A saída da Secretaria de Administração Penitenciária

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Capítulo 1

O penúltimo capítulo

Fui trabalhar no governo de São Paulo em maio de 1999, atendendo convite do secretário da Segurança Pública, Marco Vinício Petrelluzzi, como assessor de assuntos prisionais. Meu objetivo era divulgar o projeto de Bragança Paulista e tentar celebrar outros convênios com organizações não-governamentais para administração de cadeias públicas. Pretendia permanecer, no máximo, por três anos e pouco, até o final do governo Mário Covas.

Acabei ficando sete anos. Por uma dessas coincidências da vida, em 27 de maio de 1999 o diário oficial publicava minha aposentadoria como magistrado. No mesmo dia 27 de maio, já em 2006, o diário oficial trazia minha exoneração do cargo de secretário de Estado: exatamente sete anos. Alguns dizem que o “7” é o número do mistério, da espiritualidade, da introspecção e da meditação. Tem algo de cabalístico e pode significar o ato da Criação, que culmina no sétimo dia (descanso, conclusão do trabalho, ciclo completo). Podemos lembrar também dos sete pecados capitais, das sete esferas celestes, das sete cores do arco-íris; há também as sete virtudes, os sete planetas visíveis, as sete vidas do gato, as sete notas musicais, os sete orifícios da cabeça, os sete dias do período lunar, os sete anos de azar para quem quebra um espelho. Enfim este é o princípio animístico dos primitivos que está na base da Magia, ensina Márcia Cobero, minha amiga de longa data, hoje professora-doutora em teologia e parapsicologia. Ela não acredita em nada disso. Com razão: crê na vontade, liberdade e inteligência como forças que impulsionam as escolhas na vida.

E foi por um ato de vontade, após profunda meditação, que pedi minha exoneração do cargo. Há algum tempo, pelo menos desde o início de 2006 vinha pensando em sair da secretaria. Não havia mais razão para minha permanência: quase todos os projetos estavam concluídos ou, ao menos, encaminhados. A partir da saída do [simple_tooltip content=’José Geraldo Rodrigues Alckmin foi governador do Estado de São Paulo por duas vezes: a primeira, de 07 de março de 2000 a 31 de dezembro de 2002, quando assumiu o cargo em face da morte do titular, Mario Covas, ocorrida em 06 de março de 2000; a segunda, de 01 de janeiro de 2003 a 30 de março de 2006, data em que deixou o cargo para poder concorrer à Presidência da República.’]Dr. Geraldo[/simple_tooltip] eram previsíveis as dificuldades.

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Um dos meus mais diletos amigos dos últimos anos, o [simple_tooltip content=’Edmar de Oliveira Ciciliati era o Juiz de Direito responsável pela execução penal na comarca de Tupã. Hoje ainda permanece naquela comarca, mas sem ter competência para a execução penal, que está sob responsabilidade de outro magistrado.’]Edmar[/simple_tooltip], não cansava de me aconselhar:

“Da forma como as coisas estão indo, é hora de você cair fora. Já fez demais pelo Estado. Daqui para a frente será só desgaste que pode manchar sua imagem. O PCC (Primeiro Comando da Capital, facção criminosa que nasceu nos presídios paulistas) vai aprontar, e muito, neste ano de eleição —, alertava.

Não só ele, mas outros me davam o mesmo conselho. Havia também outra motivação para sair. Não foram poucos os que me procuravam para que eu me candidatasse a deputado federal ou estadual. Inclusive o presidente do PSDB de São Paulo, deputado Sidney Beraldo, me procurou para falar sobre isso. Dizia que fora incumbido pelo governador a procurar bons nomes para compor a futura bancada do partido na Câmara Federal e na Assembléia Legislativa. Fiquei envaidecido com a sondagem, embora não passasse de sondagem. Porém, a idéia de me meter na política partidária e disputar votos nunca me animou. Poderia, é certo, usar essa motivação para sair com honras e sem problemas. Depois, se não quisesse, simplesmente diria que não consegui recursos para a campanha e ficaria na minha, buscando outros desafios na vida. No entanto, não sou de tomar decisões movido por esse tipo de sentimento. Em outras palavras, estaria apenas procurando preservar minha imagem. Minha consciência não me daria paz nunca mais.

