Antes de explorar alguns exemplos contemporâneos e emblemáticos da realidade brasileira, cabe fazer duas anotações importantes. A primeira: o jeitinho alimenta o mito do brasileiro cordial[8]. O cor ou cordis vem de coração e revela o primado da emoção e do sentimento nas relações interpessoais, acima dos formalismos e do verniz superficial da polidez. A cordialidade, nesta acepção, reconduz à versão positiva do jeitinho, manifestado na pessoalização das relações sociais pela afetuosidade, informalidade e bom humor. Mas esta é, também, a raiz das disfunções apontadas acima, que se materializam na indisciplina, no desapreço aos ritos essenciais, no individualismo que se sobrepõe à esfera pública. O mito da cordialidade enfrenta outras dificuldades quando confrontado com alguns dados do país real: o número assombroso de mortes violentas, o machismo ainda indomado, a violência contra mulheres, o racismo velado… Os exemplos são muitos.
A segunda anotação é que o jeitinho exibe uma relação ruim com a lei em geral[9]. Leis têm caráter geral e obrigatório, isto é, valem para todos em igual situação e devem ser obedecidas. Aqui temos dois problemas. Um, diz respeito, de novo, à questão da igualdade: há os que se consideram acima da lei, por sua riqueza ou seus cargos. É o sentimento aristocrático, o representante do rei. O outro problema relaciona-se à legalidade propriamente dita: como o país tem uma tradição autoritária e hierárquica, o cidadão comum vai desenvolvendo mecanismos de se subtrair à norma e à autoridade. Isso poderia se justificar na colônia ou na ditadura. Mas não faz sentido em uma democracia. Esse tipo de jeitinho, aliás, termina por confrontar-se com duas grandes conquistas ligadas ao Estado de direito e à democracia: a legalidade (i.e., o respeito às leis) e a igualdade (todos são iguais perante a lei).
Temos problemas relacionados ao jeitinho assim na ética pública como na ética privada. E em graus diferentes, tanto envolvendo a quebra de normas sociais quanto a violação da lei. Por ética pública eu me refiro ao comportamento dos agentes públicos e às relações entre os indivíduos e o Poder Público. Por ética privada quero significar as relações interpessoais e sociais entre as pessoas, a consideração maior ou menor que uma tem pela outra.
- Jeitinho e ética pública
No que diz respeito à ética pública, a verdade é que criamos um país devastado pela corrupção. Não foram falhas pontuais, individuais, pequenos deslizes ou acidentes. Foi um modelo institucionalizado, que envolve servidores públicos, empresas privadas, partidos políticos e parlamentares. Eram organizações criminosas, que captavam recursos ilícitos, pagavam propinas e distribuíam dinheiro público para campanhas eleitorais ou para o bolso. Isto é, para fraudar o processo democrático ou para fins de enriquecimento ilegítimo. É impossível não sentir vergonha pelo que aconteceu no Brasil.
O jeitinho brasileiro contribui para esse estado de coisas. Em primeiro lugar, o hábito de olhar para o outro lado para não ver o que está acontecendo. Como consequência, as pessoas no Brasil se surpreendem com o o que já sabiam. Ou alguém imaginava que partidos políticos se engalfinhavam para indicar diretores de empresas estatais para fazerem coisas boas, para melhor servirem ao interesse público? Essa era uma tragédia previsível. Ainda assim, o país se deu conta, horrorizado, que quase todo o espaço público estava tomado pela corrupção: Petrobras, Caixa Econômica Federal, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, Fundos de Pensão. A corrupção virou meio de vida para alguns e modo de fazer negócios para outros. Não se trata de fenômeno de um governo específico, mas que vem acumulando desde muito longe. A corrupção favorece os piores. É a prevalência dos espertos e a derrota dos bons[10].
Uma das causas da corrupção é a impunidade. Temos uma dificuldade cultural em punir. A punição é incompatível com a cordialidade, supõe o imaginário social brasileiro. Há uma bela música do Chico Buarque, chamada “Fado Tropical”, em que uma voz portuguesa declama ao fundo um verso que diz: “E se a sentença se anuncia bruta, mais que depressa a mão cega a executa, pois que se não o coração perdoa”. Assim somos, sentimentais e lenientes. Daí os processos que não acabam nunca, mesmo depois de sucessivas condenações; a prescrição que extingue a punibilidade; a nulidade inventada ou “descoberta” ao final do processo, impedindo o desfecho; o foro privilegiado, impedindo ou retardando a punição dos poderosos ou, pior, usado para ajudar os amigos e perseguir os inimigos. E se tudo der errado, anistia-se o caixa 2.
