Constitucional

A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria

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Capítulo 1

Sumário

Resumo

Em 2015, o ministro Luís Roberto Barroso escreveu artigo intitulado A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. Tratava-se, na verdade, das duas primeiras partes de um texto que estava sendo desenvolvido. Concluído o texto, ele inspirou a elaboração de um livro, coordenado pelos professores Oscar Vilhena e Rubens Glezer, intitulado A Razão e o Voto: Diálogos Constitucionais com Luís Roberto Barroso. O livro reuniu o primeiro time dos constitucionalistas brasileiros para debater as ideias de Barroso, que fazem dele um ator do constitucionalismo global, participando de discussões nas principais universidades do mundo. Não é um livro de elogios, mas de debate acadêmico de primeira linha, com questionamentos profundos e críticas sofisticadas.

Ao final do livro, Barroso, que gosta de dizer que é professor e está ministro, rebate algumas das críticas. O JOTA publica a íntegra do seu texto, intitulado “A Razão sem Voto: O Supremo Tribunal Federal e o Governo da Maioria”, bem como a resposta às críticas, no posfácio que escreveu.

Resumo

O presente artigo aborda três temas diversos e entrelaçados. No primeiro capítulo, discute o desenvolvimento da teoria constitucional em novas democracias, tomando como exemplo o caso do Brasil, e enfatizando a ascensão política e institucional do Poder Judiciário nas últimas décadas. No segundo capítulo, o texto procura demonstrar o grau elevado de indeterminação do direito contemporâneo e o consequente aumento da discricionariedade judicial, em um mundo complexo e plural. No terceiro e principal capítulo, o autor explora a ideia de que a democracia contemporânea é feita de votos, direitos e razões, procurando identificar os diferentes papeis das cortes supremas neste cenário. Aponta, assim, que, para além do papel contramajoritário tradicionalmente identificado pela teoria constitucional, elas desempenham, também, um papel representativo e, esporadicamente, um papel iluminista. O texto conclui com a defesa do diálogo institucional e da interlocução qualificada com a sociedade como formas superadoras ou, ao menos, atenuadoras da supremacia judicial.

Sumário

I. Introdução

Capítulo I

A evolução da teoria constitucional e a ascensão do Poder Judiciário

I. O direito constitucional na ditadura: entre a teoria crítica e o constitucionalismo chapa branca

II. A construção de um direito constitucional democrático: a busca pela efetividade da Constituição e de suas normas

III. Neoconstitucionalismo, constitucionalização do Direito e a ascensão do Judiciário

Capítulo II

Indeterminação do direito e discricionariedade judicial

I. As transformações do direito contemporâneo

II. Sociedades complexas, diversidade e pluralismo: os limites da lei no mundo contemporâneo

III. Discricionariedade judicial e resposta correta

Capítulo III

O STF e sua função majoritária e representativa

I. O papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal

II. A crise da representação política

III. O papel representativo do Supremo Tribunal Federal

Conclusão

Capítulo 2

Introdução

A história é um carro alegre,

cheio de um povo contente

Que atropela indiferente

Todo aquele que a negue”.

Chico Buarque

Dois professores debatiam acerca do papel do Poder Judiciário e das cortes supremas nas democracias, em uma das mais renomadas universidades do mundo. Ambos eram progressistas e tinham compromissos com o avanço social. O primeiro achava que só o Legislativo poderia consagrar direitos e conquistas. O segundo achava que o Legislativo deveria ter preferência em atuar. Mas se não agisse, a atribuição se transferia para o Judiciário. Eis o diálogo entre ambos:

– Professor 1: “A longo prazo as pessoas, por meio do Poder Legislativo, farão as escolhas certas, assegurando os direitos fundamentais de todos, aí incluídos o direito de uma mulher interromper a gestação que não deseja ou de casais homossexuais poderem expressar livremente o seu amor. É só uma questão de esperar a hora certa”.

– Professor 2: “E, até lá, o que se deve dizer a dois parceiros do mesmo sexo que desejam viver o seu afeto e seu projeto de vida em comum agora? Ou à mulher que deseja interromper uma gestação inviável que lhe causa grande sofrimento? Ou a um pai negro que deseja que seu filho tenha acesso a uma educação que ele nunca pôde ter? Desculpe, a história está um pouco atrasada; volte daqui a uma ou duas gerações?” 1.

O texto que se segue lida, precisamente, com essa dualidade de perspectivas. Nele se explora o tema do papel representativo das cortes supremas, sua função iluminista e as situações em que elas podem, legitimamente, empurrar a história. Para construir o argumento, são analisados os processos históricos que levaram à ascensão do Poder Judiciário no mundo e no Brasil, o fenômeno da indeterminação do direito e da discricionariedade judicial, bem como a extrapolação da função puramente contramajoritária das cortes constitucionais. A conclusão é bastante simples e facilmente demonstrável, apesar de contrariar em alguma medida o conhecimento convencional: em alguns cenários, em razão das múltiplas circunstâncias que paralisam o processo político majoritário, cabe ao Supremo Tribunal Federal assegurar o governo da maioria e a igual dignidade de todos os cidadãos.

A premissa subjacente a esse raciocínio tampouco é difícil de se enunciar: a política majoritária, conduzida por representantes eleitos, é um componente vital para a democracia. Mas a democracia é muito mais do que a mera expressão numérica de uma maior quantidade de votos. Para além desse aspecto puramente formal, ela possui uma dimensão substantiva, que abrange a preservação de valores e direitos fundamentais. A essas duas dimensões – formal e substantiva – soma-se, ainda, uma dimensão deliberativa, feita de debate público, argumentos e persuasão. A democracia contemporânea, portanto, exige votos, direitos e razões. Esse é o tema do presente ensaio.

 

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1 O debate foi na Universidade de Harvard entre o Professor Mark Tushnet e o autor desse texto, realizado em 7 nov. 2011. Intitulado Politics and the Judiciary, encontra-se disponível em vídeo em https://www.youtube.com/watch?v=giC_vOBn-bc. Sobre o tema, v., de autoria de Mark Tushnet, Taking the constitution away from the courts, 1999; e Weak courts, strong rights: judicial review and social welfare rights in comparative constitutional law, 2008. De autoria de Luís Roberto Barroso, v. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo, in O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil, 2012.

Capítulo 3

A evolução da teoria constitucional e a ascensão do Poder Judiciário

I. O direito constitucional na ditadura: entre a teoria crítica e o constitucionalismo chapa branca1

O regime militar se estendeu de 1º de abril de 1964, com o início do golpe que destituiria o Presidente João Goulart do poder, até 15 de março de 1985, quando o General João Baptista Figueiredo saiu pela porta dos fundos do Palácio do Planalto, recusando-se a passar a faixa presidencial a seu sucessor. Foram pouco mais de vinte anos de regime de exceção, com fases de maior ou menor repressão política, que incluíram censura, prisões ilegais, tortura e mortes. Vigoraram no período as Constituições de 1946 e de 1967, assim como a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, considerada uma nova Constituição do ponto de vista material. Simultaneamente à ordem constitucional, já por si autoritária, foram editados diversos atos institucionais, que criavam a legalidade paralela dos governos militares, cujo símbolo maior foi o Ato Institucional nº 5, de 15.12.1968. Com base nele, era facultado ao Presidente, ao lado de outras arbitrariedades, decretar o recesso do Congresso Nacional, cassar mandatos parlamentares, suspender direitos políticos e aposentar compulsoriamente servidores públicos2.

Ao longo desse período, a teoria e o direito constitucional oscilaram entre dois extremos, ambos destituídos de normatividade. De um lado, o pensamento constitucional tradicional, capturado pela ditadura, acomodava-se a uma perspectiva historicista, puramente descritiva das instituições vigentes, incapaz de reagir ao poder autoritário e ao silêncio forçado das ruas3. De outro lado, parte da academia e da juventude haviam migrado para a teoria crítica do direito, um misto de ciência política e sociologismo jurídico, de forte influência marxista4. A teoria crítica enfatizava o caráter ideológico da ordem jurídica, vista como uma superestrutura voltada para a dominação de classe, e denunciava a natureza violenta e ilegítima do poder militar no Brasil. O discurso crítico, como intuitivo, fundava-se em um propósito de desconstrução do sistema vigente, e não considerava o direito um espaço capaz de promover o avanço social. Disso resultou que o mundo jurídico tornou-se um feudo do pensamento conservador ou, no mínimo, tradicional. Porém, a visão crítica foi decisiva para o surgimento de uma geração menos dogmática, mais permeável a outros conhecimentos teóricos e sem os mesmos compromissos com o status quo. A redemocratização e a reconstitucionalização do país, no final da década de 80, impulsionaram uma volta ao direito.

II. A construção de um direito constitucional democrático: a busca pela efetividade da Constituição e de suas normas

Na ante-véspera da convocação da constituinte de 1988, era possível identificar um dos fatores crônicos do fracasso na realização do Estado de direito no país: a falta de seriedade em relação à lei fundamental, a indiferença para com a distância entre o texto e a realidade, entre o ser e o dever-ser previsto na norma. Dois exemplos emblemáticos: a Carta de 1824 estabelecia que “a lei será igual para todos”, dispositivo que conviveu, sem que se assinalassem perplexidade ou constrangimento, com os privilégios da nobreza, o voto censitário e o regime escravocrata. Outro: a Carta de 1969, outorgada pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, assegurava um amplo elenco de liberdades públicas inexistentes e prometia aos trabalhadores um pitoresco conjunto de direitos sociais não desfrutáveis, que incluíam “colônias de férias e clínicas de repouso”5. Além das complexidades e sutilezas inerentes à concretização de qualquer ordem jurídica, havia no país uma patologia persistente, representada pela insinceridade constitucional. A Constituição, nesse contexto, tornava-se uma mistificação, um instrumento de dominação ideológica6, repleta de promessas que não seriam honradas. Nela se buscava, não o caminho, mas o desvio; não a verdade, mas o disfarce7.

A disfunção mais grave do constitucionalismo brasileiro, naquele final de regime militar, encontrava-se na não aquiescência ao sentido mais profundo e conseqüente da lei maior por parte dos estamentos perenemente dominantes, que sempre construíram uma realidade própria de poder, refratária a uma real democratização da sociedade e do Estado. Com a promulgação da Constituição de 1988, teve início a luta teórica e judicial pela conquista de efetividade pelas normas constitucionais8. Os primeiros anos de vigência da Constituição de 1988 envolveram o esforço da teoria constitucional para que o Judiciário assumisse o seu papel e desse concretização efetiva aos princípios, regras e direitos inscritos na Constituição. Pode parecer óbvio hoje, mas o Judiciário, mesmo o Supremo Tribunal Federal, relutava em aceitar esse papel9. No início dos anos 2000, essa disfunção foi sendo progressivamente superada e o STF foi se tornando, verdadeiramente, um intérprete da Constituição. A partir daí, houve demanda por maior sofisticação teórica na interpretação constitucional, superadora da visão tradicional de que se tratava apenas de mais um caso de interpretação jurídica, a ser feita com base nos elementos gramatical, histórico, sistemático e teleológico. Foi o início da superação do positivismo normativista e de sua crença de que a decisão judicial é um ato de escolha política10.