Conversei com meus assessores mais chegados: [simple_tooltip content=’Fabiane Furukawa foi chefe da assessoria técnica de gabinete da Secretaria da Administração Penitenciária. É minha sobrinha, filha de meu irmão mais velho.’]Fabiane[/simple_tooltip], [simple_tooltip content=’Rosangela Sanches foi assessora de imprensa da Pasta, tendo antes exercido idêntica função junto à Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo.’]Rosângela[/simple_tooltip], [simple_tooltip content=’Pedro Armando Egydio de Carvalho foi o responsável pela Ouvidoria da Administração Penitenciária.’]Pedro Egydio[/simple_tooltip] e [simple_tooltip content=’Olinto Neto Bueno é coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo e foi chefe do Departamento de Segurança e Inteligência da SAP.’]Bueno[/simple_tooltip]. Ninguém se animava a apoiar minha saída. E com razão. O PCC estava mostrando suas garras desde o final de 2005: o número de rebeliões crescia assustadoramente e as informações sobre nova megarrebelião eram freqüentes. Antes da eleição, com certeza, algo de muito grave iria acontecer em São Paulo.

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Após dura disputa partidária com José Serra, o governador Geraldo Alckmin no final do mês de março foi escolhido candidato à Presidência da República pelos chamados “cardeais” do PSDB. Eu tinha muita esperança de que o [simple_tooltip content=’Saulo de Castro Abreu Filho é Promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo e foi Secretário da Segurança Pública no período 2002 a 2006.’]Saulo[/simple_tooltip] também saísse para candidatar-se a alguma coisa. Era o que todos diziam. Se isso acontecesse, pretendia propor ao vice-governador Cláudio Lembo a criação de uma Secretaria de Defesa Social, destinada a coordenar as ações da administração penitenciária, segurança pública e da justiça, com ascendência sobre a SAP, SSP e SJ. Saindo Saulo e com esse “super-secretário” certamente as ações integradas entre as pastas ganhariam outra dimensão. O PCC seria finalmente combatido com efetividade, era o que eu esperava.

No entanto, alguns dias antes da data fatal para desincompatibilização, a imprensa começou a noticiar que Saulo permaneceria. Foi como uma ducha de água fria. Procurei o vice-governador para falar da minha preocupação e da inconveniência de permanecer no governo, deixando claras as sérias divergências com o secretário da Segurança Pública. O professor Lembo minimizou o problema. Fez ironias, como costuma fazer, afirmando que essas “briguinhas” seriam resolvidas por ele e que não haveria problema algum. Eu fiquei, na verdade, numa “sinuca de bico”: não podia falar ao governador “ou eu ou ele”, postura que nunca admiti dos meus subordinados. Não podia sair, porque pareceria uma fuga ou traição aos que me cercavam. Seja como Deus quiser, pensei comigo, e permaneci. Enfim, [simple_tooltip content=’Expressão latina que significa “a sorte está lançada”.’]“alea jacta est”[/simple_tooltip].

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No dia 31 de março de 2006 o professor Lembo assumiu o governo de São Paulo. Fez um gesto que me impressionou: ao invés de ser o último a discursar, como manda o figurino, concedeu essa honra ao Dr. Geraldo, que falou por último na solenidade de transmissão do cargo, com o auditório “Ulisses Guimarães”, do Palácio dos Bandeirantes, superlotado. Eram políticos de todos os cantos do Estado.

