja dito em relação a qualquer ato de fiscalização feita pela administração pública. Se essa “indignidade” não decorre da presunção de sua desonestidade – porque o anteprojeto não presume ninguém culpado –, a conclusão possível sobre esse raciocínio é a de que se trataria de um atributo do próprio teste. O teste “em si” seria vexatório, humilhante, constrangedor ou de algum modo malferiria a dignidade de alguém. O argumento não convence: o teste aplicado em um funcionário honesto resultará na recusa de sua parte em praticar um ato de corrupção, algo do que ele pode até se orgulhar. O funcionário desonesto poderá até considerar  humilhante, mas não o teste em si, e sim seu resultado: o fato de ser sido flagrado praticando um ato de corrupção, com as consequências que isso acarretará.

Quanto à proteção da imagem dos funcionários públicos submetidos ao teste, o art. 8º do anteprojeto dispõe que “a administração pública não poderá revelar o resultado da execução dos testes de integridade nem fazer menção aos agentes públicos testados.” Logicamente, os resultados dos testes ainda assim poderão ser utilizados para os propósitos aqui referidos: instruir investigações sobre outros fatos e ensejar o sancionamento nas esferas cível, administrativa ou criminal (caso se admita essa última possibilidade).

Outra crítica é a de que nem todos os órgãos públicos e entes federativos estariam aptos a aplicar o teste: em municípios muito pequenos, por exemplo, com graves problemas estruturais, não haveria pessoal qualificado para realizá-los. A resposta a isso deve ser: que estes órgãos, então, busquem estruturar-se para tanto. O que não é possível é deixar de positivar em nosso ordenamento um importante instrumento de combate à corrupção pelo fato de alguns órgãos – ou muitos, que sejam – ainda não terem condições de aplicá-lo. Se no início da vigência da lei apenas alguns órgãos e entes realizarem os testes, já será um avanço.

Outro tipo de ataque à proposta é a de que o teste de integridade, tal qual previsto no anteprojeto, daria “muito poder” a alguns órgãos, que poderiam forjar testes de integridade de modo a perseguir funcionários – leia-se, poderiam falsear provas de que um funcionário submetido ao teste cometeu um ilícito. A crítica tampouco procede: além de estarem previstos mecanismos de documentação e controle (administrativo e judiciário) da legalidade do teste de integridade, o risco de que um teste seja forjado para ilegalmente prejudicar alguém não é maior que o risco de que uma sindicância ou um processo administrativo sejam forjado para prejudicar um funcionário. Em ambas as situações há crime, praticado por quem deliberadamente forjou provas contra um funcionário vítima do embuste. Em ambas situações há também formas de controle para invalidar tanto o teste quanto o processo administrativo ou sindicância forjados.

Capítulo 6

Conclusão

Eficácia

Não há, dentre as críticas ao teste de integridade, a alegação de que seja ineficaz para a prevenção e a repressão a atos de corrupção praticados por agentes públicos. Não parece haver dúvida: o teste de integridade funciona. Simultaneamente, o anteprojeto de iniciativa popular procura preservar os direitos e garantias do funcionário que seja fiscalizado pelo teste, estabelecendo requisitos e meios para sua sindicabilidade – ou seja, meios para que seja posteriormente verificada a legalidade da medida. Não há, em suma, nenhuma inconstitucionalidade material na proposta.

O cerne atual das críticas ao teste de integridade no Brasil tem como base a jurisprudência e a doutrina a respeito do “crime impossível por obra do agente provocador”. Ainda que nada mude no panorama jurisprudencial e doutrinário, essa crítica, própria da área penal, não impediria, como visto, a plena aplicação do teste de integridade para fins de investigação e para o sancionamento cível e administrativo do funcionário público flagrado praticando um ato de corrupção.

Quanto à aplicação do teste para fins de sancionamento penal da própria conduta verificada no teste, a alteração do quadro normativo exigirá dos estudiosos e tribunais uma reflexão mais aprofundada a respeito da suposta atipicidade da conduta no chamado “flagrante provocado”, além de um novo olhar a respeito da necessidade de enfrentamento ao gravíssimo problema da corrupção em nosso país. Exigirá, decerto, uma visão atenta aos modernos instrumentos processuais e de investigação e mais consentânea com a nova criminalidade. Demandará, em suma, um compromisso com a efetiva tutela dos interesses de toda a sociedade sem perder de vista a necessária proteção dos diretos fundamentais dos investigados.

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BIBLIOGRAFIA

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