Marcamos um outro dia para o depoimento, já no início de 2007, nas vésperas do carnaval. Nas paredes do seu escritório os quadros da visita anterior tinham sido removidos. No lugar estavam sete enormes fotografias das escolas de samba do Rio de Janeiro.
Com o gravador ligado, tivemos uma longa e produtiva conversa, que transcrevo a seguir:
— “Edemar, conforme já conversamos, você pertence a um círculo de pessoas que jamais imaginaram conhecer a realidade das nossas prisões; certamente nunca havia pensado que passaria por uma situação como essa. Então, agora que você conhece mais ou menos o que acontece nas nossas penitenciárias, gostaria que relatasse qual foi o impacto que isso lhe causou — na sua pessoa, no seu espírito”.
— “É preciso iniciar dizendo da minha surpresa diante da prisão. Em momento nenhum da minha vida imaginei que pudesse passar por esse pesadelo. Quando foi instaurado o processo crime, desde o começo estava convicto da inocência, minha e dos diretores do banco, tanto que sempre trabalhamos com essa hipótese, que a cada dia se torna mais consistente. Evidentemente, como o caso teve repercussão pública muito grande, nossos advogados aconselhavam a não respondermos às provocações que alguns órgãos de imprensa faziam. Achavam que não era o caso de discutirmos o assunto publicamente. Esse fato acabou, na minha visão, levando o juiz a acreditar na minha culpabilidade e dos diretores. E nós estávamos convencidos de que isso não era verdade. Achávamos que dentro de algum tempo poderíamos mostrar a verdade. Quando minha prisão foi decretada por duas vezes, tínhamos consciência de que havia um erro jurídico”.
— “A primeira prisão foi antes do julgamento”?
— “Foi antes do julgamento. Ele (o juiz) mandou me prender porque entendeu que eu teria escondido obras de arte; que não estava querendo mostrá-las. Ele entendeu também que meus advogados estariam fazendo gestões junto a diretores de um banco no exterior para sonegar informações ao judiciário. Por estas duas razões fiquei preso, detido por noventa e poucos dias. E esta decisão foi julgada ilegal pelo Supremo Tribunal Federal, que me deu a liberdade. Na segunda vez, por ocasião da sentença, o juiz decidiu que eu deveria responder preso. O Supremo, novamente, entendeu que não era o caso. Nessa oportunidade fiquei preso por 20 dias. Nas duas vezes eu sabia do erro que estava sendo cometido. Então, fui para a prisão sabendo que seria libertado em pouco tempo. Eu digo isso porque talvez seja importante para esclarecer o espírito com que eu entrei na prisão”.
— “Diferente de quem é preso por condenação definitiva, a cumprir muitos anos de reclusão”.
— “Exatamente, porque essas pessoas que são sentenciadas por um crime ou por outro, cuja decisão está tomada por um júri e não em decisão monocrática, de um único juiz, como foi meu caso – acredito que essas pessoas entrem num presídio com uma sensação muito diferente daquela sensação em que eu entrei”.
— “Essas pessoas sabem que ficarão presas por um longo período”.
— Isso mesmo. Ao passo que eu sabia que seria solto muito rapidamente, porque havia um erro na decisão. Talvez este espírito com que entrei no presídio tenha sido saudável para minha convivência com outros internos e também para manter a clareza de raciocínio para entender como funciona um presídio. Porque se eu entrasse como entram os outros, talvez não tivesse a consciência ou condições de conversar, de entender. Acho que esses fatos podem ter ajudado para uma reflexão, a ponto de estar hoje dedicando uma parte do meu tempo para montar uma entidade, uma organização não-governamental sem nenhuma ligação com o governo, totalmente independente, de modo a fazer a ressocialização dos presos. Esse é o meu objetivo”.
— “A sua primeira prisão se deu no CDP de Guarulhos e depois em Tremembé — é isso”?
— Foi isso mesmo. Ao longo desses cento e poucos dias, passei por três presídios. Um da polícia federal, onde fiquei por 5 dias. Depois fui para o Centro de Detenção Provisória de Guarulhos, onde fiquei, na primeira vez, cerca de 15 dias. Em seguida, cerca de setenta e poucos dias, fui recolhido na penitenciária II (dois) de Tremembé. Na segunda vez fui detido pela polícia federal e imediatamente transferido para o CDP de Guarulhos, onde fiquei 5 dias. Depois fomos, eu e meu filho, transferidos para Tremembé, onde ficamos mais 6 dias”.