A primeira reunião do secretariado se deu na manhã do dia seguinte, sábado. Alguns secretários saíram e os novos estavam presentes junto com os que permaneceram. Na mesa enorme do salão de despachos todos se acomodaram nos lugares previamente marcados. Esse salão me desperta um enorme sentimento de saudade. Foi ali que Mario Covas assinou o primeiro convênio com a APAC de Bragança; foi ali que participei das inúmeras reuniões presididas por ele, o grande Mario Covas. Em um dos últimos contatos antes de sua morte, no final de 2000, lembro como se fosse ontem suas palavras para mim e para o [simple_tooltip content=’Mário de Magalhães Papaterra Limongi é Procurador de Justiça e foi secretário adjunto da Segurança Pública do Estado de São Paulo na gestão Marco Petrelluzzi.’]Papaterra[/simple_tooltip]:

—- “Vocês têm consciência de que o sucesso ou insucesso do meu governo está em suas mãos?”, perguntou, com a voz cansada de quem estava gravemente enfermo.

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Cláudio Lembo começou a reunião e apresentou todos os presentes. Indo em sentido anti-horário, da sua direita para a esquerda, foi falando o nome de cada secretário, descrevendo brevemente a respectiva biografia. Elogiou a todos, mas realçou, com justo mérito, o secretário de Recursos Hídricos, Energia e Obras, Mauro Arce. Ao dizer quem ele era, acrescentou: se houvesse mais um Arce neste governo, São Paulo nem precisaria de governador, tal a competência deste homem. Mauro Arce estufou o peito, orgulhosamente. Esse secretário é impressionante na capacidade de trabalho, na competência, na prontidão de atender os colegas; em suma, para fazer o que tem de ser feito, até as últimas conseqüências. Grande secretário. Tenho orgulho de ter sido seu colega.

Depois, o governador deu a palavra a cada um dos secretários, começando, desta feita, da esquerda para a direita. Todos só tinham elogios e ótimas previsões: novas obras, inaugurações, projetos e programas magníficos. Nenhum problema. Quando chegou a minha vez de falar, respirei fundo e disse mais ou menos o seguinte: “Lamento destoar de todos e lamento trazer más notícias. Não quero ser apóstolo da catástrofe, mas a situação na SAP é mais do que grave. É gravíssima. Estamos com 120 mil presos abrigados em 90 mil vagas. Há celas com 12 vagas onde se amontoam 25 presos, 13 dormindo no chão. Até o final do ano teremos certamente mais 5 ou 7 mil. Cortaram 120 milhões de investimentos da pasta e contingenciaram 40 milhões do custeio. Mais ou menos em setembro não haverá recursos para alimentar os presos e nem para abastecer as viaturas. As rebeliões aumentaram assustadoramente e vão aumentar ainda mais. A situação, senhor governador, é catastrófica” — terminei. Silêncio geral.

Ao final da reunião só o secretário [simple_tooltip content=’José Goldemberg foi Reitor da Universidade de São Paulo e Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.’]Goldemberg[/simple_tooltip] me dirigiu a palavra, dizendo que jamais imaginara que a situação fosse tão grave. Os demais até se desviavam de mim. Ninguém, em suma, gosta de saber, muito menos de enfrentar problemas. Além disso, devem ter imaginado: essa situação vai exigir remanejamento de recursos e minha secretaria vai perder.

Na tarde daquele sábado o secretário-chefe da Casa Civil, Rubens Lara, me telefonou, marcando uma audiência com o governador para a segunda-feira. Esclareceu que eu era o primeiro secretário a ser chamado pelo novo chefe.

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A conversa com o Lembo foi amena e agradável. O Saulo não foi chamado, embora sua presença fosse imprescindível. Falei de vários assuntos administrativos e repeti a questão da dificuldade de entendimento com a SSP. Sugeri a criação de uma “super-secretaria”, que poderia ter o nome de Secretaria da Defesa Social. Ele discordou, porque isto iria ferir suscetibilidades, mas concordou em criar um Comitê que otimizasse as ações conjuntas de três pastas [simple_tooltip content=’Secretaria da Segurança Pública, Secretaria da Administração Penitenciária e Secretaria da Justiça.’](SSP, SAP e SJ)[/simple_tooltip]. O Decreto criando esse Comitê, preparado pelo Poyares, secretário-adjunto da Casa Civil, foi publicado alguns dias depois, exatamente com a redação que eu havia sugerido. Falei da necessidade de aumentar o salário dos agentes penitenciários, a exemplo do que fora feito para a polícia. O Governador concordava em tudo o que eu falava e prometia atender meus pedidos, sem restrições.