III. Neoconstitucionalismo, constitucionalização do direito e a ascensão do Judiciário

A mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original”.

Albert Enstein

Ao final da Segunda Guerra Mundial, países da Europa continental passaram por um importante redesenho institucional, com repercussões de curto, médio e longo prazo sobre o mundo romano-germânico em geral. O direito constitucional saiu do conflito inteiramente reconfigurado, tanto quanto ao seu objeto (novas constituições foram promulgadas), quanto no tocante ao seu papel (centralidade da Constituição em lugar da lei), como, ainda, com relação aos meios e modos de interpretar e aplicar as suas normas (surgimento da nova hermenêutica constitucional). Ao lado dessas transformações dogmáticas, ocorreu igualmente uma notável mudança institucional, representada pela criação de tribunais constitucionais e uma progressiva ascensão do Poder Judiciário. No lugar do Estado legislativo de direito, que se consolidara no século XIX, surge o Estado constitucional de direito, com todas as suas implicações11. Esse novo modelo tem sido identificado como constitucionalismo do pós-guerra, novo direito constitucional ou neoconstitucionalismo12.

O neoconstitucionalismo identifica uma série de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, nas últimas décadas, que tem (i) como marco filosófico, o pós-positivismo, que será objeto de comentário adiante; (ii) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, após a 2a. Guerra Mundial, e, no caso brasileiro, a redemocratização institucionalizada pela Constituição de 1988; e (iii) como marco teórico, o conjunto de novas percepções e de novas práticas, que incluem o reconhecimento de força normativa à Constituição (inclusive, e sobretudo, aos princípios constitucionais), a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional, envolvendo novas categorias, como os princípios, as colisões de direitos fundamentais, a ponderação e a argumentação. O termo neoconstitucionalismo, portanto, tem um caráter descritivo de uma nova realidade. Mas conserva, também, uma dimensão normativa, isto é, há um endosso a essas transformações. Trata-se, assim, não apenas de uma forma de descrever o direito atual, mas também de desejá-lo. Um direito que deixa a sua zona de conforto tradicional, que é o da conservação de conquistas políticas relevantes, e passa a ter, também, uma função promocional, constituindo-se em instrumento de avanço social. Tão intenso foi o ímpeto das transformações, que tem sido necessário reavivar as virtudes da moderação e da mediania, em busca de equilíbrio entre valores tradicionais e novas concepções13.

A constitucionalização do Direito, por sua vez, está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico. Os valores, fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com sua ordem, unidade e harmonia –, mas também um modo de olhar e interpretar todos os ramos do Direito. A constitucionalização do direito infraconstitucional não tem como sua principal marca a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional14.

Por fim, simultaneamente a esses novos desenvolvimentos teóricos, verificou-se, também, uma vertiginosa ascensão do Poder Judiciário. O fenômeno é universal e também está conectado ao final da Segunda Grande Guerra. A partir daí, o mundo deu-se conta de que a existência de um Poder Judiciário independente e forte é um importante fator de preservação das instituições democráticas e dos direitos fundamentais15. No Brasil, sob a vigência da Constituição de 1988, o Judiciário, paulatinamente, deixou de ser um departamento técnico especializado do governo para se tornar um verdadeiro poder político. Com a redemocratização, aumentou a demanda por justiça na sociedade e, consequentemente, juízes e tribunais foram crescentemente chamados a atuar, gerando uma judicialização ampla das relações sociais no país. Este fato é potencializado pela existência, entre nós, de uma Constituição abrangente, que cuida de uma ampla variedade de temas. No fluxo desses desenvolvimentos teóricos e alterações institucionais, e em parte como consequência deles, houve um importante incremento na subjetividade judicial. A este tema se dedica o próximo capítulo.

 

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1 A expressão “constitucionalismo chapa-branca” foi utilizada por Carlos Ari Sundfeld em outro contexto e com outro sentido, referindo-se ao excesso de proteção dado pela Constituição de 1988 “às posições de poder de corporações e organismos estatais ou paraestatais”. V. Carlos Ari Sundfeld, O fenômeno constitucional e suas três forças, in Cláudio Pereira de Souza Neto, Daniel Sarmento e Gustavo Binenbojm, Vinte anos da Constituição Federal de 1988, 2008, p. 14-15.

2 Para um rico e documentado relato do período militar, indo da deposição de João Goulart ao final do governo de Ernesto Geisel, v. os quatro volumes escritos por Elio Gaspari: A ditadura envergonhada, 2002; A ditadura escancarada, 2002; A ditadura derrotada, 2003; e A ditadura encurralada, 2004. Sobre o processo de redemocratização, v. a obra coletiva Alfred Stepan (org.), Democratizando o Brasil, 1985, com textos de autores que viriam a ter papel relevante após a redemocratização, como Fernando Henrique Cardoso, Edmar Bacha, Pedro Malan e Francisco Weffort.

3 V., e.g., Afonso Arinos de Melo Franco, Curso de direito constitucional, 1968; e Paulino Jacques, Curso de direito constitucional, 1970.

4 V., e.g., Luiz Alberto Warat, A produção crítica do saber jurídico, in Carlos Alberto Plastino (org.), Crítica do direito e do Estado, 1984; Luiz Fernando Coelho, Teoria crítica do direito, 1991 (a 1a ed. é de 1986); e Plauto Faraco de Azevedo, Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica, 1989. V. tb., Michel Miaille, Introdução crítica ao direito, 1989 (a 1 ed. é de 1979).

5 Sobre o tema, v. o trabalho marcante de Celso Antonio Bandeira de Mello, Eficácia das normas constitucionais sobre justiça social, tese apresentada à IX Conferência Nacional da OAB, 1982. Autores precursores no domínio da eficácia das normas constitucionais foram J.H. Meirelles Teixeira, Curso de direito constitucional, 1991 (o texto é o de anotações de aulas do início da década de 60, orgnizado por Maria Garcia); e José Afonso da Silva, Aplicabilidade das normas constitucionais, 1998 (a 1a edição é de 1968).

6 Eros Roberto Grau, A constituinte e a Constituição que teremos, 1985, p. 44.

7 Sobre o tema da falta de efetividade, v. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2009 (a 1a ed. é de 1990).

8 Nessa linha, v. Clemerson Merlin Cleve, A teoria constitucional e o direito alternativo (para uma dogmática constitucional emancipatória), in Uma vida dedicada ao direito: homenagem a Carlos Henrique de Carvalho, 1995.

9 De fato, no início da vigência da Constituição de 1988, o STF – cujos integrantes deviam o seu título de investidura ao regime militar –, empenhou-se em uma interpretação retrospectiva da nova ordem constitucional, fazendo-a ficar tão parecida quanto possível com a anterior. Nessa linha, tornou a figura da medida provisória quase idêntica ao velho decreto-lei; frustrou as potencialidades do mandado de injunção, que só foi ressuscitado na segunda metade dos anos 2000; e criou um conjunto de restrições ao direito de propositura de ações diretas pelas entidades de classe de âmbito nacional e confederações sindicais. Sobre o tema, v. a densa tese de doutorado apresentada à Universidade de Yale por Diego Werneck Arguelhes, Old courts, new beginnings: judicial continuity and constitutional transformation in Argentina and Brazil, mimeografado, 2014, p. 110-128.

10 Sobre o surgimento de uma nova interpretação constitucional, v. Luís Roberto Barroso, Intepretação e aplicação da Constituição, 2014 (a 1a ed. é de 1995).

11 Sobre o tema, v. Luigi Ferrajoli, Pasado y futuro del Estado de derecho. In: Miguel Carbonell (org.), Neoconstitucionalismo(s), 2003.

12 Para duas coletâneas importantes sobre o tema, em língua espanhola, v. Miguel Carbonell, Neoconstitucionalismo(s), 2003, e Teoría del neoconstitucionalismo: ensayos escogidos, 2007. Para uma valiosa coletânea de textos em português, v. Regina Quaresma, Maria Lúcia de Paula Oliveira e Farlei Martins Riccio de Oliveira, Neoconstitucionalismo, 2009. As ideias desenvolvidas nos dois parágrafos seguintes foram sistematizadas, originariamente, em Luís Roberto Barroso, Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito, Revista de Direito Administrativo 240:1, 2005.

13 Para uma tentativa de demarcação dos espaços entre o Poder Legislativo e a deliberação democrática, de um lado, e o Poder Judiciário e a atuação criativa do juiz, de outro, v. Luís Roberto Barroso, Temas de direito constitucional, t. III, p. 308-21. Sobre a contenção da “euforia dos princípios” e do voluntarismo judicial, v. Ana Paula de Barcellos, Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, 2005. Para uma advertência sobre os riscos de “judiciocracia”, “oba-oba constitucional” e “panconstitucionalização”, v. Daniel Sarmento, O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades, in Filosofia e teoria constitucional contemporânea, 2009, p. 132 e s, onde se faz o registro da existência de múltiplas vertentes neoconstitucionalistas. Para uma visão divergente em relação ao tema, v. Jorge Octavio Lavocat Galvão, O neoconstitucionalismo e o fim do Estado de direito?, 2014; Dimitri Dimoulis, Uma visão crítica do neoconstitucionalismo, in George Leite Salomão e Glauco Leite Salomão (coord.), Constituição e efetividade, 2008; e Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Notas sobre o direito constitucional pós-moderno, em particular sobre certo neoconstitucionalismo à brasileira, Revista de Direito Administrativo 250: 151, 2009.

14 Sobre o tema, v. importante coletânea coligida por Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento (coords.), A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas, 2007.

15 Sobre o tema da ascensão do Judiciário, v., na literatura estrangeira, em meio a muitos títulos, C. Neal Tate e Torbjörn Vallinder (eds.), The global expansion of judicial power, 1995, p. 117, e Alec Stone Sweet, Governing with judges: constitutional polítics in Europe, 2000, p. 35-36 e 130. Na literatura nacional, v. o trabalho pioneiro de Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Resende de Carvalho, Manuel Palacios Cunha Melo e Marcelo Baumann Burgos, A judicialização da política e das relações sociais no Brasil, 1999. V. tb., Giselle Cittadino, Judicialização da política, constitucionalismo democrático e separação de Poderes. In: Luiz Werneck Vianna (org.), A democracia e os três Poderes no Brasil, 2002. E, também, Luís Roberto Barroso, Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo, in O novo direito constitucional brasileiro: contribuições para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil, 2012.