— “Seu filho, então, na primeira vez não foi preso. Só com a sentença”?
— “Isso. Na sentença o juiz mandou prender todos os que estavam condenados. Os outros diretores não foram presos porque estavam ausentes; se fossem encontrados seriam também presos. Na polícia federal, não se trata de um presídio. É uma carceragem, é uma coisa muito provisória. Quanto aos demais locais, podemos fazer uma divisão muito clara: o CDP de Guarulhos é um estabelecimento onde existem cerca de 1200 a 1300 presos para 700 vagas, divididos em raios. Os presos ficam confinados a maior parte do tempo e têm algumas horas de sol em um pátio extremamente pequeno em relação ao número de detentos. Quando você entra no presídio, tem um período de regime de observação, ficando 10 dias confinado, sem tomar sol, sem poder sair da cela. Esta cela onde fiquei pela primeira vez, e na segunda também, com meu filho, tinha 12 camas, das quais só 11 podiam ser usadas, porque uma serve para uma espécie de guarda de alimentos. Nesse universo havia, em geral, o dobro de presos em relação às camas disponíveis. Ficava um entra-e-sai, porque alguns tinham cumprido os 10 dias de observação e já chegavam novos presos. A superlotação era constante; nunca a cela ficou com a população correta em relação às unidades de camas. E aí o que ocorre é um fato muito interessante. Você tem as pessoas que estão nas camas e as que estão no chão. Às vezes o número é tão alto que nem no chão dá para dormir. Você tem que dividir as camas com outras pessoas, fazendo o que chamam de “valete”: os presos deitam-se de forma invertida, como no valete das cartas, com os pés ao lado da cabeça do companheiro. E daí falta tudo: colchão, travesseiro, lençol, tudo. Além disso, existe apenas um banheiro para todos que estão ali, cerca de 20. É importante entender que dentro da cela estão pessoas de vários níveis educacionais. Encontrei, por exemplo, o ex-prefeito de Macapá, por uma ou duas gestões, uma pessoa de nível, que morou nos Estados Unidos, preparado, professor universitário, preso por uma razão que não vem ao caso agora”.
— “Pessoa desse nível ao de lado de semi-analfabetos”.
— “Ao lado de pessoas totalmente analfabetas. Nós convivíamos lá com três rapazes, um totalmente drogado, vivia com drogas, tinha inclusive uma deficiência física e não conseguia viver sem drogas, babava, expelia secreções pelo nariz, não conseguia falar, parecia um retardado”.
— “Em todos os lugares alguém acaba assumindo a liderança desse grupo. Lá também acontecia isso”?
— Sim. Como acontece em uma mesa de baralho, a tendência é que as conversas se nivelem ao mais baixo nível da pessoa presente. Existe na cadeia uma igualdade de situação, ou seja, todos são iguais, não há mais rico, menos rico, mais culto ou menos culto — todos são iguais. Na nossa cela havia um menino que nunca morou em uma casa. A última vez que dormiu numa casa tinha 3 anos. O resto do tempo viveu na rua. Então o nível se baixava a ele, porque se não fizesse isso, ele não conseguia falar, não conseguia ser entendido. Ao baixar o nível, ocorre a ascensão daquele que é mais esperto, com mais anos de cadeia; daquele que é mais criminoso e provoca mais receio no grupo, ou são mais inteligentes. E tem também os religiosos que usam da religião naquele momento para dar conforto espiritual para todos. Então a liderança se dá dessa maneira: primeiro, o nível baixa terrivelmente para que todos tenham acesso ao convívio; em segundo lugar, começam a liderar normalmente três tipos que se igualam: o mais criminoso, mais feroz; o mais falante, inteligente e preparado; finalmente, o mais religioso. Essa liderança é importante para a sobrevivência, para que não haja tumulto na convivência daquelas vinte e poucas pessoas”.
— “E essas pessoas ditam as regras dessa convivência”?
— “Sim. São eles que definem quem deve fazer a limpeza, quem deve pegar a refeição, a distribuição dessa refeição, quem vai para a cama e quem dorme no chão, quem vai debaixo da cama, porque ali existe um pequeno espaço que precisa ser aproveitado. Essa liderança é natural. Não é imposta e é obedecida”.
— “Naquele contexto, com aquele número de pessoas há alguma condição do funcionário público exercer controle”?