A coisa está indo melhor do que eu esperava, pensei.

Os dias foram passando e a situação prisional, como era previsto, ficava cada vez pior. Até o final do mês de abril já estávamos com 40 incidentes, [simple_tooltip content=’São qualificados como “motins” e não “rebeliões” aqueles movimentos de presos onde não há danos ao prédio, mas apenas confusão generalizada.’]13 rebeliões e 27 motins[/simple_tooltip]. Os prejuízos eram enormes. Convoquei várias reuniões para avaliação, duas com os diretores gerais. O diagnóstico era unânime: o PCC está em franco movimento político para desestabilizar a candidatura de Alckmin à presidência. Antes das eleições, em data incerta, mas provavelmente em agosto, haverá uma megarrebelião, com conseqüências imprevisíveis, me alertavam. Sobre as medidas a serem tomadas, não havia consenso: alguns defendiam remoção drástica e imediata dos líderes; outros achavam que as  [simple_tooltip content=’Os presos pediam a troca da cor dos uniformes e ampliação do número de visitantes.’]últimas reivindicações dos presos[/simple_tooltip] deviam ser atendidas no que fosse possível, sem violar a soberania do Estado.

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Paralelamente às providências que eram tomadas na SAP, o [simple_tooltip content=’Clayton Alfredo Nunes é Procurador de Estado, foi corregedor, chefe de gabinete e secretário adjunto da SAP, além de Diretor do Departamento Penitenciário Nacional, do Ministério da Justiça.’]Clayton[/simple_tooltip] vinha mantendo freqüentes contatos com a SSP e com o Ministério Público. O objetivo era deixar todas as instituições cientes do que ocorria e das medidas a serem tomadas. Em uma reunião para fechar tema, realizada na SAP, vieram o [simple_tooltip content=’Marco Antonio Desgualdo é Delegado de Polícia de classe especial e foi Delegado Geral de Polícia no período 1999 a 2006.’]Desgualdo[/simple_tooltip], o [simple_tooltip content=’Marcelo Martins de Oliveira é advogado criminalista e foi secretário adjunto da Secretaria da Segurança Pública.’]Marcelo[/simple_tooltip] e o delegado de polícia Oswaldo Arcas, designado a servir de elo entre as duas secretarias.

*     *     *     *

Decidi depois, após ouvir toda a assessoria, que iríamos atender aqueles pedidos dos presos, permitir a troca da cor dos uniformes e também a ampliação das visitas, de dois para quatro (o número máximo de visitantes, por preso, era de dois adultos e passaria para quatro). Caso houvesse, ainda assim, alguma rebelião determinada pelo Partido do Crime, a remoção dos presos seria determinada, sem hesitação.

Na manhã do dia 10 de maio, quarta-feira veio a triste notícia. Na penitenciária de Valparaíso que se rebelara um dia antes, estavam “quebrando tudo”. Típica ação do PCC.

Pedi reunião ao governador para aquele mesmo dia e solicitei que convocasse o pessoal da SSP. Eu e o Clayton fomos para lá. O Cel. Bueno contou-me depois que chorou ao ver nossa saída com destino ao Palácio dos Bandeirantes. Ele sabia, como todos nós sabíamos, da gravidade da decisão que seria tomada, bem como das suas conseqüências.

Tudo o que ocorreu na reunião e a partir da decisão, está narrado em [simple_tooltip content=’“A Crise de Maio”.’]outro capítulo[/simple_tooltip].

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Os dias que se seguiram foram extraordinariamente estressantes. Nunca passei, em toda minha vida, por uma situação como aquela. Na terça-feira pela manhã, dia 16 de maio, quando ainda estava no chuveiro, por volta das 7:30 horas o interfone do meu apartamento não parava de tocar. Saí molhado e fui atender: era o [simple_tooltip content=’Edílson Veneziani é capitão da Polícia Militar de São Paulo e foi o responsável pela Assessoria Militar da SAP.’]capitão Veneziani[/simple_tooltip], que pediu para ligar ao governador.

