No plano da necessidade, cabe examinar, conforme já observado, se a medida legislativa interventiva em dado direito fundamental mostra-se necessária, do ponto de vista da Constituição, para a proteção de outros bens jurídicos igualmente relevantes.
Quando se discute a utilização do Direito Penal como instrumento
de repressão à posse de drogas para consumo pessoal, questiona-se sobre a existência de bem jurídico digno de proteção nesse campo, tendo em vista tratar-se de conduta que causaria, quando muito, dano apenas ao usuário e não a terceiros.
Em contraste com esse entendimento, levanta-se a tese de que a incriminação do porte de droga para uso pessoal se justificaria em função da expansibilidade do perigo abstrato à saúde. Nesse contexto, a proteção da saúde coletiva dependeria da ausência de mercado para a traficância. Em outras palavras, não haveria tráfico se não houvesse consumo. Além disso, haveria uma relação necessária entre tráfico, consumo e outros delitos, como crimes contra o patrimônio e violência contra a pessoa.
Temos em jogo, portanto, de um lado, o direito coletivo à saúde e à segurança públicas e, de outro lado, o direito à intimidade e à vida privada, que se qualificam, no caso da posse de drogas para consumo pessoal, em direito à autodeterminação. Nesse contexto, impõe-se que se examine a necessidade da intervenção, o que significa indagar se a proteção do bem jurídico coletivo não poderia ser efetivada de forma menos gravosa aos precitados direitos de cunho individual.
Cabe ressaltar que não se cuida, aqui, de ignorar os riscos e malefícios associados ao uso de drogas, mas em examinar se a restrição penal mostra-se, neste contexto, inexoravelmente necessária. Para isso, é preciso que se avaliem, a partir de aportes teóricos sobre restrições a direitos fundamentais em situações de aparente conflito, a intensidade da intervenção e os fundamentos que a justificaram (proporcionalidade em sentido estrito).
O exercício dos direitos pode dar ensejo, muitas vezes, a uma série de conflitos com outros direitos constitucionalmente protegidos. Daí a importância da noção de âmbito ou núcleo de proteção dos direitos fundamentais. Alguns autores chegam a afirmar que o âmbito de proteção é aquela parcela da realidade que o constituinte houve por bem definir como objeto de proteção especial, “aquela fração da vida protegida por uma garantia fundamental” (PIEROTH, Bodo e SCHLINK, Bernhard, Direitos Fundamentais, Trad. António Francisco de Sousa e António Franco, São Paulo: Saraiva, 2011/Série IDP).
Nesse sentido é imperioso que se identifique não só o objeto da proteção, mas também contra que tipo de agressão ou restrição se outorga essa proteção. Quanto mais amplo for o âmbito de proteção de um direito fundamental, tanto mais se afigura possível qualificar qualquer ato do Estado como restrição. Ao revés, quanto mais restrito for o âmbito de proteção, menor possibilidade existe para a configuração de um conflito entre o Estado e o indivíduo.
Não raro, a definição do âmbito de proteção de certo direito depende de uma interpretação sistemática, abrangente de outros direitos e disposições constitucionais. Muitas vezes, a definição do âmbito de proteção somente há de ser obtida em confronto com eventual restrição a esse direito. Tudo isso demonstra que a identificação precisa do âmbito de proteção de determinado direito fundamental exige um renovado e constante esforço hermenêutico.
Não há dúvida de que a ideia de restrição leva, aparentemente, à identificação de duas situações distintas: o direito e a restrição.
Se direito fundamental e restrição são duas categorias que se deixam distinguir lógica e juridicamente, então existe, em tese, um direito não limitado, que, com a imposição de restrições, converte-se num direito limitado. Essa teoria, chamada de teoria externa, admite que, entre a ideia de direito e a ideia de restrição, inexiste uma relação necessária. Essa relação seria estabelecida pela necessidade de compatibilização concreta entre os diversos tipos de direitos fundamentais (ALEXY, Robert, Theorie der Grundrechte, p. 250).