Capítulo 4

Indeterminação do direito e discricionariedade judicial

I. As transformações do direito contemporâneo

O constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século XX. Nesse arranjo institucional se condensam duas ideias que percorreram trajetórias diferentes: o constitucionalismo, herdeiro da tradição liberal que remonta ao final do século XVII, expressa a ideia de poder limitado pelo Direito e respeito aos direitos fundamentais. A democracia traduz a ideia de soberania popular, de governo da maioria, que somente se consolida, verdadeiramente, ao longo do século XX. Para arbitrar as tensões que muitas vezes existem entre ambos – entre direitos fundamentais e soberania popular –, a maior parte das democracias contemporâneas instituem tribunais constitucionais ou cortes supremas1. Portanto, o pano de fundo no qual se desenvolve a presente narrativa inclui: (i) uma Constituição que garanta direitos fundamentais, (ii) um regime democrático e (iii) a existência de uma jurisdição constitucional.

O século XX foi cenário da superação de algumas concepções do pensamento jurídico clássico, que haviam se consolidado no final do século XIX. Ideias que eram ligadas ao formalismo, ao positivismo e ao legalismo. Essas transformações chegaram ao Brasil no quarto final do século, sobretudo após a redemocratização. Novos ventos passaram a soprar por aqui, tanto na academia quanto na jurisprudência dos tribunais, especialmente do Supremo Tribunal Federal. Identifico, a seguir, três dessas transformações, que afetaram o modo como se pensa e se pratica o Direito no mundo contemporâneo, em geral, e no Brasil das últimas décadas, em particular:

1. Superação do formalismo jurídico. O pensamento jurídico clássico alimentava duas ficções: a) a de que o Direito, a norma jurídica, era a expressão da razão, de uma justiça imanente; e b) que o Direito se concretizava mediante uma operação lógica e dedutiva, em que o juiz fazia a subsunção dos fatos à norma, meramente pronunciando a consequência jurídica que nela já se continha. Tais premissas metodológicas – na verdade, ideológicas – não resistiram ao tempo. Ao longo do século XX, consolidou-se a convicção de que: a) o Direito é, frequentemente, não a expressão de uma justiça imanente, mas de interesses que se tornam dominantes em um dado momento e lugar; e b) em uma grande quantidade de situações, a solução para os problemas jurídicos não se encontrará pré-pronta no ordenamento jurídico. Ela terá de ser construída argumentativamente pelo intérprete.

2. Advento de uma cultura jurídica pós-positivista. Nesse ambiente em que a solução dos problemas jurídicos não se encontra integralmente na norma jurídica, surge uma cultura jurídica pós-positivista. Se a solução não está toda na norma, é preciso procurá-la em outro lugar. E, assim, supera-se a separação profunda que o positivismo jurídico havia imposto entre o Direito e a Moral, entre o Direito e outros domínios do conhecimento. Para construir a solução que não está pronta na norma, o Direito precisa se aproximar da filosofia moral – em busca da justiça e de outros valores –, da filosofia política – em busca de legitimidade democrática e da realização de fins públicos que promovam o bem comum e, de certa forma, também das ciências sociais aplicadas, como a economia e a psicologia.

A doutrina pós-positivista se inspira na revalorização da razão prática2, na teoria da justiça3 e na legitimação democrática. Nesse contexto, busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral da Constituição e das leis, mas sem recorrer a categorias metafísicas. No conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo nesse paradigma em construção, incluem-se a reentronização dos valores na interpretação jurídica, com o reconhecimento de normatividade aos princípios e de sua diferença qualitativa em relação às regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre a dignidade da pessoa humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a ética.4

3. Ascensão do direito público e centralidade da Constituição. Por fim, o século XX assiste a ascensão do direito público5. A teoria jurídica do século XIX havia sido construída predominantemente sobre as categorias do direito privado. O Século, que começara com o Código Civil francês, o Código Napoleão, de 1804, termina com a promulgação do Código Civil alemão, de 1900. Os protagonistas do Direito eram o contratante e o proprietário. Ao longo do século XX assiste-se a uma progressiva publicização do Direito, com a proliferação de normas de ordem pública. Não apenas em matéria de direito família, como era tradicional, mas em áreas tipicamente privadas como o contrato – com a proteção do polo mais fraco das relações jurídicas, como o trabalhador, o locatário, o consumidor – e a propriedade, com a previsão de sua função social6.

Ao final do século XX, essa publicização do Direito resulta na centralidade da Constituição. Toda interpretação jurídica deve ser feita à luz da Constituição, dos seus valores e dos seus princípios. Toda interpretação jurídica é, direta ou indiretamente, interpretação constitucional. Interpreta-se a Constituição diretamente quando uma pretensão se baseia no texto constitucional (uma imunidade tributária, a preservação do direito de privacidade); e interpreta-se a Constituição indiretamente quando se aplica o direito ordinário, porque antes de aplicá-lo é preciso verificar sua compatibilidade com a Constituição e, ademais, o sentido e o alcance das normas infraconstitucionais devem ser fixados à luz da Constituição.

II. Sociedades complexas, diversidade e pluralismo: os limites da lei no mundo contemporâneo

A sociedade contemporânea tem a marca da complexidade. Fenômenos positivos e negativos se entrelaçam, produzindo uma globalização a um tempo do bem e do mal. De um lado, há a rede mundial de computadores, o aumento do comércio internacional e o maior acesso aos meios de transporte intercontinentais, potencializando as relações entre pessoas, empresas e países. De outro, mazelas como o tráfico de drogas e de armas, o terrorismo e a multiplicação de conflitos internos e regionais, consumindo vidas, sonhos e projetos de um mundo melhor. Uma era desencantada, em que a civilização do desperdício, do imediatismo e da superficialidade convive com outra, feita de bolsões de pobreza, fome e violência. Paradoxalmente, houve avanço da democracia e dos direitos humanos em muitas partes do globo, com redução da mortalidade infantil e aumento significativo da expectativa de vida. Um mundo fragmentado e heterogêneo, com dificuldade de compartilhar valores unificadores. Os próprios organismos internacionais multilaterais, surgidos após a Segunda Guerra Mundial, já não conseguem produzir consensos relevantes e impedir conflitos que proliferam pelas causas mais diversas, do expansionismo ao sectarismo religioso.

No plano doméstico, os países procuram administrar, da forma possível, a diversidade que caracteriza a sociedade contemporânea, marcada pela multiplicidade cultural, étnica e religiosa. O respeito e a valorização das diferenças encontram-se no topo da agenda dos Estados democráticos e pluralistas. Buscam-se arranjos institucionais e regimes jurídicos que permitam a convivência harmoniosa entre diferentes, fomentando a tolerância e regras que permitam que cada um viva, de maneira não excludente, as suas próprias convicções. Ainda assim, não são poucas as questões suscetíveis de gerar conflitos entre visões de mundo antagônicas. No plano internacional, elas vão de mutilações sexuais à imposição de religiões oficiais e conversões forçadas. No plano doméstico, em numerosos países, as controvérsias incluem o casamento de pessoas do mesmo sexo, a interrupção da gestação e o ensino religioso em escolas públicas. Quase tudo transmitido ao vivo, em tempo real. A vida transformada em reality show.

Sem surpresa, as relações institucionais, sociais e interpessoais enredam-se nos desvãos dessa sociedade complexa e plural, sem certezas plenas, verdades seguras ou consensos apaziguadores. E, num mundo em que tudo se judicializa mais cedo ou mais tarde, tribunais e cortes constitucionais defrontam-se com situações para as quais não há respostas fáceis ou eticamente simples. Alguns exemplos:

a) pode um casal surdo-mudo utilizar a engenharia genética para gerar um filho surdo-mudo e, assim, habitar o mesmo universo existencial que os pais?

b) uma pessoa que se encontrava no primeiro lugar da fila, submeteu-se a um transplante de fígado. Quando surgiu um novo fígado, destinado ao paciente seguinte, o paciente que se submetera ao transplante anterior sofreu uma rejeição e reivindicava o novo fígado. Quem deveria recebê-lo?

c) pode um adepto da religião Testemunha de Jeová recusar terminantemente uma transfusão de sangue, mesmo que indispensável para salvar-lhe a vida, por ser tal procedimento contrário à sua convicção religiosa?

d) pode uma mulher pretender engravidar do marido que já morreu, mas deixou o seu sêmen em um banco de esperma?

e) pode uma pessoa, nascida fisiologicamente homem, mas considerando-se uma transsexual feminina, celebrar um casamento entre pessoas do mesmo sexo com outra mulher?

Nenhuma dessas questões é teórica. Todas elas correspondem a casos concretos ocorridos no Brasil e no exterior, e levados aos tribunais. Nenhuma delas tinha uma resposta pré-pronta e segura que pudesse ser colhida na legislação. A razão é simples: nem o constituinte nem o legislador são capazes de prever todas as situações da vida, formulando respostas claras e objetivas. Além do que, na moderna interpretação jurídica, a norma já não corresponde apenas ao enunciado abstrato do texto, mas é produto da interação entre texto e realidade. Daí a crescente promulgação de constituições compromissórias, com princípios que tutelam interesses contrapostos, bem como o recurso a normas de textura aberta, cujo sentido concreto somente poderá ser estabelecido em interação com os fatos subjacentes. Vale dizer: por decisão do constituinte ou do legislador, muitas questões têm a sua decisão final transferida ao juízo valorativo do julgador. Como consequência inevitável, tornou-se menos definida a fronteira entre legislação e jurisdição, entre política e direito7.

As hipóteses referidas acima constituem casos difíceis8, isto é, casos para os quais não existem respostas pré-prontas à disposição do intérprete. A solução, portanto, terá de ser construída logica e argumentativamente pelo juiz, à luz dos elementos do caso concreto, dos parâmetros fixados na norma, dos precedentes e de aspectos externos ao ordenamento jurídico. Daí se fazer referência a essa atuação, por vezes, como sendo criação judicial do direito. Em rigor, porém, o que o juiz faz, de verdade, é colher no sistema jurídico o fundamento normativo que servirá de fio condutor do seu argumento. Toda decisão judicial precisa ser reconduzida a uma norma jurídica. Trata-se de um trabalho de construção de sentido, e não de invenção de um Direito novo. Casos difíceis podem resultar da vagueza da linguagem (dignidade humana, moralidade administrativa), de desacordos morais razoáveis (existência ou não de um direito à morte digna, sem prolongamentos artificiais) e colisões de normas constitucionais (livre iniciativa versus proteção do consumidor, liberdade de expressão versus direito de privacidade). Para lidar com uma sociedade complexa e plural, em cujo âmbito surgem casos difíceis, é que se criaram ou se refinaram diversas categorias jurídicas novas, como a normatividade dos princípios, a colisão de normas constitucionais, o uso da técnica da ponderação e a reabilitação da argumentação jurídica.