Lembo me informou que a mensagem do aumento para os agentes penitenciários estava seguindo, exatamente nos termos da minha proposta, para a Assembléia Legislativa. A greve que os agentes anunciavam vai ser estancada, pensei. Eles teriam um aumento linear de 400 reais, quase 35% do salário médio.

Telefonei a todos os coordenadores dando a boa notícia e mandei passar mensagem a todas as unidades, para ser afixada em local visível, com a nova tabela de vencimentos. Estava feliz. Feliz por mim, que não teria de enfrentar uma desgastante greve de servidores no ápice da crise. E feliz pelos funcionários, que teriam um merecido aumento.

Qual não foi minha surpresa quando descobri, alguns dias depois, com o Poyares, que o governador mandara refazer os cálculos, porque “alguém”, reclamara do aumento. Esse “alguém” só podia ser da SSP, porque o projeto já recebera aprovação das secretarias do Planejamento e da Fazenda; passara pela ATL – Assessoria Técnico-Legislativa e estava com o despacho governamental assinado. Liguei imediatamente ao Lembo e reclamei veementemente: “O senhor vai me desmoralizar perante meus funcionários”, disse. Ele prometeu manter o projeto sem alterações.

Após mais alguns dias o Poyares me informou que o governador mantivera sua determinação para refazer os cálculos. A pressão da SSP, ao que tudo indica, venceu a vontade do governador. Meu sentimento foi mais do que de indignação: foi de revolta, de raiva, de ira. Com esse espírito, liguei ao Lembo e disse que as conseqüências de sua decisão seriam imprevisíveis. A greve seria inevitável. Friamente ele respondeu:

“Que entrem (em greve), eu mando a PM assumir os presídios”.

Emudeci e desliguei o telefone. Decidi, naquele momento, que não ficaria mais no Governo de São Paulo. Não era possível trabalhar daquele jeito (não foi esse o único motivo da minha saída, como poderão ver em outros capítulos, mas foi uma das causas determinantes). Era segunda-feira, dia 22 de maio.

*     *     *     *

Daí para frente, até a sexta-feira, dia 26, foram dias difíceis. Tinha que comunicar ao meu pessoal a decisão tomada. Era a parte mais complicada. Convidei os mais próximos para um almoço e ali comuniquei minha decisão. Ficaram todos consternados. Ao retornar para a secretaria, me afastei deles por alguns minutos e fiquei a observar do alto de uma escada, absorvido pelas lembranças, “o tanque das carpas” que restauramos com tanto carinho e onde colocamos as primeiras carpas coloridas que davam especial beleza ao local.

Ao voltar, estavam quase todos com os olhos marejados. O Clayton tentou, mas não conseguiu disfarçar: enxugou com o lenço seu rosto. Foi um momento mágico que ficará para sempre gravado nas minhas retinas, no meu coração e na minha memória.

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Procurei o governador e falei da minha decisão, irrevogável, como é de praxe dizer. Ele se assustou, empalideceu; suas grandes sobrancelhas balançavam. Ponderou que minha saída seria péssima para minha biografia; além disso, quem aceitará um cargo desses? — perguntava.

Olhando firme em seus olhos disse: “professor Lembo, eu não estou no governo para fazer biografia, acho que o senhor não me conhece. [simple_tooltip content=’Não gosto da expressão, porque a mais correta seria “combate”, mas usei essa mesma, pois ali pouco importavam essas sutilezas semânticas.’]Estamos em guerra[/simple_tooltip], nosso general é o senhor. Não se vence uma guerra com dois coronéis, no caso, eu e Saulo, cada um puxando para um lado. Eu saio e o senhor assume o comando”.

Ele pediu alguns dias. Voltei na sexta-feira, dia 26 de maio, e entreguei o pedido de exoneração com apenas algumas linhas. Dizia:

 

EXMO. SR. DR. PROF. CLÁUDIO LEMBO, GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

         NAGASHI FURUKAWA, Secretário da Administração Penitenciária, vem, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência para solicitar, em caráter irrevogável, exoneração do cargo que ocupa, por razões de natureza pessoal.