A essa concepção contrapõe-se a chamada teoria interna, para a qual não existem os conceitos de direito e de restrição como categorias autônomas, mas sim a ideia de direito fundamental com determinado conteúdo. A ideia de restrição é substituída pela de limite. Tal como ressaltado por ALEXY, eventual dúvida sobre o limite do direito não se confunde com a dúvida sobre a amplitude das restrições, mas diz respeito ao próprio conteúdo do direito (idem, 250).
Cogita-se aqui dos chamados limites dos limites, que balizam a ação do legislador quando restringe direitos individuais. Esses limites, que decorrem da própria Constituição, referem-se tanto à necessidade de proteção de um núcleo essencial do direito fundamental quanto à clareza, determinação, generalidade e proporcionalidade das restrições impostas (PIEROTH, Bodo e SCHLINK, Bernhard, ob. cit).
Alguns ordenamentos constitucionais consagram expressamente a proteção do núcleo essencial, como se lê no art. 19, II, da Lei Fundamental alemã, que estabelece que “em nenhum caso poderá ser um direito fundamental violado em sua essência”.
Essa cláusula configura uma tentativa de fornecer resposta ao poder quase ilimitado do legislador no âmbito dos direitos fundamentais, tal como amplamente reconhecido pela doutrina até o início do século passado. A proteção dos direitos realizava-se mediante a aplicação do princípio da legalidade da Administração e dos postulados da reserva legal e da supremacia da lei.
Isso significava que os direitos fundamentais submetidos a uma reserva legal poderiam ter a sua eficácia completamente esvaziada pela ação legislativa (THOMAS, Richard, Grundrechte und Polizeigewalt, in TRIEPEL, Heinrich [Org.], Festgabe zur Feier des funfzigsjährigen Bestehens des Preussischen Oberverwaltungsgerichts, 1925, p. 183-223, 191 e s.; e ANSCHUTZ, Gerhard, Die Verfassung des Deutschen Reichs vom 11 August 1919, 14. ed., Berlin, 1933, p. 517 e s).
Tentou-se contornar o perigo do esvaziamento dos direitos de liberdade pela ação do legislador democrático com a doutrina das garantias institucionais, segundo a qual determinados direitos concebidos como instituições jurídicas deveriam ter o mínimo de sua essência garantido constitucionalmente.
A falta de mecanismos efetivos de controle de constitucionalidade das leis – somente em 1925 reconheceu o Reichsgericht a possibilidade de se proceder ao controle de constitucionalidade do direito ordinário – e a ausência de instrumentos asseguradores de efetividade dos direitos fundamentais em face dos atos administrativos contribuíam ainda mais para a onipotência do legislador.
A Lei Fundamental alemã declarou expressamente a vinculação do legislador aos direitos fundamentais (LF, art. 1, III), estabelecendo diversos graus de intervenção legislativa no âmbito de proteção desses direitos. No art. 19, II, consagrou-se, por seu turno, a proteção do núcleo essencial. Essa disposição, que pode ser considerada uma reação contra os abusos cometidos pelo nacional-socialismo, atendia também aos reclamos da doutrina constitucional da época de Weimar, que ansiava por impor limites à ação legislativa no âmbito dos direitos fundamentais. (Von Mangoldt/Franz Klein, Das Bonner Grundgesetz, cit., 2. ed., 1957, art. 19, nota V 4; Ludwig Schneider, Der Schutz des Wesensgehalts von Grundrechten nach, art. 19, II, GG, Berlin: Duncker & Humblot, 1983, p. 189 e s).
Na mesma linha e por razões assemelhadas, a Constituição portuguesa e a Constituição espanhola contêm dispositivos que limitam a atuação do legislador na restrição ou conformação dos direitos fundamentais (cf. Constituição portuguesa de 1976, art. 18o, n. 3, e Constituição espanhola de 1978, art. 53, n. 1).
Há de ressaltar, porém, que, enquanto princípio expressamente consagrado na Constituição ou enquanto postulado constitucional imanente, o princípio da proteção do núcleo essencial destina-se a evitar o esvaziamento do conteúdo do direito fundamental decorrente de restrições descabidas, desmesuradas ou desproporcionais.