Não é o caso de voltar a explorar o tema, já objeto de outros estudos meus9. Faz-se apenas breve menção às situações de colisão entre princípios constitucionais ou de direitos fundamentais. Para lidar com elas, boa parte dos tribunais constitucionais do mundo se utiliza da técnica da ponderação10, que envolve a valoração de elementos do caso concreto com vistas à produção da solução que melhor realiza a vontade constitucional naquela situação. As diversas soluções possíveis vão disputar a escolha pelo intérprete. Como a solução não está pré-pronta na norma, a decisão judicial não se sustentará mais na fórmula tradicional da separação de Poderes, em que o juiz se limita a aplicar, ao litígio em exame, a solução que já se encontrava inscrita na norma, elaborada pelo constituinte ou pelo legislador. Como este juiz se tornou co-participante da criação do Direito, a legitimação da sua decisão passará para a argumentação jurídica, para sua capacidade de demonstrar a racionalidade, a justiça e a adequação constitucional da solução que construiu. Surge aqui o conceito interessante de auditório11. A legitimidade da decisão vai depender da capacidade do intérprete convencer o auditório a que se dirige de que aquela é a solução correta e justa12. O tema apresenta grande fascínio, mas não será possível fazer o desvio aqui.

III. Discricionariedade judicial e resposta correta

Creia nos que procuram a verdade. Duvide dos que a encontram”.

Andre Gide

Em relação a inúmeras questões, como ficou assentado, a solução dos problemas não se encontra pré-pronta no sistema jurídico. Ela precisará ser construída argumentativamente pelo juiz, a quem caberá formular juízos de valor e optar por uma das soluções comportadas pelo ordenamento. Não é incomum referir-se a essa maior participação subjetiva do juiz como discricionariedade judicial13. Não haverá maior problema na utilização da expressão, desde que seu sentido seja previamente convencionado. Discricionariedade judicial é um conceito que se desenvolve em um novo ambiente de interpretação jurídica, no qual se deu a superação da crença em um juiz que realizaria apenas subsunções mecânicas dos fatos às normas, lenda cultivada pelo pensamento jurídico clássico14. O juiz contemporâneo, sobretudo o juiz constitucional, não se ajusta a esse papel, para desalento de muitos. Mas de nada adianta quebrar o espelho por não gostar da imagem.

O fato inafastável é que a interpretação jurídica, nos dias atuais, reserva para o juiz um papel muito mais proativo, que inclui a atribuição de sentido a princípios abstratos e conceitos jurídicos indeterminados, bem como a realização de ponderações. Para além de uma função puramente técnica de conhecimento, o intérprete judicial integra o ordenamento jurídico com sua próprias valorações, sempre acompanhadas do dever de justificação. Discricionariedade judicial, portanto, traduz o reconhecimento de que o juiz não é apenas a boca da lei, um mero exegeta que realiza operações formais. Existe uma dimensão subjetiva na sua atuação. Não a subjetividade da vontade política própria – que fique bem claro –, mas a que inequivocamente decorre da compreensão dos institutos jurídicos, da captação do sentimento social e do espírito de sua época.

Discricionariedade, porém, é um conceito tradicional do direito administrativo, no qual está embutido o juízo de conveniência e oportunidade a ser feito pelo agente público15. Nessa acepção, discricionariedade significa liberdade de escolha entre diferentes possibilidades legítimas de atuação, uma opção entre “indiferentes jurídicos”16. Ora bem: nesse sentido, inexiste discricionariedade judicial. O juiz não faz escolhas livres nem suas decisões são estritamente políticas. Esta é uma das distinções mais cruciais entre o positivismo e o não-positivismo. Para Kelsen, principal referência do positivismo normativista romano-germânico, o ordenamento jurídico forneceria, em muitos casos, apenas uma moldura, um conjunto de possibilidades decisórias legítimas. A escolha de uma dessas possibilidades, continua ele, seria um ato político, isto é, plenamente discricionário17. A concepção não-positivista aqui sustentada afasta-se desse ponto de vista. Com efeito, o Direito é informado por uma pretensão de correção moral18, pela busca de justiça, da solução constitucionalmente adequada. Essa ideia de justiça, em sentido amplo, é delimitada por coordenadas específicas, que incluem a justiça do caso concreto, a segurança jurídica19 e a dignidade humana20. Vale dizer: juízes não fazem escolhas livres, pois são pautados por esses valores, todos eles com lastro constitucional.

Surge aqui uma questão interessante e complexa. Ronald Dworkin, no seu estilo ousado e provocativo, sustentou, em diferentes textos, a tese da existência de uma única resposta correta, mesmo nos casos difíceis, isto é, em questões complexas de direito e moralidade política21. Trata-se de uma construção que se situa no âmbito de sua crítica geral ao positivismo jurídico e ao uso que dois dos seus maiores expoentes – Kelsen e Hart – deram à discricionariedade judicial. A tese sempre foi extremamente controvertida, tendo produzido um rico debate pelo mundo afora, com repercussões no Brasil22. Não tenho a pretensão de reeditá-lo, embora creia que a minha visão do tema ofereça uma solução na qual não há vencedores nem vencidos. A discussão em torno da existência de uma única resposta correta remete à imemorial questão acerca da verdade, sua existência em toda e qualquer situação e os métodos para revelá-la. Se existe uma única resposta correta – e não diferentes pretensões de resposta correta –, é porque existiria, então, uma verdade ao alcance do intérprete. Mas quem tem o poder de validar a verdade proclamada pelo intérprete? Se houver uma força externa ao intérprete, com o poder de chancelar a verdade proclamada, será inevitável reconhecer que ela é filha da autoridade. Portanto, a questão deixa de ser acerca da efetiva existência de uma verdade ou de uma única resposta correta, e passa a ser a de quem tem autoridade para proclamá-la. Cuida-se de saber, em última análise, quem é o dono da verdade23.

Dois exemplos, um literário e outro real, exibem as dificuldades na matéria. O primeiro. Dois amigos estão sentados em um bar no Alaska, tomando uma cerveja. Começam, como previsível, conversando sobre mulheres. Depois falam de esportes diversos. E na medida em que a cerveja acumulava, passam a falar sobre religião. Um deles é ateu. O outro é um homem religioso. Passam a discutir sobre a existência de Deus. O ateu fala: “Não é que eu nunca tenha tentado acreditar, não. Eu tentei. Ainda recentemente. Eu havia me perdido em uma tempestade de neve em um lugar ermo, comecei a congelar, percebi que ia morrer ali. Aí, me ajoelhei no chão e disse, bem alto: Deus, se você existe, me tire dessa situação, salve a minha vida”. Diante de tal depoimento, o religioso disse: “Bom, mas você foi salvo, você está aqui, deveria ter passado a acreditar”. E o ateu responde: “Nada disso! Deus não deu nem sinal. A sorte que eu tive é que vinha passando um casal de esquimós. Eles me resgataram, me aqueceram e me mostraram o caminho de volta. É a eles que eu devo a minha vida”.24 Note-se que não há aqui qualquer dúvida quanto aos fatos, apenas sobre como interpretá-los.

O segundo exemplo envolve uma questão de largo alcance político e moral, relacionado à chamada justiça de transição. Há uma recorrente discussão acerca do tratamento a ser dado aos crimes que foram praticados por agentes do Estado durante o regime militar no Brasil, aí incluídos homicídios, tortura e sequestros. Como se sabe, a Lei de Anistia, de 1979, tornou impossível a responsabilização de todos quantos houvessem cometido crimes políticos ou conexos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Decisão do Supremo Tribunal Federal, tomada por 7 votos a 2, considerou válida essa lei, em julgamento realizado em 28 de abril de 201025. Posteriormente, em dezembro de 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao julgar um caso envolvendo desaparecidos na guerrilha do Araguaia, considerou que a lei brasileira de anistia era incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos, por impedir a apuração de graves violações de direitos humanos, a responsabilização dos culpados e a reparação às vítimas26. No debate público, há duas posições contrapostas em relação a essa matéria, que podem ser assim enunciadas:

A. a lei de anistia foi uma decisão política legítima, tomada pelos lados contrapostos para conduzirem uma transição pacífica para a democracia27;

B. a lei de anistia foi uma inaceitável imposição dos que detinham a força, para imunizarem-se dos crimes que haviam cometido28.

Nos dois exemplos, tanto no fictício como no real, pessoas esclarecidas e bem intencionadas podem tomar partido por um lado ou outro29. Qual a resposta correta? Onde está a verdade? O fato inegável é que mesmo quem se oponha ao relativismo moral e reconheça a existência de um núcleo essencial do bem, do correto e do justo, há de admitir que nem sempre a verdade se apresenta objetivamente clara, capaz de iluminar a todos indistintamente. Dependendo de onde se encontre o intérprete, do seu ponto de observação, será noite ou será dia, haverá sol ou haverá sombra. É preciso conjurar o risco do stalinismo jurídico, em que algum “farol dos povos” de ocasião venha a ser o portador da verdade revelada, com direito a promover o expurgo dos que pensam diferentemente.

Dito isso, porém, um intérprete judicial jamais poderá chegar ao final do exame de uma questão e afirmar que não há uma solução própria para ela. Vale dizer: não pode dizer que há empate, que tanto faz um resultado ou outro, ou que o caso pode ser decidido por cara e coroa. Assim, embora não se possa falar, em certos casos difíceis, em uma resposta objetivamente correta – única e universalmente aceita –, existe, por certo, uma resposta subjetivamente correta. Isso significa que, para um dado intérprete, existe uma única solução correta, justa e constitucionalmente adequada a ser perseguida. E esse intérprete tem deveres de integridade30 – ele não pode ignorar o sistema jurídico, os conceitos aplicáveis e os precedentes na matéria – e tem deveres de coerência, no sentido de que não pode ignorar as suas próprias decisões anteriores, bem como as premissas que estabeleceu em casos precedentes. Um juiz não é livre para escolher de acordo com seu estado de espírito, suas simpatias ou suas opções estratégicas na vida. Um juiz de verdade, sobretudo um juiz constitucional, tem deveres de integridade e de coerência.

 

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1 Este tema da tensão entre constitucionalismo e democracia é recorrente na teoria constitucional. Para uma valiosa reflexão sobre ele, v. Frank I. Michelman, Brennan and democracy, 1999.

2 O termo ficou indissociavelmente ligado à obra de Kant, notadamente à Fundamentação da metafísica dos costumes, de 1785 e à Crítica da razão prática, de 1788. De forma sumária e simplificadora, a razão prática cuida da fundamentação racional – mas não matemática – de princípios de moralidade e justiça, opondo-se à razão cientificista, que enxerga nesse discurso a mera formulação de opiniões pessoais insuscetíveis de controle. De forma um pouco mais analítica: trata-se de um uso da razão voltado para o estabelecimento de padrões racionais para a ação humana. A razão prática é concebida em contraste com a razão teórica. Um uso teórico da razão se caracteriza pelo conhecimento de objetos, não pela criação de normas. O positivismo só acreditava na possibilidade da razão teórica. Por isso, as teorias positivistas do direito entendiam ser papel da ciência do direito apenas descrever o direito tal qual posto pelo Estado, não justificar normas, operação que não seria passível de racionalização metodológica. É por isso que, por exemplo, para Kelsen, não caberia à ciência do direito dizer qual a melhor interpretação dentre as que são facultadas por determinado texto normativo. Tal atividade exibiria natureza eminentemente política, e sempre demandaria uma escolha não passível de justificação em termos racionais. O pós-positivismo, ao reabilitar o uso prático da razão na metodologia jurídica, propõe justamente a possibilidade de se definir racionalmente a norma do caso concreto através de artifícios racionais construtivos, que não se limitam à mera atividade de conhecer textos normativos.