- Jeitinho e ética privada
Já a ética privada está ligada aos valores e propósitos que norteiam a conduta de cada um, bem como ao grau de respeito pelo outro, quer individualmente ou socialmente. A vida boa inclui a boa-fé (não querer passar ninguém para trás), a boa-vontade (ter uma atitude construtiva em relação a todos) e a compaixão (ser solidário com o sofrimento alheio). O compromisso com o bem está presente em todas as grandes tradições filosóficas e religiosas universais, materializado na regra de ouro: trate os outros como gostaria de ser tratado. Immanuel Kant enunciou a mesma ideia em uma frase memorável: “Aja de tal forma que a máxima que inspira a sua conduta possa se transformar em uma lei universal”[11]. Parece complexo, mas é muito simples. Diante da dúvida razoável acerca do modo certo de agir, duas perguntas, como regra geral, poderão resolver o problema: “E se fizessem isso comigo?”; ou, então: “E se todo mundo se comportasse assim”?
Pois bem: o jeitinho oscila em uma escala que vai do favor legítimo à corrupção mais escancarada. E é precisamente porque algumas de suas manifestações não são condenáveis, que ele termina sendo aceito de forma generalizada, sem que se distinga adequadamente entre o certo e o errado, o bem e o mal. A pergunta chave a ser feita aqui para saber se o jeitinho é legítimo ou não é a seguinte: esta conduta traz prejuízo para outra pessoa, para o grupo social ou para o Estado? Se a resposta for afirmativa, dificilmente haverá salvação. Há transgressões óbvias, como furar a fila, ultrapassar pelo acostamento ou desviar suprimentos da empresa em que se trabalha. E há outras que são racionalizadas pela afetividade: há quem acredite que fazer pela família e pelos amigos, mesmo contra o interesse coletivo, é ser solidário, e não egoísta.
Concluo com dois exemplos recentes, que testemunhei pessoalmente. O primeiro: em uma reunião social, ouvi um interlocutor queixar-se contra as mazelas do país, sobretudo a corrupção. Em seguida, narrou que a empregada que contratara não queria assinar a carteira, de modo a não perder o valor que recebia como bolsa-família. Naturalmente, isto é errado. Pouco à frente, contou que a filha vivia conjugalmente com um companheiro, tinha filhos e uma linda família. Mas que não se casara para não perder a pensão que lhe deixara o avô, e que só beneficia mulheres solteiras. A percepção da primeira atitude como condenável e da segunda como aceitável é sintomática de uma sociedade que pratica uma moral dupla: quando eu faço é legítimo, quando os outros fazem é errado. Evidentemente, a conduta estava errada nos dois casos. A segunda: tenho conhecidos, bem postos na vida, que em determinadas reuniões sociais com muitos convidados, dão dinheiro aos garçons para serem melhor servidos. A prática é vista como inofensiva, quase como uma generosidade, mas na verdade ela traz em si dois problemas: (i) a crença de que as pessoas podem ser compradas; e (ii) a crença de que uns são melhores do que os outros e merecem ser mais bem servidos. Para darmos o salto civilizatório de que precisamos, é preciso que cada um comece a mudança por si próprio. A ética pública, de que tanto nos queixamos, é em grande medida espelho da ética privada.
Conclusão
O jeitinho brasileiro é produto de algumas características da colonização e da formação nacionais. Ele se traduz na pessoalização das relações sociais e institucionais e importa, muitas vezes, no afastamento de regras que deveriam valer para todos. Em sua vertente positiva, ele revela uma certa leveza de ser, combinando traços de afetividade, criatividade e solidariedade. Presta-se, assim, em muitas situações, para superar as adversidades da vida, em um país marcado por desigualdades sociais, deficiências dos serviços públicos e complexidades burocráticas. Infelizmente, porém, as facetas negativas superam em quantidade e qualidade os aspectos mais glamorosos do jeitinho.