— “Não, não há! Na verdade, na cadeia, de um modo geral, quem manda é o preso. Não é o agente ou o diretor”.
— “Se a administração multiplicar o número de funcionários por 10, esse controle seria possível”?
— “Não! Não seria possível. Ali o agente não entra, não opina. Jamais ele tem condições de entrar. Aliás, não entra em cela alguma. Só ficam fora e são chamados quando ocorre algo, como a presença de advogado para falar com alguém. O que ocorre no CDP de Guarulhos é que aquilo é um depósito humano. Não há como qualificar de outra forma: é um depósito humano, onde as pessoas estão confinadas de maneira pior que animais no zoológico. Ali não há a menor oportunidade de se fazer qualquer ação de recuperação do ser humano”.
— “Se você, Edemar, fosse o diretor desse CDP, o que faria para melhorar”?
— “Eu acho que o CDP de Guarulhos, do modo como está, é um depósito inviável. Ele está errado em todos os aspectos: condena as pessoas que ali estão a uma situação social muito perversa”.
— “E se houvesse redução do número de presos para a capacidade normal”?
—- “Mesmo assim você não está dando condições de ressocializar. Mesmo com menos gente continuará o depósito humano. Será apenas um depósito com mais condições. Não há ali condições de ressocialização. Primeiro, porque o nível das pessoas é muito confundido; a conversa fica no nível mais baixo dos que estão ali dentro. Segundo, o preso está inoperante, não tem como passar o tempo. A única maneira de passar o tempo é conversando. E a conversa, pelo nível das pessoas, via de regra, só gira em torno de crimes. Eles têm necessidade de contar o que fizeram, dizem que se julgam inocentes, falam que há impunidade porque aos outros não aconteceu nada. Eles acham que estão pagando o pecado pelos outros e, enfim, o crime é o assunto do dia. Na medida em que conta, o preso se vangloria, pois quanto mais grave o que praticou, é mais respeitado, mais ouvido. Às vezes as pessoas são mais engraçadas, têm maior capacidade de diálogo, exageram, são fantasiosas, vão transmitindo ao parceiro como é que se faz, como é que não se faz, etc. Esse é o grande problema. Outro grande problema, — continuou — é a dificuldade enorme desses presos com a família que está fora. Como ele está preso e não trabalha, fica passando o tempo jogando cartas, dominó, conversando, sempre muito preocupado com a família. Não está preocupado com ele, que já se julga um lixo ali dentro. É o último dos homens. Agora ele está preocupado com o filho dele, se está comendo, se alimentando; com a mulher, se eventualmente não o está traindo com outras pessoas, se prostituindo, para buscar dinheiro. Essa é a preocupação que assola o preso. E é nisso que nasce o crime organizado: o crime organizado nasce nos presídios onde tem depósito humano exatamente pela preocupação do preso em manter sua família viva aqui fora. Então eles organizam esquemas, uma forma de dar sustentabilidade à família. A organização acaba servindo os presos, aos seus familiares, dando proteção dentro e fora da cadeia. Essas organizações criminosas, como PCC, CRBC, etc, têm no fundo um objetivo social. O crime não é o objetivo da organização, mas apenas meio para atingir o objetivo social. A maneira de se combater esse crime organizado não é através do presídio, através da sanção, com a polícia, matando, prendendo, etc – não é nada disso. Isso não resolve absolutamente nada. Só instiga o problema. Isso se resolve dando uma condição correta ao preso e à sua família. E como é que se dá essa condição correta? Com uma palavra: trabalho. O preso tem que trabalhar e ganhar bem, tem que ser produtivo, para que se reeduque e entenda a função social da pena. Por que digo isso? – Porque estive no presídio de Tremembé e vi isso acontecer. Lá é muito diferente de Guarulhos, parece outro País. Enquanto em Guarulhos há um depósito humano perverso, em Tremembé a realidade é outra” .
