Mercado de capitais

BSM: um tribunal na bolsa de valores

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Capítulo 1

A autorregulação do mercado de capitais brasileiro

Ainda desconhecido, órgão julga corretoras, aplica multas milionárias e é questionado na Justiça

A bolsa de valores de São Paulo (B3) movimentou este ano, em média, R$ 11 bilhões por dia. Investidores de todo o mundo alocam recursos no mercado financeiro brasileiro utilizando seus serviços, com cerca de 340 companhias abertas à disposição de novos negócios.

Paralelamente, um órgão discreto, ligado à própria B3, tem por função garantir que todas essas negociações sejam feitas da maneira mais íntegra possível monitorando o pregão a cada milissegundo, detectando ilícitos contra o mercado de capitais, punindo más condutas com aplicação de inabilitações e multas milionárias e, eventualmente, comunicando eventuais crimes financeiros à polícia e ao Ministério Público.

Esse braço regulatório é a BM&FBovespa Supervisão de Mercados (BSM), estrutura que tem por papel orientar, investigar, denunciar e punir más condutas. Ela é regulada e fiscalizada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia federal reguladora do mercado de capitais.

Criada em 2007, a BSM tem estatuto próprio e é regulada pela Instrução CVM 461, o que gera questionamentos judiciais, sob o argumento de suposta delegação irregular de fiscalização de órgão público para privado. Em pouco mais de 10 anos de existência, porém, o órgão nunca foi derrotado na Justiça.

As principais investigações, que são convertidas em processos sancionadores, são posteriormente julgadas por um colegiado de 11 membros, composto por profissionais de mercado, quase todos com alguma experiência no serviço público.

O comandante é o diretor de Autorregulação, Marcos José Rodrigues Torres, que já foi vice-presidente de Risco da Caixa Econômica, ex-diretor de Auditoria Interna e Riscos Corporativos na BM&FBovespa, além de ter participado da reestruturação do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) no Banco Central.

Pelo regimento, Torres é o 12º membro do colegiado, mas não participa dos julgamentos. Ele atua numa posição semelhante à do Ministério Público, fazendo a acusação.

Por lei, a BSM não pode punir os investidores, uma vez que isso compete exclusivamente à CVM. Sob o escrutínio da BSM ficam as corretoras, seus operadores e diretores, que são os intermediários entre as negociações.

Desde a aquisição da Cetip pela BM&FBovespa, aprovada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em 2017, a BSM passou a fiscalizar também o mercado de balcão, onde basicamente ocorrem negociações financeiras fora do ambiente da bolsa de valores.

Capítulo 2

Estrutura

130 funcionários são responsáveis pela integridade do mercado

A BSM nasceu em outubro de 2007, após a desmutualização das bolsas. Posteriormente, foi regulada pela ICVM 461/07, que disciplina os mercados regulamentados de valores mobiliários e dispõe sobre a constituição, organização, funcionamento e extinção das bolsas de valores, bolsas de mercadorias e futuros e mercados de balcão organizado.

Localizada no mesmo prédio da B3, no centro de São Paulo, o órgão autorregulador do mercado de capitais conta com uma equipe de 130 funcionários, dos quais 75 são auditores. Outros 25 compõem a superintendência jurídica do órgão e o restante é responsável pelo acompanhamento diário do mercado.

A estrutura da BSM conta com seis superintendentes, subordinados a Marcos Torres, que foi indicado ao órgão pelo presidente da B3. Ele tem mandato de três anos.

“Há matemáticos, estatísticos, engenheiros, advogados… Não há exceção, a não ser o departamento jurídico, onde é necessário ter carteira da OAB”, detalhou Torres ao JOTA.

Brinca-se no mercado financeiro, principalmente entre as corretoras, que a BSM tem “poder de polícia”. Isso porque, conta o diretor, o órgão tem amplo acesso a telefonemas, e-mails, conta-corrente e negociações feitas pelos investidores por intermédio das corretoras.

Isso é possível mesmo sem autorização judicial, já que tanto a CVM quanto o estatuto da BSM conferem esse poder ao órgão autorregulador.

Essa documentação permite à BSM alcançar todas as negociações realizadas em bolsa. Mas mesmo em um mundo no qual a tecnologia e a velocidade definem os rumos das negociações financeiras, isso não é feito necessariamente em tempo real.