3 Como assinalado por Ricardo Lobo Torres na nota seguinte, o livro de John Rawls, A theory of justice, de 1971, foi emblemático para a filosofia política e para a ética, ao tratar do tema da justiça distributiva dentro do marco teórico do contrato social.

4 V. Ricardo Lobo Torres, Tratado de direito constitucional, financeiro e tributário: valores e princípios constitucionais tributários, 2005, p. 41: “De uns trinta anos para cá assiste-se ao retorno aos valores como caminho para a superação dos positivismos. A partir do que se convencionou chamar de ‘virada kantiana’ (kantische Wende), isto é, a volta à influência da filosofia de Kant, deu-se a reaproximação entre ética e direito, com a fundamentação moral dos direitos humanos e com a busca da justiça fundada no imperativo categórico. O livro A Theory of Justice de John Rawls, publicado em 1971, constitui a certidão do renascimento dessas idéias”.

5 Sobre o tema, v. a valiosa tese de doutorado apresentada à Universidade de Harvard por Gonçalo de Almeida Ribeiro, The decline of private law: a philosofophic history of liberal legalism, mimeografado, 2012.

6 Sobre a constitucionalização do direito civil, vejam-se, por todos, Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil, 1997; Maria Celina Bodin de Moraes, Perspectivas a partir do direito civil-constitucional, in Pastora do Socorro Teixeira Leal (coord.), Direito civil constitucional e outros etudos em homenagem ao Prof. Zeno Veloso, 2014; e Gustavo Tepedino, Temas de direito civil, 2004.

7 Sobre o ponto, v. Celso Fernandes Campilongo, Política, sistema jurídico e decisão judicial, 2001, p. 48: “Se, nos chamados “casos difíceis”, o juiz é obrigado a fazer escolhas politicas – muitas vezes por delegação do próprio legislador –, essa criatividade é exercida nos limites da legitimidade legal-racional. O legislador pode rever a delegação ou fixar a opção política. Entretanto, até que isso acontença, a determinação de uma linha política por parte do juiz – desde que em conformidade com os valores fundamentais positivados pelo ordenamento – não significa, necessariamente, um comportamento antidemocrático, contrário à divisão de poderes ou ofensivo ao Estado de Direito”.

8 Sobre a ideia de casos difíceis, v., entre muitos, Ronald Dworkin, Hard cases, Harvard Law Review 88:1057, 1995; e Aharon Barak, The judge in a democracy, 2006, p. xiii e s.

9 V. Luís Roberto Barroso, Curso de direito constitucional contemporâneo, 2013, cap. IV (“Novos paradigmas e categorias da interpretação constitucional”), p. 330.

10 Para um estudo relativamente recente e abrangente sobre a ponderação e, particularmente sobre a ideia de proporcionalidade, v. Aharon Barak, Proportionality: constitutional rights and their limitations, 2012. Para uma visão crítica do tema, em uma visão comparativa entre Alemanha e Brasil, v. Juliano Zaiden Benvindo, On the limits of constitutional adjudication, 2010.

11 V. Chaim Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado da argumentação: a nova retórica, 1996, p. 22: “É por essa razão que, em matéria de retórica, parece preferível definir o auditório como o conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua argumentação. Cada orador pensa, de uma forma mais ou menos consciente, naqueles que procuram persuadir e que constituem o auditório ao qual se dirigem seus discursos”.

12 Tribunais, em geral, e cortes constitucionais, em particular, precisam ser capazes de convencer os demais atores políticos, nos outros Poderes e na sociedade, do acerto de seus pronunciamentos. V. Mark C. Miller, The view of the courts from the hill: interactions between Congress and the Federal Judiciary, 2009, p. 7.

13 Um dos primieros estudos abrangentes e sistemáticos nessa matéria foi do ex-Presidente da Suprema Corte de Israel Aharon Barak, Judicial discretion, 1989.

14 O conjunto de ideias que ficou conhecido como Pensamento Jurídico Clássico, como descrito por Duncan Kennedy em uma obra magnífica, teve diferentes protagonistas ao longo do tempo e produziu um “método transnacional”. De acordo com ele, o Pensamento Jurídico Clássico enxergava o direito como um sistema e tinha como características principais a distinção entre direito público e privado, individualismo e um compromisso com a lógica formal, com o abuso da dedução como método jurídico. V. Duncan Kennedy, Three Globalizations of Law and Legal Thought: 1850-2000. In: David Trubek & Alvaro Santos, (eds.), The New Law and Development: A Critical Appraisal, 2006, p. 23 (“O pensamento jurídico alemão foi, nesse sentido, hegemônico entre 1850 e 1900, o pensamento jurídico francês entre 1900 e meados da década de 1930, e o pensamento jurídico estadunidense após 1950”).

15 No conceito clássico formulado por Hely Lopes Meirelles, Direito administrativo brasileiro, 1995, p. 143, os atos discricionários são os que “a Administração pode praticar com liberdade de escolha do seu conteúdo, de seu destinatário, de sua conveniência, de sua oportunidade e do modo de sua realização”. É certo que, mesmo no âmbito do direito administrativo, essa visão vem sendo significativamente atenuada. V. Gustavo Binenbojm, Uma teoria do direito administrativo, 2008, p. 38 e s.

16 V. Eros Roberto Grau, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, 2009, p. 283.

17 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1979, p. 466-73.

18 Robert Alexy, Begriff und Geltung des Rechts, 4.ed., 2005, p. 29 e s. A remissão a esse texto é feito pelo próprio Alexy, em artigo publicado em português, com tradução de Fernando Leal, que apresenta um excelente resumo da concepção jurídica do grande jusfilósofo alemão: v. Robert Alexy, Principais elementos de uma teoria da dupla natureza do direito, Revista de Direito Administrativo 253:9, 2010, p. 18-19: “(…) [A] pretensão de correção envolve ambos os princípios (…). O princípio da segurança jurídica exige a vinculação às leis formalmente corretas e socialmente eficazes; o da justiça reclama a correção moral das decisões”.

19 Para um relevante estudo sobre a segurança jurídica, v. Humberto Ávila, Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no direito tributário, 2011.

20 Sobre o tema da dignidade humana, v. Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, 2010; e Luís Roberto Barroso, A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial, 2012.

21 V. Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997, p. 279 e s; A matter of principle, 2000, p. 119 e s; e Justice in robes, 2006, p. 41 e s.

22 V. , e.g., Álvaro Ricardo de Souza Cruz, A resposta correta: incursões jurídicas e filosóficas sobre as teorias da justiça, 2011; Lenio Luiz Streck, Verdade e consenso, 2012, p. 327 e s.; Flávio Quinaud Pedron, Esclarecimentos sobre a tese da única “resposta correta”, de Ronald Dworkin, Revista CEJ 45:102, 2009; e Juarez Freitas, A melhor interpretação constitucional versus a única resposta correta, in Virgílio Afonso da Silva (org.), Interpretação constitucional, 2005.

23 Merece registro, a esse propósito, o antológico poema de Carlos Drummond de Andrade intitulado Verdade: “A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia”.

24 Exemplo inspirado por passagem do livro de David Foster Wallace, This is water, 2005, p. 17-24.

25 ADPF 153, rel. Min. Eros Grau.

26 CIDH, Gomes Lund e outros v. Brasil, 2010, http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219_por.pdf.

27 Esta foi, em linhas gerais, a linha do voto do relator, Min. Eros Grau.

28 Para uma defesa da revisão do julgado, v. Claudio Pereira de Souza Neto, Não há obstáculo para rever o julgamento da lei da anistia, Consultor Jurídico, 2 abr. 2014.

29 Característica das sociedades abertas contemporâneas é o “fato do pluralismo” e a inevitabilidade dos “desacordos morais razoáveis”, conceitos explorados em John Rawls, Political liberalism, 2005, p. 54-55 (a 1ª. edição é de 1993).

30 A idéia de direito como integridade é um dos conceitos chave do pensamento de Ronald Dworkin, tendo sido desenvolvido no capítulo VII de sua obra Law’s empire, 1986 (em português, O império do Direito, 1999, p. 271 e s). Em outra obra, intitulada Freedom’s law, 1996, p. 10, Dworkin volta ao tema, ao afirmar que a leitura moral da Constituição, por ele preconizada, é limitada pela exigência de integridade constitucional, afirmando: “Os juízes não devem ler suas próprias convicções na Constituição. Não devem ler cláusulas morais abstratas como se expressassem algum juízo moral particular, não importa quão adequado esse juízo lhes pareça, a menos que o considerem consistente em princípio com o desenho estrutural da Constituição como um todo e também com as linhas dominantes da interpretação constitucional assentadas pelos juízes que os antecederam”.

Capítulo 5

O STF e sua função majoritária e representativa

I. A jurisdição constitucional

As múltiplas competências do Supremo Tribunal Federal, enunciadas no art. 102 da Constituição, podem ser divididas em duas grandes categorias: ordinárias e constitucionais1. O Tribunal presta jurisdição ordinária nas diferentes hipóteses em que atua como qualquer outro órgão jurisdicional, aplicando o direito infraconstitucional a situações concretas, que vão do julgamento criminal de parlamentares à solução de conflitos de competência entre tribunais. De parte isso, o Tribunal tem, como função principal, o exercício da jurisdição constitucional, que se traduz na interpretação e aplicação da Constituição, tanto em ações diretas como em processos subjetivos. Ao prestar jurisdição constitucional nos diferentes cenários pertinentes, cabe à Corte: (i) aplicar diretamente a Constituição a situações nela contempladas, como faz, por exemplo, ao assegurar ao acusado em ação penal o direito à não autoincriminação; (ii) declarar a inconstitucionalidade de leis ou atos normativos, como fez no tocante à resolução do TSE que redistribuía o número de cadeiras na Câmara do Deputados; ou (iii) sanar lacunas do sistema jurídico ou omissões inconstitucionais dos Poderes, como fez ao regulamentar a greve no serviço público.