         Salienta que foi uma honra servir ao Governo Paulista sob a direção de MARIO COVAS, GERALDO ALCKMIN e de Vossa Excelência.

         Nestes termos,

         Pede deferimento.

*     *     *     *

Atendendo sugestão da [simple_tooltip content=’Berenice Maria Gianella é Procuradora de Estado, foi diretora executiva da FUNAP, secretária adjunta da SAP e é a Presidente da Fundação CASA, antiga FEBEM.’]Berenice[/simple_tooltip], que foi por mim ratificada, ele nomeou interinamente o Luiz Carlos Catirse, funcionário de carreira e Coordenador das Unidades Prisionais do Vale do Paraíba e Litoral, com a promessa de que ele permaneceria até o final de seu governo. A notícia da exoneração e da nomeação, embora eu tenha pedido para segurar até o final do dia, foi imediatamente divulgada pela internet.

Ao retornar para a secretaria muitas pessoas, creio que perto de 300, me aguardavam. Contra minha vontade, os coordenadores, diretores, assessores, membros de ONGs e amigos organizaram esse ato para pedir minha permanência. Um dos coordenadores disse que vieram para o “Dia do Fico”.

Fui ao pé da escada do principal acesso ao prédio, peguei o microfone e anunciei que estava exonerado do cargo e que o Catirse seria meu substituto. Ficaram todos perplexos, pois ninguém esperava uma solução nessa linha. Era um velho sonho da categoria que se concretizava: o de ter um servidor de carreira no cargo máximo da pasta, fato que nunca ocorrera antes. Alguns discursaram. Meu amigo [simple_tooltip content=’Márcio Michelan é contador em Bragança Paulista e preside a Associação de Proteção e Assistência Carcerária de Bragança Paulista.’]Márcio[/simple_tooltip], ao tentar falar em nome das ONGs, mal conseguiu. Sua voz ficou embargada e começou a soluçar sem parar. Fui também envolvido pela emoção do ambiente e as lágrimas começaram a escorrer pela face; puxei o lenço e enxuguei os olhos. As câmeras fotográficas espocaram seus flashes e essa imagem estava na primeira página de todos os jornais do dia seguinte.

Comportamento grotesco teve o repórter da Rede Globo, que chegou atrasado e veio me dizer que a Record tinha as imagens das minhas lágrimas e que era inadmissível a Globo não ter. Virei as costas e entrei na minha sala.

No dia seguinte, 27 de maio de 2006, sete anos após minha aposentadoria como juiz, o Diário Oficial publicava minha exoneração.

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Recebi muitas manifestações de solidariedade e de apoio. Vale registrar uma, enviada pela [simple_tooltip content=’Célia Regina da Silva Martins é assistente social e diretora do Centro de Ressocialização de Presidente Prudente.’]Célia[/simple_tooltip]:

“O poder obscuro ascende.

         O luminoso se retira a uma posição segura, de modo a que a escuridão não possa alcançá-lo.

         Esse recuo não é resultante do arbítrio humano, mas das leis que governam a natureza. É por isso que a retirada, nesse caso, é o caminho certo de ação, evitando um esgotamento.

         As circunstâncias são de tal ordem que as forças hostis, favorecidas pelo tempo, avançam. Neste caso a retirada é a atitude correta, levando por isso ao sucesso. O êxito consiste em afastar-se de maneira adequada. Retirar-se não é o mesmo que fugir. Na fuga busca-se apenas salvar a si mesmo, a qualquer preço. A retirada, ao contrário, é sinal de força. Não se deve perder o momento adequado, enquanto ainda se possui força e posição. Assim se poderá interpretar a tempo os sinais do momento e preparar uma retirada provisória e oportuna, em vez de se envolver numa luta entre a vida e a morte” (“O livro das Mutações” – I Ching).

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OBS: Este texto foi escrito em agosto de 2006 e não foi atualizado.