A contestação ao acordo firmado com a JBS, com a participação dúbia de Marcelo Miller, fez a tropa de choque do governo Temer coletar assinaturas e criar uma Comissão Parlamentar de Inquérito para, verdadeiramente, retaliar o Ministério Público e a empresa.
Principal aliado e defensor do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha – hoje preso – , o deputado Carlos Marun (PMDB-MS) relatou as investigações da comissão e propôs, no último dia 12, o indiciamento de Rodrigo Janot e de seu chefe de gabinete, Eduardo Pelella.
Além disso, num claro recado ao ministro Edson Fachin, Marun defendeu que a Polícia Federal “investigue eventuais visitas de Ricardo Saud a senadores pleiteando apoio destes a pretendentes a ocupar a vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal durante período de 2014 a 2016”.
Ricardo Saud, então diretor de relações institucionais da JBS, trabalhou pela aprovação de Edson Fachin quando este foi indicado pela presidente Dilma Rousseff para o Supremo. Senadores chegaram a se movimentar para buscar imagens no sistema de segurança de Saud chegando ao Congresso em companhia de Fachin.
No Supremo, a defesa de Temer tentou impedir que a denúncia oferecida pela PGR fosse remetida à Câmara dos Deputados. O advogado do presidente, Antônio Cláudio Mariz, defendia que a denúncia ficasse em suspenso até que fosse investigado o acordo de delação da JBS e a omissão de informações pela empresa com base nas gravações feitas por Joesley Batista e que haviam sido deletadas.
Se atendesse a tese da defesa, o Supremo tornaria ainda mais difícil processar um presidente por crime comum. O tribunal criaria mais uma barreira institucional à responsabilização do presidente.
Prevaleceu, entretanto, o entendimento de que o Judiciário não podia se antecipar ao juízo político de conveniência feito pelo Congresso Nacional. Ou seja, o Supremo não poderia tirar da Câmara o direito de proferir a primeira palavra. Os deputados negaram seguimento à investigação do presidente. Somente quando Temer deixar o cargo, a apuração seguirá.
As críticas aos termos do acordo alinhavado pela PGR com a JBS, homologados pelo ministro Fachin, começaram na política e ecoaram no Supremo. Ministros, como Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello e Alexandre de Moraes, fizeram ressalvas ao pacto firmado pelo Ministério Público com a empresa. Frente às críticas, o ministro Fachin decidiu acionar o plenário para saber qual era o limite de atuação do relator na homologação de acordos e se o tribunal poderia rever os benefícios negociados pelo Ministério Público com os delatores.
Os questionamentos, se bem sucedidos, enfraqueceriam o poder de negociação da PGR e poderiam, em última análise, suscitar dúvidas sobre o próprio instituto das delações premiadas. Afinal, quem se disporia a firmar um acordo se posteriormente o Judiciário pudesse anulá-lo?
Por maioria (8 votos contra 3), o STF julgou que o acordo de colaboração homologado deverá ser cumprido e não pode ser revisto pelo plenário. Votaram vencidos os ministros Marco Aurélio, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Mendes, considerado um aliado do governo Temer, defendeu a tese de que o acordo homologado pelo relator pudesse depois ser submetido a referendo pelo plenário.
As reações da política ao Congresso chegaram ao volume máximo quando a Primeira Turma do Supremo decidiu afastar o senador Aécio Neves do mandato e determinou seu recolhimento noturno em razão das investigações abertas com a delação da JBS. Este caso reforçou as fragilidades institucionais do Supremo provocadas por um problema recorrente: as decisões monocráticas.
No dia 17 de maio, atendendo a pedido da PGR, o ministro Edson Fachin afastou liminarmente Aécio Neves do exercício do mantado. O senador recorreu da decisão. Mas Fachin não levou o caso a julgamento na Segunda Turma, pois desmembrou o inquérito e redistribuiu a investigação sobre o senador. O caso não teria relação com a Operação Lava Jato e, por isso, Fachin não era obrigatoriamente o relator. O processo foi redistribuído para o ministro Marco Aurélio Mello.
No dia 12 de junho, Marco Aurélio liberou o processo para julgamento na Primeira Turma, mas não houve decisão colegiada, pois a defesa do senador insistia no pedido para que o caso fosse analisado pelo plenário do STF. Com isso, na véspera do recesso de julho, Marco Aurélio, monocraticamente, reverteu a decisão de Fachin e garantiu a Aécio Neves o retorno ao mandato.
O Ministério Público recorreu dessa decisão no dia 31 de julho, mas o processo só foi julgado dois meses depois. E quando foi levado a julgamento, a realidade política era distinta. Em maio, Aécio Neves estava combalido pela revelação das conversas com Joesley Batista. Em setembro, era a delação da JBS que estava sob bombardeio.