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Edemar Cid Ferreira prosseguiu:
— “Mas antes tenho que abrir um parênteses e explicar como se mantém a disciplina em Guarulhos. Em cada cela há uma liderança com uma ou mais pessoas, que estão preocupadas em dar comodidade, um mínimo de conforto aos companheiros. Acontece, porém, que naquele raio existe um chefe, o chefe dos presos, indicado pela organização que comanda. A preocupação desse líder é evitar confusão, rebeliões, e está sempre atento para avisar os agentes. Ele faz a defesa dos presos, comunicando quando alguém está doente, necessitado de alguma coisa. Ele é o representante dos presos perante a administração. Mas ele também está ali para vigiar e evitar que componentes de outras facções, de outros comandos, entrem naquele presídio. É muito interessante, porque ao entrar um preso novo no regime de observação, ele é muito pesquisado. Essa pesquisa é feita assim: o chefe do raio, junto com dois ou mais auxiliares, vai falar com o preso que chegou e pergunta de onde ele é, qual seu bairro, quem são seus amigos. Daí ele sai perguntando aos mais antigos quem mora no mesmo bairro daquele preso; se aquela pessoa pertence à facção inimiga. O inquérito que fazem, de forma sumária e rápida, é muito rígido e eficiente. Quando descobrem o inimigo, não fazem nada contra ele: apenas avisam o diretor do presídio para removê-lo para outra penitenciária.
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E acrescentou:
— “Em Tremembé é exatamente o oposto disso. Cada cela comporta duas ou quatro pessoas. É um presídio voltado à segurança de presos especiais, como justiceiros, ex-agentes penitenciários, ex-policiais, etc. Lá todos trabalham, não apenas pelo aspecto financeiro, mas também por necessidade de se ocupar. É uma maneira de se ocupar, de criar, de desenvolver alguma coisa. Criamos lá um grupo de estudos para ler a Bíblia, para estudar e trocar idéias. Com isso reuníamos as pessoas com mais cultura para discutirmos vários assuntos. Nessa discussão acabávamos falando também dos problemas de cada um, numa espécie de terapia grupal. Havia ainda salas de aula para alfabetização. Não há superpopulação. Ninguém está dormindo no chão. Tem campo de futebol, lugar para jogar bocha, malha, voleibol, uma sala de ginástica com equipamentos que eles mesmo fabricaram. Existe uma igreja ecumênica feita pelos presos. As visitas são feitas de forma que as crianças não achem que estão numa cadeia. Os visitantes têm um carinho especial pelo local, inclusive há um ambiente adequado para visitas íntimas, como se fosse um motel. Enfim, Tremembé apresenta quase que as condições ideais para um presídio” .
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— “Aí eu gostaria de perguntar uma coisa ao banqueiro Edemar Cid Ferreira, ao cidadão. Como é que analisa essa situação: muitos dizem que isso é um hotel cinco estrelas, para criminosos, enquanto as pessoas honestas não têm nem metade. O que acha dessa afirmação”?
— “Na verdade, embora eu costumasse brincar dizendo que iria para um spa em Tremembé, em comparação com Guarulhos, é preciso entender que a cadeia é um instrumento de ressocialização do criminoso. E aquelas condições são as mínimas necessárias para se ter sucesso nesse processo de ressocialização. Manter um depósito como em Guarulhos você estará fomentando o crime. Para evitar que as pessoas continuem no crime é preciso investir”.
— “Mas será que a sociedade está preparada para aceitar”?
— “Acho que há aí dois problemas: o primeiro, o despreparo do Estado e da sociedade no entendimento do preso. Parece que há uma barreira intelectual e social para não discutir o problema. Ninguém quer falar sobre isso. Não é assunto para uma roda social. Eu nunca vi ao longo da minha vida – e participei muito da sociedade — de reuniões, festas, solenidades – alguém falando de presídio. O que as pessoas discutem é: mata ou não mata. Quando há um crime hediondo, como aconteceu agora com o menino do Rio de Janeiro que foi arrastado por um carro e teve morte horrível, a sociedade se revolta. Os deputados querem aumentar as prisões. Se tinha regime progressivo, vamos acabar com isso. Agora não pode mais cortar as verbas para presídios. A sociedade, representada pelos parlamentares, não entende a questão central, que é o preso. É preciso que eles sejam ressocializados. E disso ninguém fala”.
— “Depois da crise de maio de 2006, um dos fatos mais graves que o Estado de São Paulo já passou, você ouviu alguém discutindo seriamente esse problema”?
