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Bayes contra o teste de integridade

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Capítulo 1

Introdução

O homem é o homem e suas circunstâncias”

Ortega Y Gasset


O Teorema de Bayes foi proposto pelo reverendo Thomas Bayes supostamente em uma tentativa de demonstrar a existência de Deus, esforço que pode não ter logrado êxito, mas deixou como legado uma estrutura de raciocínio que gerou a Estatística Bayesiana. Mais de dois séculos depois, resultados pouco intuitivos do raciocínio bayesiano ainda surpreendem e confundem as pessoas.

O chamado teste de integridade, por sua vez, tem uma origem muito mais familiar aos brasileiros que acompanham a Operação Lava Jato, uma vez que é a primeira proposta da campanha “10 Medidas Contra a Corrupção”, capitaneada pelo Ministério Público Federal. A campanha, embalada por maciço apoio popular, transformou-se em projeto de lei e atualmente está em análise na Câmara dos Deputados.

O teste de integridade é exatamente o que parece: um exame para aferir a correção moral e a propensão para a prática de delitos por funcionários públicos, com a consequente punição dos funcionários corruptos detectados pelo teste.

Os defensores da proposta argumentam que ela é uma poderosa ferramenta para a prevenção e a descoberta de crimes praticados por funcionários públicos e que já está sendo usada em muitos países com resultados positivos no combate à corrupção (EUA, Austrália, Reino Unido). Fala-se em transparência, accountability. Fala-se também da recomendação do uso do instrumento pela ONU e pela Transparência Internacional.

Os críticos do teste de integridade argumentam que o mecanismo viola o princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que coloca em xeque, a todo momento, a honestidade dos funcionários públicos. Comparam-no ao odioso flagrante forjado. Apontam que o teste de integridade puniria a intenção e que a sanção dele decorrente pousaria sobre uma ficção.

E assim se desenvolve a discussão pública sobre o assunto: de um lado, os combatentes da corrupção, que são vistos pelos adversários como violadores da Constituição Federal; do outro, os defensores dos direitos fundamentais, que são tidos pelos primeiros como condescendentes com a impunidade.

Capítulo 2

Dois para um

Falhas

Independentemente dos argumentos jurídicos ou morais adotados, o raciocínio bayesiano demonstra que a aplicação de um teste para detectar uma situação que não é muito prevalente em uma população conduz a resultados com uma confiabilidade muito inferior à sugerida pelo senso comum. Tal fenômeno é objeto de estudos como os desenvolvidos pelo psicólogo ganhador do Prêmio Nobel de Economia, Daniel Kahneman, e que apontam para a existência de múltiplos desvios cognitivos ligados à estimativa de eventos estatísticos.

O fato é bem conhecido na medicina, área na qual é aplicado largamente a bem da saúde pública. É fundamental que passe a ser conhecido e aplicado também pelos políticos, juristas e formadores de opinião. Um pouco de raciocínio bayesiano, a par de nos levar para além da retórica, pode revelar uma realidade que, muito mais que incômoda, pode ser intolerável até mesmo para os mais aguerridos defensores da proposta.

A intenção do teste de integridade é clara: revelar (e punir) os agentes públicos que tenham conduta imoral ou propensão à prática de atos ilícitos. Sua natureza não determinística é patente, pois se pretende descortinar um “fato” que, dependendo de uma miríade de variáveis, pode ou não ocorrer, o que significa que seu resultado é, a priori, desconhecido e imprevisível.

Ocorre, todavia, que raramente um teste é perfeito. Como é bem sabido na medicina, mesmo um teste laboratorial sofisticado, concebido para detectar um vírus, por exemplo, pode ter falhas. O teste pode gerar um resultado positivo na ausência do vírus (falso positivo), bem como um resultado negativo quando o vírus está lá (falso negativo).

Deixemos de lado o fato de que a hipótese de que pessoas possam ser divididas em corruptas ou não, exatamente como estando ou não contaminadas por um vírus, é profundamente questionável, para dizer o mínimo.  Aceitemos por um momento que ela seja possível.  Como não há dúvida de que o teste de integridade não é perfeito, ele poderá falhar não detectando um funcionário público corrupto (falso negativo) ou apontando erroneamente como corrupto um funcionário público que não o seja (falso positivo).

Essas falhas podem acontecer por diferentes razões. No falso negativo, o agente corrupto que não é detectado no teste pode perceber que a situação é uma simulação, ou pode estar comprometido com esquemas que o desestimulam a se envolver com a situação simulada. Já o falso positivo pode ocorrer se os responsáveis pelo teste, mesmo involuntariamente, forçarem os limites e interpretarem erroneamente um gesto do agente público como um ato de corrupção. Inúmeros outros exemplos ilustrativos poderiam ser citados, mas nem parece necessário, pois dificilmente alguém discordaria de que o teste de integridade não é 100% perfeito.