Do ponto de vista político-institucional, o desempenho da jurisdição constitucional pelo Supremo Tribunal Federal – bem como por supremas cortes ou tribunais constitucionais mundo afora – envolve dois tipos de atuação: a contramajoritária e a representativa. A atuação contramajoritária é um dos temas mais analisados na teoria constitucional, que há muitas décadas discute a legitimidade democrática da invalidação de atos do Legislativo e do Executivo por órgão jurisdicional. Já a função representativa tem sido largamente ignorada pela doutrina e pelos formadores de opinião em geral. Nada obstante isso, em algumas partes do mundo, e destacadamente no Brasil, este segundo papel se tornou não apenas mais visível como, circunstancialmente, mais importante. O presente capítulo procura lançar luz sobre esse fenômeno, que tem passado curiosamente despercebido, apesar de ser, possivelmente, a mais importante transformação institucional da última década.

II.O papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal, como as cortes constitucionais em geral, exerce o controle de constitucionalidade dos atos normativos, inclusive os emanados do Poder Legislativo e da chefia do Poder Executivo. No desempenho de tal atribuição, pode invalidar atos do Congresso Nacional – composto por representantes eleitos pelo povo brasileiro – e do Presidente da República, eleito com mais de meia centena de milhões de votos. Vale dizer: onze Ministros do STF (na verdade seis, pois basta a maioria absoluta), que jamais receberam um voto popular, podem sobrepor a sua interpretação da Constituição à que foi feita por agentes políticos investidos de mandato representativo e legitimidade democrática. A essa circunstância, que gera uma aparente incongruência no âmbito de um Estado democrático, a teoria constitucional deu o apelido de “dificuldade contramajoritária”2.

A despeito de resistências teóricas pontuais3, esse papel contramajoritário do controle judicial de constitucionalidade tornou-se quase universalmente aceito. A legitimidade democrática da jurisdição constitucional tem sido assentada com base em dois fundamentos principais: a) a proteção dos direitos fundamentais, que correspondem ao mínimo ético e à reserva de justiça de uma comunidade política4, insuscetíveis de serem atropelados por deliberação política majoritária; e b) a proteção das regras do jogo democrático e dos canais de participação política de todos5. A maior parte dos países do mundo confere ao Judiciário e, mais particularmente à sua suprema corte ou corte constitucional, o status de sentinela contra o risco da tirania das maiorias6. Evita-se, assim, que possam deturpar o processo democrático ou oprimir as minorias. Há razoável consenso, nos dias atuais, de que o conceito de democracia transcende a ideia de governo da maioria, exigindo a incorporação de outros valores fundamentais.

Um desses valores fundamentais é o direito de cada indivíduo a igual respeito e consideração7, isto é, a ser tratado com a mesma dignidade dos demais – o que inclui ter os seus interesses e opiniões levados em conta. A democracia, portanto, para além da dimensão procedimental de ser o governo da maioria, possui igualmente uma dimensão substantiva, que inclui igualdade, liberdade e justiça. É isso que a transforma, verdadeiramente, em um projeto coletivo de autogoverno, em que ninguém é deliberadamente deixado para trás. Mais do que o direito de participação igualitária, democracia significa que os vencidos no processo político, assim como os segmentos minoritários em geral, não estão desamparados e entregues à própria sorte. Justamente ao contrário, conservam a sua condição de membros igualmente dignos da comunidade política8. Em quase todo o mundo, o guardião dessas promessas9 é a suprema corte ou o tribunal constitucional, por sua capacidade de ser um fórum de princípios10 – isto é, de valores constitucionais, e não de política – e de razão pública – isto é, de argumentos que possam ser aceitos por todos os envolvidos no debate11. Seus membros não dependem do processo eleitoral e suas decisões têm de fornecer argumentos normativos e racionais que a suportem.

Cumpre registrar que esse papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal tem sido exercido, como é próprio, com razoável parcimônia. De fato, nas situações em que não estejam em jogo direitos fundamentais e os pressupostos da democracia, a Corte deve ser deferente para com a liberdade de conformação do legislador e a razoável discricionariedade do administrador. Por isso mesmo, é relativamente baixo o número de dispositivos de leis federais efetivamente declarados inconstitucionais, sob a vigência da Constituição de 198812. É certo que, em uma singularidade brasileira, existem alguns precedentes de dispositivos de emendas constitucionais cuja invalidade foi declarada pelo STF13. Mas, também aqui, nada de especial significação, em quantidade e qualidade. Anote-se, por relevante, que em alguns casos emblemáticos de judicialização de decisões políticas – como a ADI contra o dispositivo que autorizava as pesquisas com células-tronco embrionárias, a ADPF contra a lei federal que previa ações afirmativas em favor de negros no acesso a universidades e a ação popular que questionava o decreto presidencial de demarcação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol por decreto do Presidente da República – , a posição do Tribunal, em todos eles, foi de autocontenção e de preservação da decisão tomada pelo Congresso Nacional ou pelo Presidente da República.

Até aqui procurou-se justificar a legitimidade democrática do papel contramajoritário exercido pela jurisdição constitucional, bem como demonstrar que não há superposição plena entre o conceito de democracia e o princípio majoritário. Antes de analisar o tema da função representativa do STF e concluir o presente ensaio, cabe enfrentar uma questão complexa e delicada em todo o mundo, materializada na seguinte indagação: até que ponto é possível afirmar, sem apegar-se a uma ficção ou a uma idealização desconectada dos fatos, que os atos legislativos correspondem, efetivamente, à vontade majoritária?

II. A crise da representação política

Há muitas décadas, em todo o mundo democrático, é recorrente o discurso acerca da crise dos parlamentos e das dificuldades da representação política. Da Escandinávia à América Latina, um misto de ceticismo, indiferença e insatisfação assinala a relação da sociedade civil com a classe política. Nos países em que o voto não é obrigatório, os índices de abstenção revelam o desinteresse geral. Em países de voto obrigatório, como o Brasil, um percentual muito baixo de eleitores é capaz de se recordar em quem votou nas últimas eleições parlamentares. Disfuncionalidade, corrupção, captura por interesses privados são temas globalmente associados à atividade política. E, não obstante isso, em qualquer Estado democrático, política é um gênero de primeira necessidade. Mas as insuficiências da democracia representativa, na quadra atual, são excessivamente óbvias para serem ignoradas.

A consequência inevitável é a dificuldade de o sistema representativo expressar, efetivamente, a vontade majoritária da população. Como dito, o fenômeno é em certa medida universal. Nos Estados Unidos, cuja política interna tem visibilidade global, os desmandos do financiamento eleitoral, a indesejável infiltração da religião no espaço público e a radicalização de alguns discursos partidários deterioraram o debate público e afastaram o cidadão comum. Vicissitudes análogas acometem países da América Latina e da Europa, com populismos de esquerda, em uma, e de direita, em outra. No Brasil, por igual, vive-se uma situação delicada, em que a atividade política desprendeu-se da sociedade civil, que passou a vê-la com indiferença, desconfiança ou desprezo. Ao longo dos anos, a ampla exposição das disfunções do financiamento eleitoral, das relações oblíquas entre Executivo e parlamentares e do exercício de cargos públicos para benefício próprio revelou as mazelas de um sistema que gera muita indignação e poucos resultados14. Em suma: a doutrina, que antes se interessava pelo tema da dificuldade contramajoritária dos tribunais constitucionais, começa a voltar atenção para o déficit democrático da representação política15.

Essa crise de legitimidade, representatividade e funcionalidade dos parlamentos gerou, como primeira consequência, em diferentes partes do mundo, um fortalecimento do Poder Executivo. Nos últimos anos, porém, e com especial expressão no Brasil, tem-se verificado uma expansão do Poder Judiciário e, notadamente, do Supremo Tribunal Federal. Em curioso paradoxo, o fato é que em muitas situações juízes e tribunais se tornaram mais representativos dos anseios e demandas sociais do que as instâncias políticas tradicionais. É estranho, mas vivemos uma quadra em que a sociedade se identifica mais com seus juízes do que com seus parlamentares. Um exemplo ilustra bem a afirmação: quando o Congresso Nacional aprovou as pesquisas com células-tronco embrionárias, o tema passou despercebido. Quando a lei foi questionada no STF, assistiu-se a um debate nacional. É imperativo procurar compreender melhor este fenômeno, explorar-lhe eventuais potencialidades positivas e remediar a distorção que ele representa. A teoria constitucional ainda não elaborou analiticamente o tema, a despeito da constatação inevitável: a democracia já não flui exclusivamente pelas instâncias políticas tradicionais.

III. O papel representativo do Supremo Tribunal Federal16

A grande arte em política não é ouvir os que falam, é ouvir os que se calam”.

Etienne Lamy

Ao longo do texto procurou-se ressaltar a substantivação do conceito de democracia, que não apenas não se identifica integralmente com o princípio majoritário, como ademais, tem procurado novos mecanismos de expressão. Um deles foi a transferência de poder político – aí incluído certo grau de criação judicial do direito – para órgãos como o Supremo Tribunal Federal. O presente tópico procura explorar esse fenômeno, tanto na sua dinâmica interna quanto nas suas causas e consequências. No arranjo institucional contemporâneo, em que se dá a confluência entre a democracia representativa e a democracia deliberativa17, o exercício do poder e da autoridade é legitimado por votos e por argumentos. É fora de dúvida que o modelo tradicional de separação de Poderes, concebido no século XIX e que sobreviveu ao século XX, já não dá conta de justificar, em toda a extensão, a estrutura e funcionamento do constitucionalismo contemporâneo. Para utilizar um lugar comum, parodiando Antonio Gramsci, vivemos um momento em que o velho já morreu e novo ainda não nasceu18.

A doutrina da dificuldade contramajoritária, estudada anteriormente, assenta-se na premissa de que as decisões dos órgãos eletivos, como o Congresso Nacional, seriam sempre expressão da vontade majoritária. E que, ao revés, as decisões proferidas por uma corte suprema, cujos membros não são eleitos, jamais seriam. Qualquer estudo empírico desacreditaria as duas proposições. Por numerosas razões, o Legislativo nem sempre expressa o sentimento da maioria19. Além do já mencionado déficit democrático resultante das falhas do sistema eleitoral e partidário, é possível apontar algumas outras. Em primeiro lugar, minorias parlamentares podem funcionar como veto players20, obstruindo o processamento da vontade da própria maioria parlamentar. Em outros casos, o autointeresse da Casa legislativa leva-a a decisões que frustram o sentimento popular. Além disso, parlamentos em todo o mundo estão sujeitos à captura eventual por interesses especiais, eufemismo que identifica o atendimento a interesses de certos agentes influentes do ponto de vista político ou econômico, ainda quando em conflito com o interesse coletivo21.