“Temos uma base de dados eletrônica e duas grandes ferramentas para essa análise”, conta Torres. “Um sistema capaz de reproduzir a cada milissegundo qual a visão de determinado livro [onde ficam registradas as operações] de cinco anos atrás.”

É o aparato tecnológico que permite que a equipe não fique concentrada no tempo real. “Está tudo guardado e consigo reproduzir a história. O filme roda e eu vejo como foi o mercado numa tarde qualquer de cinco anos atrás. A partir disso, aplico filtros e começo a selecionar o que interessa às investigações”, explica o diretor.

Os programas e softwares que estão à disposição da BSM são o grande diferencial do órgão fiscalizatório quando comparado ao regulador.

“A BSM tem orçamento próprio e consegue fazer investimentos em software, tecnologia e em profissionais capacitados com uma flexibilidade maior do que a CVM e, em sua atividade de supervisão, gera e disponibiliza ao regulador uma série de relatórios a respeito de condutas identificadas”, afirma Vinicius Fadanelli, ex-membro do jurídico do autorregulador, atualmente advogado no escritório Souto Correa.

Regulador da BSM

Para Francisco José Bastos Santos, superintendente de Relações com o Mercado e Intermediários (SMI) da CVM, área técnica da autarquia responsável por fiscalizar a BSM, as atividades do regulador e do autorregulador são complementares.

Com isso, a organização da competência de cada um visa evitar a sobreposição de atividades, “promovendo o uso racional dos recursos”.

“A atuação da BSM, bem como a supervisão contínua realizada pela SMI, permitem uma fiscalização ainda mais efetiva da CVM, seja porque a pessoa identificada por determinada irregularidade está fora dos limites de atuação da BSM (investidor), seja porque a atuação da BSM requer uma atuação adicional da própria CVM no caso concreto”, explica o superintendente.

Santos afirma que a adequação do aparato técnico do autorregulador é uma necessidade do estágio de desenvolvimento do mercado de valores mobiliários “em que a inovação e o uso de tecnologia são crescentes”.

Em fevereiro deste ano, os dois órgãos firmaram um convênio sobre a concessão não remunerada de acesso ao software SMARTS Market Surveillance (SMARTS), cedido pela BSM à CVM.

O SMARTS é um sistema eletrônico que tem por função reproduzir, de forma digital, as informações sobre a dinâmica de ofertas. Ele é capaz de identificar indícios de práticas abusivas cometidas por investidores e participantes nos mercados administrados pela B3.

“Além de proporcionar à CVM o aprimoramento de sua atividade como fiscalizadora do mercado de valores mobiliários, irá conferir maior flexibilidade e agilidade à BSM no cumprimento de seu dever de informar à autarquia a ocorrência, ou indícios de ocorrência, de infrações graves às normas relativas ao mercado de capitais”, informou o órgão autorregulador.

Capítulo 3

Tribunal

Processos são julgados em duas instâncias, mas podem ser encerrados por termo de compromisso

Depois de realizada a investigação, cabe a Marcos Torres e sua equipe elaborar um Termo de Acusação ou pedir o arquivamento da apuração.

Somente metade dos processos vai a julgamento, conta o diretor. O restante é encerrado por termo de compromisso.

Com uma estrutura semelhante a colegiados federais e ao próprio Poder Judiciário, o processo é distribuído eletronicamente a um conselheiro relator, estágio em que efetivamente começa o trâmite legal.

Ouvida a defesa, a superintendência-jurídica da BSM dá um parecer e o caso vai a julgamento.

Inicialmente, os processos são apreciados em primeira instância por três conselheiros. Caso haja recurso, o pleno da BSM julga o caso em definitivo, em sessão pública, sendo permitida sustentação oral no dia da análise.

A decisão da BSM é a última no âmbito da autorregulação. Não cabe recurso à Comissão de Valores Mobiliários.

“Julgar processos na BSM é gratificante. A autorregulação tem uma função muito importante para o contínuo aprimoramento dos mercados administrados pela B3, sendo responsável por resguardar um de seus principais ativos, que é a credibilidade desses mercados”, conta Henrique Vergara, membro do conselho julgador do órgão.