Cabe assinalar que o significado de semelhante cláusula e da própria ideia de proteção do núcleo essencial não é unívoco na doutrina e na jurisprudência. No âmbito da controvérsia sobre o núcleo essencial, suscitam-se indagações expressas em dois modelos básicos:
1) Os adeptos da chamada teoria absoluta entendem o núcleo essencial dos direitos fundamentais como unidade substancial autônoma que, independentemente de qualquer situação concreta, estaria a salvo de eventual decisão legislativa. Essa concepção adota uma interpretação material segundo a qual existe um espaço interior livre de qualquer intervenção estatal. Em outras palavras, haveria um espaço que seria suscetível de limitação por parte do legislador e outro seria insuscetível de limitação. Neste caso, além da exigência de justificação, imprescindível em qualquer hipótese, ter-se-ia um “limite do limite” para a própria ação legislativa, consistente na identificação de um espaço insuscetível de regulação (HESSE, Grunzuge des Verfassungsrechts, cit., p. 134).
2) Por outro lado, os defensores da chamada teoria relativa entendem que o núcleo essencial há de ser definido para cada caso, tendo em vista o objetivo perseguido pela norma de caráter restritivo. O núcleo essencial seria aferido mediante a utilização de um processo de ponderação entre meios e fins, com base no princípio da proporcionalidade. O núcleo essencial seria aquele mínimo insuscetível de restrição ou redução (HESSE, ob. cit. p. 134).
Tanto a teoria absoluta quanto a teoria relativa pretendem assegurar maior proteção aos direitos fundamentais, na medida em que buscam preservá-los contra ação legislativa desarrazoada.
Todavia, todas elas apresentam fragilidades.
É verdade que a teoria absoluta, ao acolher uma noção material do núcleo essencial, insuscetível de redução por parte do legislador, pode converter-se, em muitos casos, numa fórmula vazia, dada a dificuldade ou até mesmo a impossibilidade de se demonstrar ou caracterizar in abstracto a existência desse mínimo essencial. É certo, outrossim, que a ideia de uma proteção ao núcleo essencial do direito fundamental, de difícil identificação, pode ensejar o sacrifício do objeto que se pretende proteger. Não é preciso dizer também que a ideia de núcleo essencial sugere a existência clara de elementos centrais ou essenciais e elementos acidentais, o que não deixa de conduzir a significativos embaraços teóricos e práticos.
Por seu turno, a opção pela teoria relativa pode conferir uma flexibilidade exagerada ao estatuto dos direitos fundamentais, o que acaba por descaracterizá-los como princípios centrais do sistema constitucional.
Por essa razão, propõe HESSE uma fórmula conciliadora, que reconhece, no princípio da proporcionalidade, uma proteção contra as limitações arbitrárias ou desarrazoadas (teoria relativa), mas também contra a lesão ao núcleo essencial dos direitos fundamentais. É que, observa HESSE, a proporcionalidade não há de ser interpretada em sentido meramente de adequação da medida limitadora ao fim perseguido, devendo também cuidar da harmonização dessa finalidade com o direito afetado pela medida (HESSE, op. cit., p. 149).
A ordem constitucional brasileira não contemplou qualquer disciplina direta e expressa sobre a proteção do núcleo essencial de direitos fundamentais. É inequívoco, porém, que o texto constitucional veda expressamente qualquer proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais (CF, art. 60, § 4o, IV). Tal cláusula reforça a ideia de um “limite do limite” também para o legislador ordinário.
Embora omissa no texto constitucional brasileiro, a ideia de um núcleo essencial decorre do próprio modelo utilizado pelo constituinte. A não admissão de um limite ao afazer legislativo tornaria inócua qualquer proteção fundamental.
Compreendidos os contornos do âmbito de proteção dos direitos fundamentais contra intervenções arbitrárias, cabe examinar as possíveis soluções quando se trata de intervenção em direitos individuais em nome da proteção a direitos de feição coletiva.