Por outro lado, não é incomum nem surpreendente que o Judiciário, em certos contextos, seja melhor intérprete do sentimento majoritário. Inúmeras razões contribuem para isso22. Inicio por uma que é menos explorada pela doutrina em geral, mas particularmente significativa no Brasil. Juízes são recrutados, na primeira instância, mediante concurso público. Isso significa que pessoas vindas de diferentes origens sociais, desde que tenham cursado uma Faculdade de Direito e tenham feito um estudo sistemático aplicado, podem ingressar na magistratura. Essa ordem de coisas produziu, ao longo dos anos, um drástico efeito democratizador do Judiciário. Por outro lado, o acesso a uma vaga no Congresso envolve um custo financeiro elevado, que obriga o candidato, com frequência, a buscar financiamentos e parcerias com diferentes atores econômicos e empresariais. Esse fato produz uma inevitável aliança com alguns interesses particulares. Por essa razão, em algumas circunstâncias, juízes são capazes de representar melhor – ou com mais independência – a vontade da sociedade. Poder-se-ia contrapor que este argumento não é válido para os integrantes do Supremo Tribunal Federal. Na prática, porém, a quase integralidade dos Ministros integrantes da Corte é composta por egressos de carreiras jurídicas cujo ingresso se faz por disputados concursos públicos23.

Diversas outras razões se acrescem a esta. Em primeiro lugar, juízes possuem a garantia da vitaliciedade. Como consequência, não estão sujeitos às circunstâncias de curto prazo da política eleitoral, nem tampouco, ao menos em princípio, a tentações populistas. Uma segunda razão é que os órgãos judiciais somente podem atuar por iniciativa das partes: ações judiciais não se instauram de ofício. Ademais, juízes e tribunais não podem julgar além do que foi pedido e têm o dever de ouvir todos os interessados. No caso do Supremo Tribunal Federal, além da atuação obrigatória do Procurador-Geral da República e do Advogado-Geral da União em diversas ações, existe a possibilidade de convocação de audiências públicas e da atuação de amici curiae. Por fim, mas não menos importante, decisões judiciais precisam ser motivadas. Isso significa que, para serem válidas, jamais poderão ser um ato de pura vontade discricionária: a ordem jurídica impõe ao juiz de qualquer grau o dever de apresentar razões, isto é, os fundamentos e argumentos do seu raciocínio e convencimento.

Convém aprofundar um pouco mais este último ponto. Em uma visão tradicional e puramente majoritária da democracia, ela se resumiria a uma legitimação eleitoral do poder. Por esse critério, o fascismo na Itália ou o nazismo na Alemanha poderiam ser vistos como democráticos, ao menos no momento em que se instalaram no poder e pelo período em que tiveram apoio da maioria da população. Aliás, por esse último critério, até mesmo o período Médici, no Brasil, passaria no teste. Não é uma boa tese. Além do momento da investidura, o poder se legitima, também, por suas ações e pelos fins visados24. Cabe aqui retomar a ideia de democracia deliberativa, que se funda, precisamente, em uma legitimação discursiva: as decisões políticas devem ser produzidas após debate público livre, amplo e aberto, ao fim do qual se forneçam as razões das opções feitas. Por isso se ter afirmado, anteriormente, que a democracia contemporânea é feita de votos e argumentos25. Um insight importante nesse domínio é fornecido pelo jusfilósofo alemão Robert Alexy, que se refere à corte constitucional como representante argumentativo da sociedade. Segundo ele, a única maneira de reconciliar a jurisdição constitucional com a democracia é concebê-la, também, como uma representação popular. Pessoas racionais são capazes de aceitar argumentos sólidos e corretos. O constitucionalismo democrático possui uma legitimação discursiva, que é um projeto de institucionalização da razão e da correção26.

Cabe fazer algumas observações adicionais. A primeira delas de caráter terminológico. Se se admite a tese de que os órgãos representativos podem não refletir a vontade majoritária, decisão judicial que infirme um ato do Congresso pode não ser contramajoritária. O que ela será, invariavelmente, é contrarrepresentativa27, entendendo-se o parlamento como o órgão por excelência de representação popular. De parte isso, cumpre fazer um contraponto à assertiva, feita parágrafos atrás, de que juízes eram menos suscetíveis a tentações populistas. Isso não significa que estejam imunes a essa disfunção. Notadamente em uma época de julgamentos televisados, cobertura da imprensa e reflexos na opinião pública, o impulso de agradar a plateia é um risco que não pode ser descartado. Mas penso que qualquer observador isento testemunhará que esta não é a regra. É pertinente advertir, ainda, para um outro risco. Juízes são aprovados em concursos árduos e competitivos, que exigem longa preparação, constituindo quadros qualificados do serviço público. Tal fato pode trazer a pretensão de sobrepor uma certa racionalidade judicial às circunstâncias dos outros Poderes, cuja lógica de atuação, muitas vezes, é mais complexa e menos cartesiana. Por evidente, a arrogância judicial é tão ruim quanto qualquer outra, e há de ser evitada.

O fato de não estarem sujeitas a certas vicissitudes que acometem os dois ramos políticos dos Poderes não é, naturalmente, garantia de que as supremas cortes se inclinarão em favor das posições majoritárias da sociedade. A verdade, no entanto, é que uma observação atenta da realidade revela que é isso mesmo o que acontece. Nos Estados Unidos, décadas de estudos empíricos demonstram o ponto28. Também no Brasil tem sido assim. A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADC nº 1229, e a posterior edição da Súmula Vinculante nº 13, que chancelaram a proibição do nepotismo nos três Poderes, representaram um claro alinhamento com as demandas da sociedade em matéria de moralidade administrativa. A tese vencida era a de que somente o legislador poderia impor esse tipo de restrição30. Também ao apreciar a legitimidade da criação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ como órgão de controle do Judiciário e ao afirmar a competência concorrente do Conselho para instaurar processos disciplinares contra magistrados, o STF atendeu ao anseio social pela reforma do Judiciário, apesar da resistência de setores da própria magistratura31. No tocante à fidelidade partidária, a posição do STF foi ainda mais arrojada, ao determinar a perda do mandato por parlamentar que trocasse de partido32. Embora tenha sofrido crítica por excesso de ativismo, é fora de dúvida que a decisão atendeu a um anseio social que não obteve resposta do Congresso. Outro exemplo: no julgamento, ainda não concluído, no qual se discute a legitimidade ou não da participação de empresas privadas no financiamento eleitoral, o STF, claramente espelhando um sentimento majoritário, sinaliza com a diminuição do peso do dinheiro no processo eleitoral33. A Corte acaba realizando, em fatias, de modo incompleto e sem possibilidade de sistematização, a reforma política que a sociedade clama.

Para além do papel puramente representativo, supremas cortes desempenham, ocasionalmente, o papel iluminista34 de empurrar a história quando ela emperra. Trata-se de uma competência perigosa, a ser exercida com grande parcimônia, pelo risco democrático que ela representa e para que as cortes constitucionais não se transformem em instâncias hegemônicas. Mas, vez por outra, trata-se de papel imprescindível. Nos Estados Unidos, foi por impulso da Suprema Corte que se declarou a ilegitimidade da segregação racial nas escolas públicas, no julgamento de Brown v. Board of Education35, bem como assegurou-se a validade do casamento entre pessoas do mesmo sexo36. Na África do Sul, coube ao Tribunal Constitucional abolir a pena de morte37. Na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal deu a última palavra sobre a validade da criminalização da negação do holocausto38. A Suprema Corte de Israel reafirmou a absoluta proibição da tortura, mesmo na hipótese de interrogatório de suspeitos de terrorismo, em um ambiente social conflagrado, que se tornara leniente com tal prática39.

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais, abrindo caminho para o casamento entre pessoas do mesmo sexo40. Talvez esta não fosse uma posição majoritária na sociedade, mas a proteção de um direito fundamental à igualdade legitimava a atuação. Semelhantemente se passou com a permissão para a interrupção da gestação de fetos anencefálicos41. São exemplos emblemáticos do papel iluminista da jurisdição constitucional. Nesses dois casos específicos, um fenômeno chamou a atenção. Em razão da natureza polêmica dos dois temas, uma quantidade expressiva de juristas se posicionou contrariamente às decisões – “não por serem contrários ao mérito, absolutamente não…” –, mas por entenderem se tratar de matéria da competência do legislador, e não do STF. Como havia direitos fundamentais em jogo, esta não parece ser a melhor posição. Ela contrapõe o princípio formal da democracia – as maiorias políticas é que têm legitimidade para decidir – aos princípios materiais da igualdade e da dignidade da pessoa humana, favorecendo o primeiro em ambos os casos42. Coloca-se o procedimento acima do resultado, o que não parece um bom critério43.

Também se insere nessa linha de atuação mais iluminista e menos majoritária julgados que reconheceram direitos aos transexuais. A esse propósito, decisões judiciais têm assegurado a possibilidade de alteração do nome após cirurgia de mudança de sexo44, bem como a própria realização da cirurgia dessa natureza no âmbito do sistema público de saúde45. Na pauta do próprio Supremo Tribunal Federal encontram-se, com repercussão geral já reconhecida, a discussão sobre mudança de nome independentemente de cirurgia e a utilização, por transexuais, de banheiro público correspondente à sua autopercepção. Difícil imaginar essas questões sendo enfrentadas e superadas, no quadro atual, pelo processo legislativo ordinário. Deveria o Judiciário, em razão disso, silenciar ou se omitir? Também integram as minorias invisíveis os presos recolhidos ao sistema penitenciário. Sem surpresa, também aqui o caminho de superação das dramáticas violações à dignidade humana tem sido o Judiciário e o Supremo Tribunal Federal.

Às vezes, ocorre na sociedade uma reação a certos avanços propostos pela suprema corte. Nos Estados Unidos, esse fenômeno recebe o nome de backlash. Um caso paradigmático de reação do Legislativo se deu contra o julgamento de Furman v. Georgia46, em 1972, no qual a Suprema Corte considerou inconstitucional a pena de morte, tal como aplicada em 39 Estados da Federação47. O fundamento principal era o descritério nas decisões dos júris e o impacto desproporcional sobre as minorias. Em 1976, no entanto, a maioria dos Estados havia aprovado novas leis sobre pena de morte, contornando o julgado da Suprema Corte. Em Gregg v. Georgia48, a Suprema Corte manteve a validade da nova versão da legislação penal daquele Estado. Também em Roe v. Wade49, a célebre decisão que descriminalizou o aborto, as reações foram imensas, até hoje dividindo opiniões de maneira radical50. No Brasil, houve alguns poucos casos de reação normativa a decisões do Supremo Tribunal Federal, como, por exemplo, em relação ao foro por prerrogativa de função51, às taxas municipais de iluminação pública52, à progressividade das alíquotas do IPTU53, à cobrança de contribuição previdenciária de inativos54 e à definição do número de vereadores55.

Em favor da tese que se vem sustentando ao longo do presente trabalho, acerca do importante papel democrático da jurisdição constitucional, é possível apresentar uma coleção significativa de decisões do Supremo Tribunal Federal que contribuíram para o avanço social no Brasil. Todas elas têm natureza constitucional, mas produzem impacto em um ramo específico do Direito, como enunciado abaixo:

Direito civil: proibição da prisão por dívida no caso de depositário infiel, reconhecendo a eficácia e prevalência do Pacto de San Jose da Costa Rica em relação ao direito interno.