— “Essa crise expôs uma grande ferida. Mostrou perante a sociedade que havia um poder muito grande dos presos e que o governo não tinha como enfrentar o problema. E, ao invés de enfrentar a questão, o governo agiu de forma complacente, deixando tudo como estava. Nunca houve, em momento algum neste País, uma discussão científica sobre o sistema penitenciário. Eu procurei me aprimorar, me informar sobre o assunto e fui buscar um estudo feito pela Câmara dos Comuns, de Londres. Fizeram lá uma espécie de grande CPI, composta por parlamentares de vários partidos, que ficaram dois anos estudando tudo o que aconteceu no mundo em termos de reabilitação de criminosos, especialmente na Alemanha e na Suécia. Esse estudo, feito durante 2004 e 2005, editado agora em 2006 (mostrou dois grossos volumes com o resultado dos estudos, em inglês) tem sido uma espécie de bíblia para mim. Lá houve preocupação do Parlamento, não para encontrar culpados, mas buscando idéias e soluções para que não houvesse mais crimes, para diminuir o número de criminosos. Aqui no Brasil teria que ser feito o mesmo, pelo menos para encontrar o caminho a ser seguido”.
— “Acontece, Edemar, que no Reino Unido há cerca de 70 mil presos para mais ou menos 60 milhões de habitantes, ao passo que em São Paulo, com 40 milhões de habitantes, temos 150 mil presos. Sem contar o custo do preso inglês, que é altíssimo. Essa foi a grande dificuldade na secretaria: a de encontrar uma forma para fazer as coisas que têm de ser feitas, mas com os nossos recursos, com a nossa realidade econômica e social”.
— “Em alguns países em desenvolvimento como o nosso, conseguimos chegar a um ponto: o Brasil é uma das grandes potências do mundo, em termos de produto interno. Mas a participação da sociedade é quase nenhuma do ponto de vista dos problemas sociais. Não há preocupação dos empresários em atender a necessidade da demanda. Aqui se atribui ao governo a responsabilidade por tudo. Há uma distinção entre sociedade e governo, quando se sabe que é uma coisa só. Os governantes são eleitos por nós e são pessoas comuns. A sociedade tem que participar mais, em todas as áreas, educação, saúde, penitenciárias. A sociedade ainda não atentou para o problema, não foi suficientemente conscientizada” .
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— “Nos contatos que você tem feito para montar a ONG tem encontrado boa receptividade”?
— “Eu até parei de falar, porque todos querem entrar no projeto. Tenho falado com pessoas de muito bom nível. Ainda não fui direto ao industrial, que é o próximo passo. Todos entendem quando se transmite a idéia de que com essas ações é possível diminuir os problemas da criminalidade. Nessa discussão sobre a morte do menino do Rio de Janeiro, vi uma matéria sobre uma ONG dirigida por um padre, cujo nome não anotei, mostrando que a reincidência no local em que essa ONG toma conta gira em torno de 4%, enquanto nos outros é de 70%. A matéria mostrava que o trabalho da sociedade civil dentro de uma cadeia é extremamente produtivo. Então, quando você conversa com as pessoas esclarecidas, mostrando que esse trabalho é produtivo, elas entendem”.
— “Mas, Edemar, a experiência na secretaria mostrou que uma coisa é você, do meio empresarial, falando com seus amigos; outra é o representante do governo tentando divulgar a idéia. A receptividade é completamente diferente. Seus amigos atendem a você, mas dificilmente atenderiam a um representante oficial do governo”.
— “É verdade! Eu também acho! Tem razão! Essa discussão, em qualquer setor, só produz resultados se for provocada pelos próprios membros da sociedade civil. Tivemos uma experiência na área da educação, no Estado do Pernambuco, para diminuir a repetência escolar, com excelente resultado. Essa experiência foi feita por um grupo de empresários, em parceria com o Estado. O sucesso foi fantástico e a experiência está sendo levada agora para Goiás e Minas Gerais. Na educação e na saúde o resultado é de longo prazo. Já no sistema penitenciário o resultado pode ser obtido em curtíssimo prazo. É diferente dos outros setores. Você pode fazer com que a cadeia se sustente através de um trabalho empresarial dentro dela” .
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— “Mudando um pouco de assunto, gostaria, Edemar, que você dissesse algo sobre o tempo de prisão. Você que conheceu as pessoas presas, algumas que cometeram crimes muito graves. Você concluiu que essas pessoas precisam ficar muito tempo presas”?