Em relatório divulgado na última semana pela CVM, consta que o órgão autorregulador tem 26 processos instaurados no momento. Desses, 26,8% apuram condições artificiais de demanda, manipulação de preço, operação fraudulenta e prática não equitativa. Outros 24,4% tratam de operações em mercados regulamentados.

  • Julgados

  • Nos 10 anos de história, a BSM já proferiu condenações e fechou termos de compromisso milionários.

Em 2015, o Morgan Stanley, Tiago Marques Pessoa, Eduardo José Mendez e Carlos Frederico Sobral Elias, após uma acusação de suposta manipulação de preços por meio de operações de venda e de compra de ações de emissão da OGX Petróleo e Gás Participações S.A, aceitaram firmar termo de compromisso para encerrar o processo que totalizou R$ 5 milhões. É o maior TC já fechado no âmbito da BSM.

Já a maior multa aplicada pela BSM foi à Intra S.A. Corretora de Câmbio e Valores e ao operador Luiz Giuntini Filho, totalizando R$ 1,126 milhão, por atuação irregular de agentes autônomos de investimentos e administrador de carteira e churing (realizar muitas negociações com uma conta para ganhar corretagem).

Marcos Torres frisa, porém, que os casos com valores altos não são, necessariamente, os principais casos julgados pela BSM.

“Nem sempre o principal caso é a maior multa ou maior pena. Para nós, os principais são os processos são os que geram jurisprudência, muda a prática e tem reflexão a partir dele”, diz o diretor.

Uma vez, conta Torres, a BSM foi palestrar em uma instituição financeira sobre novos ilícitos no mercado. Durante a apresentação, o diretor mencionou um caso concreto, sem dizer o nome da instituição nem dos acusados, somente para exemplificar a prática.

“No final, o envolvido chegou a mim e questionou o que a BSM iria fazer. Após ouvir minhas respostas, ele disse: ‘Eu sou uma das pessoas que fiz isso. Quero fazer um termo de compromisso'”, exemplificou Marcos Torres.

Capítulo 4

Ressarcimento de investidores

Mecanismo possibilita retorno de dinheiro perdido por erros das corretoras

Qualquer investidor que se sentir lesado por sua corretora pode pedir ressarcimento à BSM por meio do Mecanismo de Ressarcimento de Prejuízos (MRP), conforme prevê o art. 77 da ICVM 461.

O órgão autorregulador conta com um fundo de R$ 360 milhões, cujo objetivo é cobrir prejuízos decorrentes de ação ou omissão das corretoras.

Na maior parte dos casos, o mecanismo é acionado por investidores que possuíam conta em corretoras que sofreram liquidação extrajudicial. Mas também há outras hipóteses.

“O investidor vem dizendo que não deu a ordem para executar a operação, mas a corretora diz que foi autorizada. Assim, cabe investigarmos para saber quem tem razão”

Marcos Torres, diretor de Autorregulação

De acordo com o diretor, o primeiro passo é ir atrás da gravação para saber se houve a ordem. “Caso constate-se que o investidor autorizou, não há ressarcimento. Caso a corretora não tenha a gravação, o sistema não tenha funcionado, gravou mas não consegue encontrar, aí já é outra história”, fala o responsável pela autorregulação.

Se a BSM concluir que de fato a corretora tomou a decisão sem a anuência ou descumprindo o perfil do cliente, o investidor é indenizado e, posteriormente, a corretora tem que ressarcir o fundo.

Caso o pedido seja julgado improcedente, o investidor pode recorrer da decisão à Comissão de Valores Mobiliários.

Recentemente, por exemplo, a CVM reverteu uma decisão da BSM e determinou que a XP Investimentos ressarça um cliente que perdeu R$ 123.466 após realizar um investimento por recomendação da corretora.

Esse foi o primeiro caso que o regulador mandou uma corretora ressarcir um cliente por descumprimento às regras de suitability (ICVM 539/13).

Mesmo com a reversão, aponta Marcos Torres, há outros casos no órgão autorregulador que foram procedentes aos investidores, sem reversão na autarquia.

