Criminalidade

Evidências do efeito dissuasório da pena no caso de crimes econômicos

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Capítulo 1

Criminosos reagem à severidade da pena

Como vimos no último artigo[1], a teoria econômica aplicada ao Direito Penal parte de alguns pressupostos metodológicos importados da ciência econômica: a teoria parte da premissa de que o agente econômico é racional. Ela também considera uma definição particular da racionalidade humana – a de que o homo economicus age, em regra, para maximizar sua utilidade. Vale dizer, dados dois cursos de ação alternativos, a análise econômica do direito conclui que o agente irá adotar aquele que, à luz das informações que tem no momento da decisão, lhe trará o maior benefício esperado, medido em termos de bem-estar. Daí se extrai o conceito de dissuasão da norma penal como aquele efeito que reduz ou elimina o benefício esperado do crime e, portanto, a sua prevalência.

A aplicação destes pressupostos à análise da conduta humana é, obviamente, simplificadora. Há inúmeros fatores que explicam a ação do agente – criminosa ou não – e a avaliação econômica é uma forma de reduzir esta complexidade a algumas variáveis-chave. Como em qualquer esforço científico, o teste para aferir se esta moldura teórica tem ou não validade deveria reduzir-se à pergunta: “Ao explicar, ainda que de forma simplificada, a conduta criminosa, a teoria econômica do direito funciona como modelo preditivo?” Afinal, uma teoria que formulasse uma hipótese para explicar a conduta humana (e.g. “a teoria de que os criminosos respondem ao benefício esperado com o crime”), mas que falhasse ao explicar essa mesma conduta, não passaria pelo crivo do método científico definido por Popper: o cientista deve formular hipóteses falseáveis e admitir como corretas, provisoriamente, apenas aquelas que não consegue descartar[2].

Neste contexto, vale revisitar o que a literatura empírica mais recente nos ensina acerca da nossa hipótese central: a de que o efeito dissuasório do direito penal guarda relação direta com o aumento esperado do custo do crime e, por derivação, das suas premissas metodológicas – o criminoso, como regra geral, é racional e sua racionalidade é similar àquela descrita pelo homo economicus: o agente é maximizador de seu bem-estar.

A forma mais tradicional de testar a hipótese diz respeito à linha de estudos que tentam estabelecer uma relação de causalidade entre um indicador da dissuasão e a incidência de determinado crime[3]. Assim, busca-se testar, por exemplo, se colocar mais policiais na rua (indicador de maior detecção) ou aumentar a severidade da pena diminui a incidência do crime, como predicaria o modelo tradicional de análise econômica do direito. O problema desta linha de pesquisa é que, do ponto de vista empírico, é muito difícil distinguir o efeito decorrente da dissuasão da norma propriamente dito do efeito da retirada de criminosos da rua. Em outras palavras, na medida em que há maior aplicação da lei, fica difícil saber se a incidência do crime é reduzida porque a probabilidade de detecção e punição aumentou ou porque simplesmente há menos criminosos convivendo na sociedade, uma vez que uma maior quantidade deles está sendo encarcerada[4].

Para resolver esse problema, o professor da Universidade de Chicago Steven D. Levitt[5] conduziu sólido estudo empírico em que testa o efeito de um aumento no índice de prisões (i.e., efetividade do aparato de aplicação da lei) sobre diversos crimes, do homicídio ao roubo de carros. Se a incidência dos crimes é reduzida apenas porque há menos criminosos nas ruas, um aumento na taxa de prisões deveria reduzir todos os crimes, ainda que com impactos distintos. Já se o aumento do índice de prisões de determinados crimes reduz sua incidência por conta do efeito dissuasório, então um aumento na persecução ao roubo de carro não deveria ter qualquer efeito sobre, por exemplo, o número de assaltos a residências.

O resultado do estudo de Levitt é intuitivo: no caso dos crimes contra o patrimônio, o efeito dissuasório é extremamente tangível: o aumento na probabilidade de punição (medido pelo número de prisões) explica cerca de 75% (setenta e cinco por cento) da diminuição da incidência do crime. O mesmo não ocorre de forma pronunciada em relação a homicídios e estupro, crimes em que o padrão de racionalidade adotado para a conduta humana falha em explicar a realidade. De forma geral, portanto, enquanto um aumento da pena ou da probabilidade de detecção do crime tem efeitos materiais sobre crimes como furto, roubo, estelionato e assim por diante, o mesmo provavelmente não ocorrerá com outra série de crimes, como aqueles contra a vida. Se o aumento na probabilidade de punição tem efeito demonstrável na diminuição da criminalidade, o que dizer do outro componente do modelo clássico da análise econômica do direito penal, o da severidade da pena? A evidência empírica também é robusta na validação da hipótese de que penas mais severas reduzem a incidência da atividade ilícita tipificada?