A doutrina cogita de colisão de direitos em sentido estrito ou em sentido amplo. As colisões em sentido estrito referem-se apenas àqueles conflitos entre direitos fundamentais. As colisões em sentido amplo, por outro lado, envolvem os direitos fundamentais e outros valores que tenham por escopo a proteção de interesses da comunidade ou direitos fundamentais individuais e direitos fundamentais coletivos e difusos.
Assim, é comum a colisão entre o direito de propriedade e interesses coletivos associados, por exemplo, a utilização da água ou a defesa de um meio ambiente equilibrado. Da mesma forma, não raro surgem conflitos entre as liberdades individuais e a segurança interna como valor constitucional, ou, como na hipótese dos autos, conflitos entre liberdade individual e saúde pública.
Questão embaraçosa refere-se ao direito ou bem que há de prevalecer no caso de colisão autêntica. É possível que uma das fórmulas alvitradas para a solução de eventual conflito passe pela tentativa de estabelecimento de uma hierarquia entre direitos fundamentais. Embora não se possa negar que a unidade da Constituição não repugna a identificação de normas de diferentes pesos numa determinada ordem constitucional, é certo que a fixação de rigorosa hierarquia entre diferentes direitos acabaria por desnaturá-los por completo, desfigurando, também, a Constituição como complexo normativo unitário e harmônico.
A Corte Constitucional alemã reconheceu, expressamente, que, “tendo em vista a unidade da Constituição e a defesa da ordem global de valores por ela pretendida, a colisão entre direitos individuais de terceiros e outros valores jurídicos de hierarquia constitucional pode legitimar, em casos excepcionais, a imposição de limitações a direitos individuais não submetidos explicitamente a restrição legal expressa” (BVerfGE, 28, 243, 261).
Ressalte-se, porém, que a solução não se limita a proceder a uma simplificada ponderação entre princípios conflitantes, atribuindo precedência ao de maior hierarquia ou significado. Até porque, como observado, dificilmente se logra estabelecer uma hierarquia precisa entre os diversos direitos fundamentais constitucionalmente contemplados.
Ao revés, no juízo de ponderação indispensável entre os valores em conflito, há de se contemplar as circunstâncias peculiares de cada caso. Disso resulta que a solução desses conflitos há de se fazer mediante a utilização do recurso à concordância prática, de modo que cada um dos valores jurídicos em conflito ganhe realidade.
1. Posse de drogas para consumo próprio: saúde e segurança públicas
Na valoração da importância de determinado interesse coletivo como justificativa de tutela penal há de se exigir a demonstração do dano potencial associado à conduta objeto de incriminação. Em outras palavras, há que se verificar em que medida os riscos a que sujeitos os interesses coletivos podem justificar a conversão destes em objeto de proteção pelo direito penal.
Conforme observa PUIG, o Estado Social não pode desconhecer, [na definição de crimes de perigo abstrato], a significação que, por si mesma, implica a extensão social de um determinado interesse e tampouco há de prescindir da exigência de um mínimo de repercussão do interesse coletivo em relação a cada indivíduo.
Acredita o autor ser essa a via adequada se se pretende evitar a hipertrofia do direito penal (PUIG, Santiago Mir, “Concepto de Bien Jurídico-Penal como Limite del Ius Puniedi”, Estudos de Direito Penal, Processual e Criminologia em Homenagem ao Prof. Dr. Kurt Maldlener, coordenadores Adhemar Ferreira Maciel et alli. Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciário, 2014).
E exemplifica justamente com o direito à saúde pública. Não cabe negar, afirma o autor, que a saúde pública é um interesse coletivo que afeta cada indivíduo, mas há que se exigir um determinado grau de lesividade individual para que se possa justificar a intervenção do direito penal. Até agora não se tem afirmado, por exemplo, que o álcool e o tabaco afetam suficientemente a saúde pública a ponto de legitimar a criminalização de sua venda e consumo.
Em relação ao tabaco, observa que a proteção da ordem pública coletiva tem sido alcançada com o incremento da proibição de seu consumo em lugares públicos, porém por meio de medidas administrativas.
O mesmo raciocínio, ainda segundo PUIG, aplica-se em relação às drogas. Sustenta ser preciso diferençar as drogas quanto a seus distintos efeitos em relação a cada indivíduo. Além disso, há que se ter em conta que a lesividade individual vem, neste caso, acompanhada do consentimento da vítima.