Chegamos agora ao ponto relevante da questão.  Digamos que 5% dos funcionários públicos sejam corruptos. Assim, se houvesse no Brasil 100.000 funcionários públicos (o que também se supõe a título meramente ilustrativo), 5.000 deles seriam corruptos e 95.000 não o seriam. Digamos ainda, de modo muitíssimo otimista, que a taxa de falhas do teste de integridade é de meros 10% para o falso positivo e que não há possibilidade de falsos negativos – uma hipótese obviamente idealizada para fins puramente ilustrativos e que se não fosse feita geraria resultados ainda piores do que os que iremos mostrar.

Sob tais hipóteses, se o teste de integridade fosse aplicado a todos os 100.000 funcionários públicos, os 5.000 corruptos seriam detectados (já que não há falsos negativos), mas, como nos mostra Bayes, 9.500 dos 95.000 funcionários públicos não corruptos seriam apontados como se corruptos fossem, já que o teste gera 10% de falsos resultados positivos. Assim, o teste de integridade apontará o total de 14.500 agentes públicos corruptos (5.000 agentes corruptos corretamente detectados somados a 9.500 agentes não corruptos detectados por engano).  Isso significa que 65%, ou, em outras palavras, aproximadamente 2/3 das acusações de corrupção – com todas as suas consequências – decorrentes da aplicação do teste seriam falsas.

Repetindo, por clareza: para cada agente corretamente detectado pelo teste de integridade como corrupto, haveria dois outros falsamente acusados de corrupção.

A sequência de operações algébricas realizada é meramente ilustrativa, mas o resultado final dessas operações é o mesmo fornecido pela aplicação do Teorema de Bayes, valor que não depende do número de pessoas efetivamente testadas, mas apenas da prevalência do evento na população e dos níveis de confiança do teste.

Assim, para os parâmetros fixados (prevalência de 5% de corruptos dentre os funcionários públicos e níveis de confiança do teste de integridade de 90% para resultado positivo e de 100% para o resultado negativo), a probabilidade de o teste de integridade detectar com acerto um funcionário público corrupto é aproximadamente igual a 1/3, ou menor do que uma prosaica aposta de cara ou coroa.

Os números usados para ilustrar o efeito do Teorema de Bayes para o teste de integridade podem ser redefinidos sem que haja mudança qualitativa do fato que é realmente relevante: a confiabilidade do resultado do teste de integridade é muito menor do que aparenta à primeira vista.

Assim, a verdade oculta que é revelada por Bayes é que a probabilidade de um funcionário público honesto ser punido injustamente pela aplicação do teste de integridade é assustadoramente alta. E essa verdade, que fica nas sombras até a luz de Bayes a evidenciar, muda completamente o cenário de avaliação da medida.

Capítulo 3

Consequências podem ser dramáticas

Discutir é preciso

Depois de Bayes fazer o seu trabalho, cabe uma pergunta de natureza moral: mesmo ciente do altíssimo risco de erro intrínseco ao teste de integridade, a sociedade brasileira deve adotar a medida como uma iniciativa razoável, proporcional, justa e condizente com os padrões mínimos de civilização? Se sim, lancemos os dados, apesar de Bayes, mas antes devemos reescrever a máxima de Ortega Y Gasset para algo como “o homem é o homem e as circunstâncias simuladas pelo Estado”.

Essa fragilidade intrínseca do resultado do teste de integridade, depois de revelada com a ajuda do Teorema de Bayes, deve ser incorporada ao debate público, de forma que todos aqueles que ainda permanecerem na defesa da medida assumam publicamente que o elevado risco concreto de punição injusta de um número gigantesco de funcionários públicos é um efeito colateral tolerável no esforço de combate à corrupção.

A análise racional de outras iniciativas legislativas que estão sendo concebidas na esteira da Operação Lava Jato transparece infernos ocultos análogos. A lei e o direito têm enveredado pelos campos da estatística e da probabilidade, o que é em tese muito bom, mas devem seguir o caminho indicado por séculos de estudos e descobertas científicas para não se perderem por veredas desconhecidas e abomináveis.

Parafraseando Einstein, o raciocínio bayesiano é sutil, mas, como Deus, não é malicioso. Ocorre que, mesmo sendo apenas sutil, suas consequências podem ser dramáticas. Não ignoremos Bayes, sob pena de sermos maliciosos.

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