Um dos estudos fundamentais acerca do tema é o de Kessler e Levitt[6].  Os autores mediram como um endurecimento repentino na severidade das penas afeta a incidência do crime, isolando este componente de outras potencias explicações. Para tanto, os autores se valeram da onda de endurecimento sancionatório pela qual passaram os Estados Unidos na década de 90 em relação aos criminosos reincidentes. Até meados da década de 90, todos os Estados americanos e o próprio governo federal aprovaram legislação que endurecia as penas, em especial para os criminosos reincidentes. Dentre as reformas legislativas, as mais conhecidas introduziram as chamadas “three strike laws”, que previam severas penas (em alguns casos, inclusive prisão perpétua) para os que recebiam uma terceira condenação criminal.

Kessler e Levitt escolheram uma das primeiras reformas legislativas, a do Estado da Califórnia, para testar os efeitos dissuasórios de um aumento na severidade da pena.  Em 1982, por voto popular, o Estado da Califórnia aprovou um aumento de cinco anos na pena de reclusão de qualquer crime grave para cada condenação prévia sofrida por outro crime grave, ou aumento de um ano de reclusão de qualquer crime grave para cada condenação prévia por infração de menor potencial ofensivo. Do ponto de vista empírico, o mais importante é que, ao aumentar a severidade apenas para autores de crimes graves que sejam reincidentes na atividade criminosa, a introdução da nova lei permitiu testar o efeito dissuasório de forma objetiva: quanto a incidência dos crimes graves foi reduzida em relação aos crimes de menor potencial ofensivo, que não foram afetados pela nova lei. Os resultados do estudo são eloquentes: nos anos imediatamente subsequentes, verificou-se uma queda significativa de todas as cinco categorias de crime abarcadas pela nova lei, com uma queda média na incidência dos crimes afetados de 13,9%. Levando em consideração a forte tendência, ano após ano, de aumento na incidência de crimes graves, o impacto real decorrente do aumento na severidade da pena para estes crimes, estimado pelos autores, foi de 15,4%. Em contraste, os crimes não afetados pela nova lei tiveram uma queda média muito pequena, de 2,9%. À luz dos resultados, os autores concluem que, de fato, os criminosos reagem à severidade da pena e não apenas à certeza da punição[7]

A evidência empírica mais recente demonstra, assim, a validade da teoria econômica do direito aplicada a determinadas condutas criminais, em especial no que diz respeito àquelas infrações em que a questão pecuniária está na raiz da própria conduta, como são os crimes contra o patrimônio e os crimes econômicos.

Com esse pano de fundo, discutiremos no próximo artigo qual seria o modelo socialmente eficiente para reprimir um dos crimes econômicos mais recentemente discutidos no Brasil: o crime de cartel.

 

[1] Martinez, Ana Paula. Análise Econômica do Direito Penal, Coluna JOTA Academia, Julho 2016.

[2] Popper, Karl. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 1972.

[3] Vide, e.g., Blumstein, Alfred et al. Deterrence and Incapacitation: Estimating the effects of criminal sanctions on crime rates. Washington: National Academy of Sciences Press, 1978; Cameron, Samuel. The Economics of Crime Deterrence: A Survey of Theory and Evidence. Kyklos. Nova Iorque, v. 41, nº 2, p. 301-323, 1988; Gibbs, Jack P.Crime, Punishment, and Deterrence. New York: Elsevier, 1975.

[4] Esse problema, de natureza metodológica, tornou os primeiros estudos empíricos acerca do tema menos satisfatórios do que se poderia esperar. De forma geral, grande parte da literatura existente antes dos estudos mencionados aqui pôde confirmar com muito mais facilidade os efeitos dissuasórios decorrentes da efetividade de aplicação da lei do que aqueles decorrentes do aumento na severidade da pena. Para resumo desta questão, vide Nagin, Daniel S.; Pogarsky, Greg. Integrating Celerity, Impulsivity and Extralegal Sanction Threats into a Model of General Deterrence: Theory and Evidence. Disponível em www.ssc.wisc.edu/econ/durlauf/networkweb1/london/criminology/1-15-01.pdf.

[5] Levitt, Steven D. Why do Increased Arrest Rates Appear to Reduce Crime: Deterrence, Incapacitation or Measurement Error?. National Bureau of Economic Research Working Paper nº 5268. Cambridge, 1995.

[6] Kessler, Daniel e Levitt,  Steven D., Using Sentence Enhancements to Distinguish Between Deterrence and Incapacitation, National Bureau of Economic Research Working Paper nº 6484. Cambridge, 1998.

[7] Kessler, Daniel e Levitt,  Steven D., Using Sentence Enhancements to Distinguish Between Deterrence and Incapacitation, op. cit., do original: “criminals respond to the severity and not just the certainty of sentences”.