Lembra, ainda, que temos, no exemplo da saúde pública, a advertência de que não basta constatar a importância abstrata do bem, mas também se exige que reste demonstrada a concreta afetação do referido bem. Não basta, assim, que a saúde seja, em abstrato, um bem social fundamental para que mereça proteção penal.
Aduz, por fim, um perigo que encerra a concepção abstrata dos bens jurídicos como merecedores de tutela penal: classificam-se os bens pela classe genérica de interesses, sem atenção aos diferentes graus de implicação. Incluem-se, assim, no bem jurídico “saúde”, por exemplo, desde as mais relevantes até as mais insignificantes manifestações quantitativas. A simples alusão a gêneros tão amplos, pouco serve, dessa forma, à delimitação daquilo passível de proteção por medidas de natureza penal.
Nessa mesma linha, merecem citação as candentes observações de HASSEMER sobre a hipertrofia do direito penal. Discorrendo sobre o Direito Ambiental, com referências a outros direitos de natureza difusa e coletiva em que se verifica o mesmo fenômeno, afirma o autor com inegável acerto (HASSEMER, Winfried, Direito Penal Libertário, trad. Regina Greve. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 226-227), verbis:
“A tarefa da proteção penal ecológica (garantia efetiva e preservação da saúde humana e da vida humana em face de novos e massivos prejuízos do meio ambiente natural) por parte do nosso Direito Penal Ambiental está mais para o fracasso do que para a realização. Esse direito penal carrega a característica da legislação ‘simbólica’: O ganho que dela se pode esperar é menor do que a proteção real dos bens jurídicos (os deficits da execução não são patentes apenas, a partir de hoje, para os peritos e responsáveis), mas, sim, de muito mais a demonstração das prestezas executiva e legislativa e da capacidade de ação. Isso é bom para a ‘aceitação’ política, mas ruim para a proteção do meio ambiente. Alterações penais simbólicas são impressionantes e possuem custos oportunos. Elas desoneram a política ambiental da pressão de buscar e aplicar medidas efetivas, mas caras e decisivas para a universalidade destinadas à garantia e manutenção dos bens jurídicos ameaçados. Quem toma o direito penal não como ‘ultima ratio’, mas como ‘prima ratio’ ou, até mesmo, como ‘sola ratio’, da política interna, torna as coisas muito mais fáceis e desiste, antecipadamente, das busca por medidas de ajuda de natureza mais próxima dos problemas.”
Acrescenta, ainda, que não considera o Direito Ambiental como uma “estratégia específica de uma área”, mas como um caso exemplar da política criminal moderna, que também pode ser observada em outras áreas, como Economia, Entorpecentes e Proteção de Dados.
As ponderações dos autores citados ajustam-se como uma luva ao caso em análise. Afigura-se claro, até aqui, que tanto o conceito de saúde pública, como, pelas mesmas razoes, a noção de segurança pública, apresentam-se despidos de suficiente valoração dos riscos a que sujeitos em decorrência de condutas circunscritas a posse de drogas para uso exclusivamente pessoal.
Diante desse quadro, cabe examinar o grau de interferência nos direitos individuais afetados, de forma a aferir, à luz de alternativas à criminalização, a necessidade da intervenção.
2 Livre desenvolvimento da personalidade e autodeterminação
A criminalização da posse de drogas “para consumo pessoal” afeta o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas diversas manifestações.
Algumas declarações de direito preveem o direito ao desenvolvimento da personalidade de forma expressa. Por exemplo, a Lei Fundamental alemã, em seu artigo 2o, I.
O direito de personalidade em geral, previsto no referido dispositivo, não está limitado a determinados domínios da vida. Tal como acontece com a dignidade da pessoa humana, protege menos o particular em sua atuação do que, pelo contrário, na sua qualidade de sujeito. Aplica-se, dessa forma, não a diferentes domínios da vida, mas a diferentes modos de desenvolvimento do sujeito, como o direito à autodeterminação, à autopreservação e à autoapresentação (Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, org. Leonardo Martins, coletânea original Jürgen Schwabe, trad. Beatriz Hennig, Leonardo Martins, Mariana Bigelli de Carvalho, Tereza Maria de Castro e Vivianne Geraldes Ferreira. Konrad-Adenauer-Stiftung E.V., 2005).