Com o processo submetido em setembro à Primeira Turma, a decisão de Fachin foi restabelecida. Aécio Neves novamente foi afastado do exercício do mandato e foi submetido a recolhimento domiciliar. No julgamento, uma declaração do ministro Luiz Fux deu o tom da decisão: “Já que ele [Aécio Neves] não teve gesto de grandeza, vamos auxiliá-lo a ser portar tal como deveria se portar, sair do Senado para poder comprovar à sua ausência de culpa nesse episódio”, disse. A decisão, inclusive pelos termos usados no julgamento, deflagrou um conflito aberto do Senado com o Supremo.
Os senadores se mobilizaram para responder ao STF. Levaram o assunto ao plenário do Senado e deixaram evidente que não concordariam com o afastamento liminar de Aécio Neves. Se preciso fosse, votariam em plenário uma proposta para reverter a decisão judicial. O Senado avocava para si a última palavra sobre a interpretação da Constituição.
A ministra Cármen Lúcia, sensível à conjuntura política, sacou uma ação direta de inconstitucionalidade protocolada em 2016 para que o tribunal pudesse reverter a decisão da Turma. Na ação, três partidos políticos (PP, PSC e Solidariedade) defendiam que o Supremo definisse que as medidas cautelares distintas da prisão aplicadas aos parlamentares fossem submetidas ao crivo da Câmara ou do Senado no prazo de 24 horas.
As ações foram protocoladas quando o tribunal decidiu afastar o deputado Eduardo Cunha do comando da Câmara e do exercício do mandato. Na época, os deputados não reagiram ao Supremo. Posteriormente, Cunha foi cassado. Assim, o Supremo acabou por não se manifestar sobre o assunto em 2016.
Pelo texto constitucional, se um parlamentar for preso “em flagrante de crime inafiançável”, a Câmara ou o Senado devem decidir se mantém ou não a prisão no prazo de 24 horas. Mas a Constituição é silente quando são aplicadas medidas cautelares, como afastamento do cargo, impossibilidade de frequentar determinadores lugares, etc. O Supremo foi provocado a interpretar este vazio.
Ante as ameaças dos senadores, o Supremo, por 6 votos a 5, julgou que a Corte pode decretar o afastamento de um parlamentar do mandato em situações excepcionais, mas delegou a palavra final para a execução da medida ao Congresso.
Cármen Lúcia, presidente do Supremo, deu o voto de desempate em favor da tese que favorecia Aécio Neves. Seu voto foi precedido de articulações junto aos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Eunício Oliveira, e de conversas com outros políticos. Por isso e pela forma como votou, tentando se equilibrar entre a solução do problema e a manutenção da imagem diante da opinião pública, a ministra concentrou as críticas, personificou a decisão do tribunal, interpretada como uma vitória da política sobre o Supremo.
O tribunal, neste caso, interpretou o silêncio da Constituição e deixou para a política a decisão sobre as cautelares contra parlamentares. A última palavra neste caso seria do Congresso.
Uma semana depois, o Senado se reuniu e rejeitou o afastamento de Aécio Neves. E o recuo do Supremo abriu espaço para as assembleias legislativas dos estados aproveitarem a porta aberta pelo tribunal. O JOTA revelou que a Assembleia Legislativa do Mato Grosso reverteu a prisão preventiva e medidas cautelares impostas pela própria Corte contra o deputado estadual Gilmar Fabris (PSD) por suposta obstrução à Justiça no âmbito da Operação Malebolge, que investiga esquema de propina no governo do estado. Mas o caso com maior repercussão ocorreu no Rio de Janeiro.
O presidente da Assembleia Legislativa do Rio, Jorge Picciani, e os deputados estaduais Paulo Melo e Edson Albertassi, todos do PMDB, foram presos na Operação Cadeia Velha, que investiga crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. No dia seguinte, a assembleia revogou o decreto de prisão e os três foram soltos.
O caso foi levado ao Supremo em três ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 5.823, ADI 5.824 e ADI 5.825) propostas pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Na petição, assinada pelo advogado Alberto Pavie, a AMB questiona a extensão para deputados estaduais da imunidade conferida pela Constituição a deputados federais e senadores.
A presidente do Supremo, criticada pela decisão no caso Aécio Neves, buscava pautas que pudessem melhorar a imagem de sua gestão, conforme assessores mais próximos. E pautou rapidamente para julgamento as ações relatadas pelos ministros Marco Aurélio Mello e Edson Fachin.
Os relatores adotaram entendimentos opostos. Marco Aurélio julgou que as regras da Constituição Federal relativas à imunidade dos parlamentares federais são aplicáveis a deputados estaduais. Fachin sustentou que a prisão preventiva envolve juízo técnico-jurídico, que não pode ser solapado pelo Legislativo. “Entendo que a Assembleia Legislativa usurpou competência atribuída pela Constituição Federal exclusivamente ao Poder Judiciário, violando o princípio da separação de Poderes”, disse.