“Independentemente da decisão no processo de MRP, as infrações às regras de suitability apuradas neste âmbito ensejam a adoção de medidas de enforcement pela BSM, que já instaurou 16 processos administrativos por infrações relacionadas à suitability, identificadas em processos de MRP, em rotina de supervisão de operações e em auditorias operacionais de avaliação dos procedimentos e controles internos dos participantes”, disse o diretor.

Em 2017, segundo dados da BSM, houve 115 pedidos de ressarcimento de prejuízos: 61 foram arquivados, 37 foram julgados procedentes e nove estão com recurso na CVM. Em três casos, houve acordo entre o investidor e a corretora.

Desde 2008, a BSM já recebeu quase 2 mil pedidos de MRP. Nesse período, quase a metade (940) fora julgado procedente.

Capítulo 5

Questionamentos

Legitimidade do órgão é contestada no Judiciário

“Com base no Direito Administrativo, uma entidade pública não pode delegar a uma privada o poder de punir. Dito isso, a CVM delegou, não poderia, e a BSM não pode fazer o que está fazendo.” A frase crítica é de autoria da advogada Mércia Carmeline, atualmente no escritório Filhorini, Blanco e Carmeline, ex-Banco Espírito Santo.

Questionamentos à legalidade da BSM são frequentes, conta o diretor Marcos Torres.

Henrique Vergara, do conselho julgador, diz que o exercício de um poder sancionador por parte de entidades privadas é uma realidade não só no Brasil, mas em grande parte do mundo desenvolvido.

“A autorregulação se dá em diversos setores da atividade econômica, e a praticada no âmbito das bolsas é apenas uma das experiências dessa natureza. É uma função delegada pelos próprios agentes econômicos, que o fazem em benefício dos interesses da coletividade”, argumenta Vergara, que foi procurador da CVM.

Com previsão legal, segundo ele, a BSM “complementa o trabalho realizado pela CVM, sem substituí-la, não havendo, em minha opinião, uma relação de delegação de poderes”.

Apesar dos questionamentos, a legalidade da BSM vem sendo reconhecida pelo Poder Judiciário. Um exemplo disso é um recente recurso relatado pelo desembargador Grava Brazil, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), em que um condenado pela BSM contestava a cobrança de uma multa e, logo, a legitimidade do órgão.

“A legitimidade da apelada para fiscalizar, julgar processos administrativos e aplicar sanções decorre da Lei 6.385/76 [que criou a CVM], e da Instrução 461/07 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), não ocorrendo violação ao princípio da legalidade”

Desembargador Grava Brazil

O relator se baseou no artigo 17 da lei que criou a CVM. A norma diz que as bolsas terão autonomia administrativa, financeira e patrimonial, operando sob a supervisão da Comissão de Valores Mobiliários.

O magistrado pontuou que o fato de o apelante ter participado ativamente do processo administrativo que deu origem à multa cobrada (PAD nº 68/2012), “exercendo o contraditório e a ampla defesa sob a orientação de escritório de advocacia, e sem lá reclamar em nenhum momento sobre a legitimidade do procedimento ao qual foi submetido, reforça o descabimento da alegação de ilegitimidade ativa neste processo e a validade da cobrança da multa”.

No STF

Apesar de decisões do Judiciário paulista, o ápice do reconhecimento da legalidade da BSM está a quilômetros de São Paulo.

O Supremo Tribunal Federal (STF) chegou a analisar, em 2012, recurso impetrado pela corretora UM Investimentos S.A contra a BM&FBovespa Supervisão de Mercados (BSM).

Segundo a corretora, a BSM e também a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) se negavam a fornecer inteiro teor dos processos administrativos em trâmite nos órgãos, além dos termos da denúncia anônima que deram sustentação à instauração de processos administrativos.

A negativa o acesso a provas, constatada pelo ministro Marco Aurélio Mello, relator do caso na corte, estava em “descompasso com os princípios maiores do Estado de Direito”.

“Esse ponto de partida é inequívoco. A observância plena ao postulado do devido processo legal pressupõe seja conferido aos administrados o direito de conhecer as acusações que pesam sobre si”, escreveu o ministro.

Em sua decisão monocrática, Marco Aurélio Mello deferiu parcialmente a liminar da corretora, determinando acesso das acusações à Um Investimentos e, também, dos termos da denúncia anônima que sustentou a abertura do procedimento administrativo.