Improviso, relações familiares e pessoais acima do dever e a cultura da desigualdade contribuem para o atraso social, econômico e político do país. Mais grave, ainda, o jeitinho importa, com frequência, em passar os outros para trás, em quebrar normas éticas e sociais ou em aberta violação da lei. Em todas essas situações, ele traz em si um elevado custo moral, por expressar um déficit de integridade pessoal e de republicanismo. Em desfecho deste ensaio, então, é possível concluir que, salvo nas hipóteses pontuais e específicas em que se manifesta por comportamentos legítimos, o jeitinho brasileiro deverá ser progressivamente empurrado para a margem da história pelo avanço do processo civilizatório.
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Encerramento. Nada do que eu disse deve ser interpretado como qualquer grau de pessimismo em relação ao Brasil. Pelo contrário. Nós estamos às vésperas de um novo tempo. Minha única aflição é a de não desperdiçarmos a chance de fazer um novo país, maior e melhor. Eu sei que tudo parece muito difícil. Mas não custa lembrar: a ditadura militar parecia invencível. A inflação parecia invencível. A pobreza extrema parecia invencível. Já vencemos batalhas impossíveis anteriormente. Não podemos desanimar. Eu concluo com o slogan pessoal que tem me animado nos bons e nos maus momentos: “Não importa o que esteja acontecendo à sua volta: faça o melhor papel que puder. E seja bom e correto, mesmo quando ninguém estiver olhando”.
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[1] Carlos Guilherme Mota e Adriana Lopez, História do Brasil: uma intepretação. São Paulo: Editora 34, 2015; Ana Maria dos Santos, Guilherme Pereia das Neves, Humberto Fernandes Machado e Williams da Silva Gonçalves, História do Brasil: da terra ignota ao Brasil atual. Rio de Janeiro: LogOn, 2002; Boris Fausto, História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008; Eduardo Bueno, Brasil: uma história. São Paulo: Ática, 2003; Caio Prado Junior, Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011 (a 1a edição é de 1942); Laurentino Gomes, 1808. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007.
[2] Carlos Guilherme Mota e Adriana Lopez, História do Brasil: uma intepretação. São Paulo: Editora 34, 2015, p. 54-55.
[3] Ana Maria dos Santos, Guilherme Pereia das Neves, Humberto Fernandes Machado e Williams da Silva Gonçalves, História do Brasil: da terra ignota ao Brasil atual. Rio de Janeiro: LogOn, 2002, p. 40.
[4] Boris Fausto, História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 43-46.
[5] Boris Fausto, História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008, p. 51.
[6] Sobre o período, v. Laurentino Gomes, 1808. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007.
[7] Sergio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991 (a 1ª edição é de 1936); Roberto DaMatta, Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997 (a 1ª edição é de 1979); e O jeitinho brasileiro. Entrevista ao Blog Mania de história. https://maniadehistoria.wordpress.com/o-jeitinho-brasileiro/. Acesso em 22 mar. 2017; Leonardo Flach, O jeitinho brasileiro: analisando suas características e influências nas práticas organizacionais. Revista Gestão e Planejamento 12:499 (2012). Disponível em http://www.revistas.unifacs.br/index.php/rgb/article/view/1197. Acesso em 26 mar 2017; Keith Rosenn, Brazil’s legal culture: the jeito revisited. Florida International Law Journal 1:1 (1984). Maria Cristina Ferreira, Ronald Fischer, Juliana Barreiros Porto, Ronaldo Pilati e Taciano L. Milfont, Unravelling the mystery of Brazilina jeitinho: a cultural exploration of social norms. Personality and Social Psychology Bulletin 38:1 (2012). Disponível em http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0146167211427148. Acesso em 26 mar 2017.
[8] A expressão é de Ribeiro do Couto e seu conteúdo foi aprofundado por Sergio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, Rio de Janeiro: José Olympio, 1991 (a 1ª edição é de 1936).
[9] V. Roberto DaMatta, O jeitinho brasileiro. Entrevista ao Blog Mania de história. https://maniadehistoria.wordpress.com/o-jeitinho-brasileiro/. Acesso em 22 mar. 2017.
[10] Sobre o ponto, v. Míriam Leitão, História do Futuro. São Paulo: Intrínseca, 2015, p. 177-78.
[11] Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, 2004, p. 33.