Marco Aurélio foi acompanhado no seu raciocínio pelos ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Votaram com Fachin os ministros Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli e Cármen Lúcia. Como dois ministros estavam ausentes do julgamento, Ricardo Lewandowski e Luís Roberto Barroso, o tribunal decidiu adiar o julgamento. Enquanto isso, Picciani, Paulo Melo e Edson Albertassi permanecem presos.
O mesmo aconteceu quando o Supremo julgava se as polícias federal e civil podem firmar acordos de delação premiada. Depois de um dia inteiro de sessão e depois dos votos dos ministros Marco Aurélio (relator), Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux e Dias Toffoli, o julgamento foi adiado para o dia seguinte. E na quinta-feira, os ministros decidiram aguardar a presença de Gilmar Mendes – em viagem ao exterior – e de Ricardo Lewandowski – que estava de licença médica.
Cármen Lúcia também pautou em novembro, neste mesmo período pós-crise Aécio Neves, a ação que pode levar o Supremo a drasticamente reduzir o foro por prerrogativa de função. Relator da Ação Penal 937, o ministro Barroso suscitou questão de ordem e propôs: “Foro por prerrogativa de função deve valer apenas nos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas, e que, após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo.”
Concordaram com a tese os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio Mello, Cármen Lúcia, Luiz Fux, Rosa Weber e Edson Fachin. O ministro Alexandre de Moraes, que havia pedido vista da ação logo que empossado, divergiu. Ele sustentou que o foro deveria ser aplicado para todos os crimes cometidos pelo parlamentar no exercício do mandato. Assim, ao contrário do que defendeu Barroso, o foro não estaria restrito aos crimes praticados pelo parlamentar que tenham relação com o mandato.
Com a maioria já formada, o ministro Dias Toffoli pediu vista e adiou indefinidamente a conclusão sobre a questão. A interrupção do julgamento não foi uma necessidade para que o ministro analisasse melhor suas premissas de voto. Toffoli paralisou o julgamento em razão das movimentações políticas em torno do tema. No entendimento de alguns ministros da Corte, a extinção do foro por decisão judicial criaria novo atrito entre Supremo e Congresso. Sinal dessa possível contenda seria a proposta de emenda constitucional que tramita na Câmara e que extingue o foro, inclusive para ministros do Supremo.
Sabendo do movimento político de Toffoli, o ministro Barroso tentou driblá-lo e promoveu seu próprio backlash. No último dia do Supremo, com base em julgamento ainda não concluído, o ministro determinou a remessa para a primeira instância do inquérito aberto para investigar o deputado federal Rogério Marinho (PSDB-RN).
Ele argumento que “ainda que interrompido o julgamento por pedido de vista regimental, não parece provável, considerada a maioria já formada, que sua conclusão se dê em sentido oposto ao já delineado”.
Exemplos
Outros três casos marcaram a reação aberta da política a julgados do Supremo.
Em 2016, o tribunal julgou inconstitucional uma lei do Ceará que regulamentava a vaquejada como prática desportiva. Os ministros entenderam que a crueldade contra o animal era prática que violava a Constituição.
O Congresso se mobilizou e aprovou, neste ano, a proposta de emenda à Constituição que que considera como não cruéis as práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais.
A proposta legislativa solapou a decisão do Supremo. Uma nova ADI foi protocolada no STF agora para questionar a emenda constitucional. Haverá contrarreação do tribunal?
Também no ano passado, a Primeira Turma do STF decidiu que a criminalização da interrupção da gravidez até o primeiro trimestre de gestação viola os direitos fundamentais da mulher. Votaram neste sentido os ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Edson Fachin, estabelecendo um precedente importante sobre o tema.
Neste ano, como reação, o Congresso fez tramitar uma proposta para incluir na Constituição a proteção à vida “desde a concepção”. Pelo texto, mesmo nas hipóteses hoje autorizadas pela legislação, como em caso de estupro ou de risco para a mãe, o aborto seria inconstitucional.
A proposta foi aprovada em comissão especial da Câmara e ainda tem longo caminho legislativo a percorrer. Mas é uma clara resposta da bancada evangélica ao STF.
Um terceiro caso envolveu o entendimento do Supremo sobre a Lei da Ficha Limpa. Por maioria dos votos – 6 a 5, o tribunal julgou que o prazo de oito anos de inelegibilidade pode ser aplicado aos políticos condenados pela Justiça Eleitoral antes da vigência da lei.
Novamente, os políticos se mobilizaram. Passou a tramitar na Câmara um projeto de lei para estabelecer que políticos condenados antes da Lei da Ficha Limpa ficam inelegíveis pelo prazo previsto na legislação em vigor. O projeto ainda não avançou na Câmara.