— “Ao contrário, quanto mais tempo a pessoa ficar dentro da cadeia, pior é. O que você percebe é que as pessoas são condenadas a determinado número de anos na prisão e isso não resolve nada. Essa pessoa poderia estar prestando serviço muito melhor, até poderia estar trabalhando fora, por exemplo, em prestação de serviço à comunidade. Havia em Tremembé um médico, condenado a 60 ou 80 anos de prisão, por causa de estupro envolvendo, parece, pessoas de uma única família. Ele nega os fatos, mas não é o caso de discutir esse problema aqui. A verdade é que ele não tem nenhuma periculosidade, nenhuma insanidade. Ele não vai sair estuprando pessoas, ele pode até receber algum tratamento terapêutico, se for o caso, mas poderia estar prestando serviço médico importantíssimo, dentro ou fora do presídio. É um médico com capacidade profissional excepcional. Ele atende, além dos presos, até funcionários da penitenciária”.
— “Outro exemplo deve ser o cabo Bruno, condenado a muitos anos de prisão por delitos cometidos há muitos anos. Pelas informações que tenho, parece uma pessoa já recuperada, não”?
— “Pois é. Eu convivi muito com ele, já que estávamos em celas próximas. Como ele pinta — e pinta extraordinariamente bem — e eu gosto de arte, conversamos muito. Vi o trabalho artístico que faz e vi também o trabalho pastoral que desenvolve junto aos outros presos. Ele passou a ser um líder espiritual dentro da cadeia. Diariamente faz preleções e passou a ter um grau de sofisticação intelectual muito forte, a par de continuar trabalhando, cuidando da horta e também da igreja. A família dele vai muito lá. Ele procura vender os quadros para os visitantes. É uma pessoa que está totalmente preparada para ser solta. Ele tem uma profissão, aliás, duas: a atividade artística e religiosa; é um réu confesso e fala do arrependimento pelos crimes que praticou. Vi isso também em outros presos, como um traficante internacional, dos maiores do País, que usava até aviões no tráfico. Era um rapaz intelectualmente muito preparado e nós conversávamos bastante. Ele dizia do arrependimento e que jamais voltaria a traficar. Sei que fazia tráfico internacional de cocaína, no circuito Bolívia, Colômbia, Manaus, São Paulo, com aviões próprios. Ele confessou o que fazia e disse que jamais retornaria ao crime, não por medo ou pelos riscos, mas porque se arrependeu verdadeiramente. Já estava em vias de conseguir o regime semi-aberto. Eu acredito que não voltará mais ao crime”.
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— “Essa sua posição, que também é a minha, parece estar na contramão do que está acontecendo no País: o que se nota, na Câmara Federal, no Senado da República, praticamente na sociedade inteira, é que todos querem endurecimento, maior rigor na aplicação das penas, não acha? E como é que poderemos inverter isso”?
— “Eu acho que esse é um trabalho importante que você tem que prestar, que eu tenho que prestar e outras pessoas devem prestar. Temos que formar núcleos ao redor desse discurso novo, consistente, que não é um discurso isolado. É o discurso do Departamento de Direitos Humanos das Nações Unidas. Estou buscando a sociedade internacional para que me apóie no trabalho da ONG, a fim de que não seja algo isolado. Quero apresentar uma proposta consistente, como esse calcado nos resultados dos estudos feitos pela Casa dos Comuns de Londres. Baseado nas experiências da Alemanha, da Suécia, da Finlândia. Um trabalho voltado para homens e mulheres, para as crianças e para os jovens. Os brasileiros não estão se dando conta de que estamos infringindo as regras mínimas dos direitos humanos e que o presídio é uma máquina de fazer criminosos, um fomentador de crimes. As regras básicas da liberdade, que todos nós defendemos e queremos, o livre arbítrio, o direito de ir e vir, etc, também devem estar no meio desse debate. Então eu acho que, embora estejamos na contramão da sociedade e seja um trabalho difícil, complicado, é um trabalho de êxito em curto prazo. É um trabalho de muita visibilidade e de resultado rápido. Então eu acho, Nagashi, que estamos em uma missão muito importante. Você tem uma experiência pessoal muito rica; é uma pessoa respeitada, diferente de outras que passaram ou que estão no governo. Ainda ontem, em reunião com um grupo de 10 advogados, ouvi comentários sobre o respeito que você conseguiu com seu trabalho. Então é muito importante o que poderemos fazer, em termos de esclarecimento e de ação concreta”.
Assim terminamos nossa conversa. Antes do início, ainda sem gravação, havia perguntado a Edemar Cid Ferreira:
— “Se antes da sua prisão, eu viesse aqui com essa conversa, qual seria sua reação”?
— “Provavelmente eu não o ouviria” – foi sua resposta.