O outro questionamento da corretora, sobre a falta de legitimidade da BSM, assim como vem acontecendo na Justiça de São Paulo, não prosperou.

O relator apontou que a “transferência de funções públicas tipicamente regulatórias, inclusive com poderes de polícia, para entidades privadas é um fenômeno que vem sendo verificado cada vez com maior frequência”.

“A autorregulação não é um problema quando se trata de associações particulares em que o ingresso e submissão às regras por ela impostas dependem da aquiescência do participante. Contudo, a questão ganha complexidade se essas normas se destinam a agentes não associados ou a atividades privadas de interesse público relevante, caso do mercado de valores mobiliários”, pontuou o ministro.

Dito isso, o ministro decidiu que “tais delegações se tornam legítimas apenas diante da existência de parâmetros de controle e supervisão pelo Poder Público, bem como de instrumentos eficazes para assegurá-los”.

Capítulo 6

Spoofing e ilícitos tecnológicos

Processos relevantes julgados na CVM são, muitas vezes, iniciados na BSM

Em um dos julgamentos mais aguardados deste ano, o colegiado da CVM condenou José Joaquim Paifer, administrador de carteiras, e a Paifer Management Ltda, na qualidade de investidora, pela prática de spoofing, o que na visão da autarquia se enquadra como manipulação de mercado.

Além do caso já julgado, a CVM ainda apreciará um processo semelhante, dessa vez envolvendo o banco BTG Pactual.

Antes dos processos chegarem à CVM, porém, eles foram concluídos na BSM, órgão que detectou e posteriormente puniu os intermediários.

O spoofing é caracterizado como uma ação na qual o operador de mercado busca atrair contrapartes para a compra ou venda pretendida. Ao mesmo tempo que quer vender um ativo, por exemplo, ele lança uma proposta vultosa de compra do mesmo ativo e ao mesmo tempo. Evidentemente, uma das propostas – de compra ou de venda – é usada apenas para maquiar a operação.

Nos processos administrativos conduzidos pela BSM, o autorregulador entendeu que a prática configura criação de condições artificiais de oferta, demanda e preço, ilícito administrativo descrito no inciso II, “a”, da Instrução CVM 08.

Por outro lado, a área técnica da CVM e o colegiado classificaram a prática como manipulação de preços (inciso II, “b”, da ICVM 08), ou seja, a utilização de processo ou artifício destinado, direta ou indiretamente, a elevar, manter ou baixar a cotação de um valor mobiliário, induzindo terceiro à sua compra e venda.

Na época, argumentou-se que a classificação da CVM poderia, também, colocar a prática de spoofing como crime, já que o art. 27-C da Lei 6385/76 dispõe pena de reclusão (máximo oito anos) para manipulação.

Segundo Marcos Torres, apesar dos órgãos discordarem sobre o enquadramento de spoofing dentro da ICVM 08, ambos os dispositivos podem ser classificados como crime.

“Quando falamos da aplicação da lei penal, parece ser duas faces da mesma moeda. A lei fala de manipulação de mercado, e não de preços. Criação de condição artificial movendo demanda caracterizaria também esse ilícito penal”, argumentou o diretor de autorregulação.

Relação com regulador

Os processos de spoofing demonstram o quanto estão alinhadas as relações entre a BSM e seu fiscalizador, a CVM. Mesmo assim, de acordo com especialistas, a interação pode melhorar.

Para Otavio Yazbek, ex-diretor da CVM e hoje advogado, a autarquia tem procurado prestigiar as atividades de autorregulação, especialmente as de natureza sancionadora, da BSM.

“E, tendo em vista a excelência técnica e a maior capacidade financeira da BSM, muitas vezes a CVM toma, como ponto de partida, trabalhos feitos pelo autorregulador”, fala o advogado.

O problema, segundo ele, “é de que as posições vêm do autorregulador, com as leituras típicas dele, e não são mais discutidas com o mercado”.

“Penso, por exemplo, na experiência recente com casos de spoofing. A BSM desenvolveu um arcabouço conceitual que provavelmente foi, em algum momento, discutido com a CVM. Em que medida ele foi incorporado pela CVM? Quando ela o refletiu em suas normas? Como a autarquia se comunicou com o mercado?”, questiona Yazbek, que defendeu os acusados no processo de acusação de spoofing já julgado pela CVM.