Quanto à autodeterminação, o direito de personalidade em geral garante ao particular determinar, por si próprio, sua identidade. Disso faz parte, entre outras coisas, “o direito de se assegurar da própria identidade e a liberdade de não ser onerado de maneira que afete massivamente a formação e a afirmação da identidade” (Cinquenta Anos, ob. cit, p. 175-176).
Em outros ordenamentos jurídicos, da enunciação de vários aspectos da personalidade protegidos, deduz-se o direito geral da personalidade.
Nossa Constituição consagra a dignidade da pessoa humana e o direito à privacidade, à intimidade, à honra e à imagem. Deles pode-se extrair o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação.
A proteção do indivíduo contra interferências que se estimem indevidas por parte do Estado pode ser atalhada, dessa forma, com a invocação do princípio da liberdade geral, que não tolera restrições à autonomia da vontade que não sejam necessárias para alguma finalidade de raiz constitucional, e mesmo pelo apelo ao princípio da proteção da dignidade da pessoa humana, que pressupõe o reconhecimento de uma margem de autonomia do indivíduo, tão larga quanto possível, no quadro dos diversos valores constitucionais.
É sabido que as drogas causam prejuízos físicos e sociais ao seu consumidor. Ainda assim, dar tratamento criminal ao uso de drogas é medida que ofende, de forma desproporcional, o direito à vida privada e à autodeterminação.
O uso privado de drogas é conduta que coloca em risco a pessoa do usuário. Ainda que o usuário adquira as drogas mediante contato com o traficante, não se pode imputar a ele os malefícios coletivos decorrentes da atividade ilícita.
Esses efeitos estão muito afastados da conduta em si do usuário. A ligação é excessivamente remota para atribuir a ela efeitos criminais. Logo, esse resultado está fora do âmbito de imputação penal. A relevância criminal da posse para consumo pessoal dependeria, assim, da validade da incriminação da autolesão. E a autolesão é criminalmente irrelevante.
São ilustrativos, nesse sentido, os exemplos citados por DANIEL PRADO (Boletim, IBCRIM, outubro/2012, p. 8-9), verbis:
“Mesmo Jeremy Bentham, quase sempre lembrado pela infame arquitetura prisional pan-óptica, modelo de vigilância total muito combatido pelo pensamento crítico, já entendia, em sua ‘Introdução aos princípios da moral e da legislação’, que os atos de prudência, que consistem na promoção da própria felicidade, devem ser deixados à ética privada, cabendo ao legislador, no máximo, leves censuras a comportamentos evidentemente autolesivos.
Isso vale inclusive para aqueles atos com repercussão social direita ou indireta, que continuam excluídos do alcance da intervenção penal, mesmo quando as condutas de terceiros, a eles relacionadas, são incriminadas com severidade. São exemplos desse tratamento a prostituição, em que o ato de se prostituir é atípico, mas comete crime quem a explora, induz ou favorece (art. 228 a 230 do Código Penal); o jogo de azar, em que a exploração e o favorecimento de jogos e loterias não autorizadas são definidos como contravenção penal, mas a ação do apostador está sujeita somente à pena de multa (arts. 50 a 58 da Lei de Contravenções Penais) e o suicídio, em que a tentativa de supressão da própria vida é atípica, mas constituem crime o induzimento, a instigação ou o auxílio à prática (art. 122 do CP).
Quando muito, a conduta potencialmente autolesiva recebe reprimendas não penais compatíveis com a concepção benthamniana. Basta lembrar da condução de veículos automotores sem os devidos equipamentos de segurança pessoal, como o capacete para as motocicletas (art. 244 do Código de Trânsito Brasileiro) e o cinto de segurança para os automóveis (art. 167 do CTB), prevista com infração administrativa, mas excluída do rol dos crimes de trânsito.”