De acordo com ele, hoje a CVM pune “baseada exclusivamente no que a BSM apurou e nas interpretações que a BSM adotava”.

“Acho que essa imbricação entre o autorregulador, inclusive como formador de um novo arcabouço conceitual e fonte, então, de determinadas interpretações, e a CVM é bastante delicada e deve ser pensada com cuidado. Sob pena de se dar à BSM uma posição que vai além daquela que ela deve ter e que tem desempenhado muito bem”, afirmou Yazbek.

Capítulo 7

Desafios

Nova bolsa, moedas virtuais e cooperação com regulador entrarão em pauta no futuro

Independência, interação com o regulador, ativos virtuais, alteração de normas e, principalmente, a eventual chegada de uma nova bolsa. Esses são os grandes desafios para a BSM no futuro na visão de especialistas ouvidos pelo JOTA.

“O grande desafio da BSM será a necessidade de repensar o modelo hoje adotado, em face das possíveis alterações que afetarão a estrutura do mercado brasileiro em um cenário de concorrência entre bolsas locais”, avalia o membro do conselho Henrique Vergara.

Atualmente, com uma única bolsa, o trabalho da autorregulação é, de certa forma, mais simples de fazer. O que aconteceria, porém, caso uma nova instituição chegasse ao mercado brasileiro? O órgão, que pertence e está localizado dentro do prédio da B3, fiscalizaria os mercados de outra bolsa?

Na visão de Marcos Torres, a nova bolsa traz, sim, desafios à BSM e à autorregulação de modo geral. Um cenário com dois órgãos privados fiscalizadores pode funcionar, avalia o diretor. Mas ele lembra que é preciso criar equidade entre as instituição.

“Caso haja duas autorregulações, é preciso coordenar. Se há um nível de autorregulação diferente, pode usar isso para operar no mercado A ou no B, pois um teria mais regras e seria mais rígido do que o outro”, pondera Torres.

A equidade seria a vantagem de unificar o autorregulador, diz o diretor. “Quando vai para unificação, por definição está equalizado. As normas precisam ser equalizadas. Não basta ter um autorregulador, com normas diferentes. Esse único vai supervisar A com base numa regra, enquanto o outro vai olhar B com regras diferentes.”

Torres afirma que é preciso saber quando o novo modelo entrará em regra, se agora ou apenas quando houver um novo entrante.

“Não se pode afastar a função de autorregulação dos mercados organizados, pois aí perde a função. Essa discussão é crucial, sob pena de retrocesso”, preocupa-se o chefe da BSM.

Atualmente, a Comissão de Valores Mobiliários trabalha internamente em um processo de revisão da ICVM 461. Um dos pontos tratados na nova norma será o novo desenho da autorregulação brasileira. Nos bastidores, espera-se que a nova regra vá a audiência pública no segundo semestre deste ano.

O debate de uma nova bolsa no Brasil está paralisado. A disputa entre a ATS e a B3 está arbitrada.

No meio do caminho, porém, a Polícia Federal prendeu o empresário Arthur Machado, presidente da nova bolsa, em uma operação que apura suposto pagamento de propina a fundos de pensão que, em troca, alocariam recursos na empresa.

Por isso, o empresário pode virar réu na Justiça Federal do Rio de Janeiro. Caberá ao juiz Marcelo Bretas receber ou rejeitar denúncia do Ministério Público Federal.

Regulação

Na visão de Francisco José Bastos Santos, superintendente da CVM responsável pela fiscalização da BSM, o órgão vem cumprindo sua missão institucional “adequadamente e com qualidade”.

“O plano anual de trabalho da BSM é objeto de discussão e aprovação pela CVM, bem como seu cumprimento é monitorado por meio de reuniões periódicas entre as equipes técnicas da SMI e da BSM e entre o colegiado”, diz o superintendente.

Adicionalmente, diz, a supervisão da atividade do autorregulador se completa por meio da análise e acompanhamento das decisões da BSM em sede de julgamento dos processos administrativos sancionadores e da apreciação dos recursos interpostos no âmbito do Mecanismo de Ressarcimento de Prejuízos.