A criminalização da posse de drogas para uso pessoal conduz à ofensa à privacidade e à intimidade do usuário. Está-se a desrespeitar a decisão da pessoa de colocar em risco a própria saúde.
Não chego ao ponto de afirmar que exista um direito a se entorpecer irrestritamente. É perfeitamente válida a imposição de condições e restrições ao uso de determinadas substâncias, não havendo que se falar, portanto, nesse caso, em direito subjetivo irrestrito.
Cabe registrar que, com esse mesmo entendimento, a Corte Constitucional alemã negou, em 1994, no julgamento do caso Cannabis, a existência de semelhante direito (Recht zum Rausch), afirmando, com isso, a viabilidade da criminalização do tráfico de cannabis sativa (BverfGE 90,145, 9.3.1994).
Também explicitou que o art. 2,I, da Lei Fundamental alemã, assegura o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, mas que o uso de drogas, em especial graças à forte repercussão social que tem, não pode estar nele incluído. Não haveria, assim, um direito a “ficar intoxicado” (“Recht auf Rausch”) assegurado pela Lei Fundamental.
O Tribunal considerou, todavia, que casos envolvendo posse, compra ou importação de pequenas quantidades de maconha para uso eventual devem ser desconsiderados pela insignificância de culpa e da proporção do dano causado.
De forma resumida, o §31 da lei alemã sobre narcóticos (“Betäubungsmittelgesetz”) estabelece que a posse de pequenas quantias de drogas pode não ser criminalizada, exceto em caso de interesse público, e autoriza os promotores a encerrar o caso sem consultar o Judiciário.
Ainda que se afirme que a posse de drogas para uso pessoal não integra, em sua plenitude, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, isso não legitima que se lance mão do direito penal para o controle do consumo de drogas, em prejuízo de tantas outras medidas de natureza não penal, como, por exemplo, a proibição de consumo em lugares públicos, a limitação de quantidade compatível com o uso pessoal, a proibição administrativa de certas drogas sob pena de sanções administrativas, entre outras providências não tão drásticas e de questionáveis efeitos como as sanções de natureza penal.
Na Espanha, por exemplo, entre as sanções administrativas previstas na legislação, há multas de até 30 mil euros e/ou a suspensão da carteira de motorista. São medidas, como se percebe, bem mais eficazes na contenção do consumo do que a simples aplicação de medidas penais sem resultados práticos demonstráveis.
Dessa forma, a prevenção do uso indevido de drogas, um dos princípios do sistema nacional de políticas públicas sobre drogas – art. 4o da Lei 11.343/06 – é uma finalidade estatal válida e pode ser alcançada, com maior eficácia, por meio de um vasto leque de medidas administrativas.
Nesse contexto, a criminalização do porte de drogas para uso pessoal afigura-se excessivamente agressiva à privacidade e à intimidade.
Além disso, o dependente de drogas e, eventualmente, até mesmo o usuário não dependente estão em situação de fragilidade, e devem ser destinatários de políticas de atenção à saúde e de reinserção social, como prevê nossa legislação – arts. 18 e seguintes da Lei 11.343/06. Dar tratamento criminal a esse tipo de conduta, além de andar na contramão dos próprios objetivos das políticas públicas sobre o tema, rotula perigosamente o usuário, dificultando sua inserção social.
A situação ainda é mais grave pela prevalência do consumo de drogas entre os jovens, pessoas em fase de desenvolvimento da personalidade e definição de vida e, por isso, especialmente sensíveis à rotulação decorrente do enquadramento criminal.
Da mesma forma, a percepção geral é de que o tratamento criminal aos usuários de drogas alcança, em geral, pessoas em situação de fragilidade econômica, com mais dificuldade em superar as consequências de um processo penal e reorganizar suas vidas depois de qualificados como criminosos por condutas que não vão além de mera lesão pessoal.
Assim, tenho que a criminalização da posse de drogas para uso pessoal é inconstitucional, por atingir, em grau máximo e desnecessariamente, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas várias manifestações, de forma, portanto, claramente desproporcional.