Direito penal: declaração da inconstitucionalidade da proibição de progressão de regime, em caso de crimes hediondos e equiparáveis.

Direito administrativo: vedação do nepotismo nos três Poderes.

Direito à saúde: determinação de fornecimento de gratuito de medicamentos necessários ao tratamento da AIDS em pacientes sem recursos financeiros.

Direito à educação: direito à educação infantil, aí incluídos o atendimento em creche e o acesso à pré-escola. Dever do Poder Público de dar efetividade a esse direito.

Direitos políticos: proibição de livre mudança de partido após a eleição para cargo proporcional, sob pena de perda do mandato, por violação ao princípio democrático.

Direitos dos trabalhadores públicos: regulamentação, por via de mandado de injunção, do direito de greve dos servidores e trabalhadores do serviço público

Direito dos deficientes físicos: direito de passe livre no sistema de transporte coletivo interestadual a pessoas portadoras de deficiência, comprovadamente carentes.

Proteção das minorias:

  1. Judeus: a liberdade de expressão não inclui manifestações de racismo, aí incluído o anti-semitismo.
  2. Negros: validação de ações afirmativas em favor de negros, pardos e índios.
  3. Homossexuais: equiparação das relações homoafetivas às uniões estáveis convencionais e direito ao casamento civil.
  4. Comunidades indígenas: demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol em área contínua.

Liberdade de pesquisa científica: declaração da constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias.

Liberdade de expressão: inconstitucionalidade da exigência de autorização prévia da pessoa retratada ou de seus familiares para a divulgação de obras biográficas;

Direito das mulheres: direito à antecipação terapêutica do parto em caso de feto anencefálico; constitucionalidade da Lei Maria da Penha, que reprime a violência doméstica contra a mulher.

Três últimos comentários antes de encerrar. Primeiro: a jurisdição constitucional, como se procurou demonstrar acima, tem servido bem ao país. A preocupação com abusos por parte de juízes e tribunais não é infundada, e é preciso estar preparado para evitar que ocorram56. Porém, no mundo real, são muito limitadas as decisões do Supremo Tribunal Federal às quais se possa imputar a pecha de haverem ultrapassado a fronteira aceitável. E, nos poucos casos em que isso ocorreu, o próprio Tribunal cuidou de remediar57. Portanto, não se deve desprezar, por um temor imaginário, as potencialidades democráticas e civilizatórias de uma corte constitucional. A crítica à atuação do STF, desejável e legítima em uma sociedade plural e aberta, provem mais de atores insatisfeitos com alguns resultados e de um nicho acadêmico minoritário, que opera sobre premissas teóricas diversas das que vão aqui enunciadas58. A propósito, cabe formular uma pergunta crucial, feita por Eduardo Mendonça em sua tese de doutorado já citada59: o argumento de que a jurisdição constitucional tem atuado em padrões antidemocráticos não deveria vir acompanhado de uma insatisfação popular com o papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal? O que dizer, então, se ocorre exatamente o contrário: no Brasil e no mundo, os índices de aprovação que ostenta a corte constitucional costumam estar bem acima dos do Legislativo60. Por certo não se devem extrair desse fato conclusões precipitadas nem excessivamente abrangentes. Porém, uma crítica formulada com base em uma visão formal da democracia, mas sem povo, não deve impressionar.

O segundo comentário é intuitivo. Como já se teve oportunidade de afirmar diversas vezes, decisão política, como regra geral, deve ser tomada por quem tem voto. Portanto, o Poder Legislativo e o chefe do Poder Executivo têm uma preferência geral prima facie para tratar de todas as matérias de interesse do Estado e da sociedade. E, quando tenham atuado, os órgãos judiciais devem ser deferentes para com as escolhas legislativas ou administrativas feitas pelos agentes públicos legitimados pelo voto popular. A jurisdição constitucional somente deve se impor, nesses casos, se a contrariedade à Constituição for evidente, se houver afronta a direito fundamental ou comprometimento dos pressupostos do Estado democrático. Porém, como o leitor terá intuído até aqui, a jurisdição constitucional desempenha um papel de maior destaque quando o Poder Legislativo não tenha atuado. É nas lacunas normativas ou nas omissões inconstitucionais que o STF assume um papel de eventual protagonismo. Como consequência, no fundo no fundo, é o próprio Congresso que detém a decisão final, inclusive sobre o nível de judicialização da vida.

Merece registro incidental, antes de encerrar o presente trabalho, um fenômeno conhecido na doutrina como diálogo constitucional ou diálogo institucional61. Embora a corte constitucional ou corte suprema seja o intérprete final da Constituição em cada caso, três situações dignas de nota podem subverter ou atenuar esta circunstância, a saber: a) a interpretação da Corte pode ser superada por ato do Parlamento ou do Congresso, normalmente mediante emenda constitucional; b) a Corte pode devolver a matéria ao Legislativo, fixando um prazo para a deliberação ou c) a Corte pode conclamar o Legislativo a atuar, o chamado “apelo ao legislador”. Na experiência brasileira existem diversos precedentes relativos à primeira hipótese, como no caso do teto remuneratório dos servidores públicos62 e da base de cálculo para incidência de contribuição previdenciária63, além dos já referidos anteriormente nesse mesmo tópico.

Em relação à segunda hipótese, referente à fixação de prazo para o Congresso legislar, há precedentes em relação à criação de Municípios64 ou à reformulação dos critérios adotados no Fundo de Participações dos Estados65, embora nem sempre se dê o adequado cumprimento dentro do período demarcado pela decisão. Por fim, relativamente à terceira hipótese, por muitos anos foi esse o sentido dado pela jurisprudência do STF ao mandado de injunção. Um caso muito significativo de diálogo institucional informal se deu em relação ao art. 7º, I da Constituição, que prevê a edição de lei complementar disciplinando a indenização compensatória contra a despedida arbitrária ou sem justa causa. No julgamento de mandado de injunção, o plenário do STF deliberou que iria fixar, ele próprio, o critério indenizatório, tendo em vista a omissão de mais de duas décadas do Congresso em fazê-lo66. Diante de tal perspectiva, o Congresso aprovou em tempo recorde a Lei nº 12.506/2011, provendo a respeito.

Mais recentemente, dois casos de diálogo institucional tiveram lugar. Ao decidir ação penal contra um Senador da República, o STF, por maioria apertada de votos, interpretou o art. 55, VI e seu § 2º no sentido de caber à Casa legislativa decretar a perda do mandato de parlamentar que sofresse condenação criminal transitada em julgado67. Ministros que afirmaram a posição vencedora registraram sua crítica severa à fórmula imposta pela Constituição, instando o Congresso a revisitar o tema68. Pouco tempo após o julgamento, o Senado Federal aprovou Proposta de Emenda Constitucional superadora desse tratamento deficiente da matéria. Em final de 2014, a Proposta ainda se encontrava em tramitação na Câmara. Em outro caso, um Deputado Federal foi condenado a mais de 13 anos de prisão, em regime inicial fechado69. Submetida a questão da perda do seu mandato à Câmara dos Deputados, a maioria deliberou não cassá-lo. Em mandado de segurança impetrado contra esta decisão, foi concedida liminar pelo relator, sob o fundamento de que em caso de prisão em regime fechado, a perda do mandato deveria se dar por declaração da Mesa e não por deliberação política do Plenário70. Antes do julgamento do mérito do mandado de segurança, a Câmara dos Deputados suprimiu a previsão de voto secreto na matéria e deliberou pela cassação.

O que se deduz desse registro final é que o modelo vigente não pode ser caracterizado como de supremacia judicial. O Supremo Tribunal Federal tem a prerrogativa de ser o intérprete final do direito, nos casos que são a ele submetidos, mas não é o dono da Constituição. Justamente ao contrário, o sentido e o alcance das normas constitucionais são fixados em interação com a sociedade, com os outros Poderes e com as instituições em geral. A perda de interlocução com a sociedade, a eventual incapacidade de justificar suas decisões ou de ser compreendido, retiraria o acatamento e a legitimidade do Tribunal. Por outro lado, qualquer pretensão de hegemonia sobre os outros Poderes sujeitaria o Supremo a uma mudança do seu desenho institucional ou à superação de seus precedentes por alteração no direito, competências que pertencem ao Congresso Nacional. Portanto, o poder do Supremo Tribunal Federal tem limites claros. Na vida institucional, como na vida em geral, ninguém é bom demais e, sobretudo, ninguém é bom sozinho.

Conclusão

Circunstâncias diversas, como o final da guerra, a consolidação do ideal democrático e a centralidade dos direitos fundamentais, impulsionaram uma vertiginosa ascensão institucional do Poder Judiciário e da jurisdição constitucional em todo o mundo. Como consequência, juízes e tribunais passaram a integrar a paisagem política, ao lado do Legislativo e do Executivo. A teoria constitucional dominante, nas últimas décadas, tem desenvolvido um discurso de justificação e legitimação democrática desse processo histórico. Paralelamente a esse rearranjo institucional, a complexidade da vida moderna, potencializada pela diversidade e pelo pluralismo, levou a uma crise da lei e ao aumento da indeterminação do direito, com a transferência de maior competência decisória a juízes e tribunais, que passaram a fazer valorações próprias diante de situações concretas da vida.

Nesse novo universo, cortes como o Supremo Tribunal Federal passaram a desempenhar, simultaneamente ao papel contramajoritário tradicional, uma função representativa, pela qual atendem a demandas sociais relevantes que não foram satisfeitas pelo processo político majoritário. No desempenho de tal atribuição, o juiz constitucional não está autorizado a impor as suas próprias convicções. Pautado pelo material jurídico relevante (normas, conceitos, precedentes), pelos princípios constitucionais e pelos valores civilizatórios, cabe-lhe interpretar o sentimento social, o espírito de seu tempo e o sentido da história. Com a dose certa de prudência e de ousadia. O conjunto expressivo de decisões referidas no presente trabalho, proferidas sob a Constituição de 1988, exibem um Supremo Tribunal Federal comprometido com a promoção dos valores republicanos, o aprofundamento democrático e o avanço social. No desempenho de tal papel, a Corte tem percorrido o caminho do meio, sem timidez nem arrogância.

 

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1 Para um amplo levantamento estatístico e sistemático dos diferentes papéis do STF, v. Joaquim Falcão, Pablo de Camargo Cerdeira e Diego Werneck Arguelhes, I Relatório Supremo em Números: O Múltiplo Supremo, 2011. Para uma reflexão crítica acerca do acúmulo de competências da Corte, v. Oscar Vilhena Vieria, Supremocracia, Revista de Direito do Estado 12:55, 2008. Para uma proposta concreta de requacionamento da atuação do STF, v. Luís Roberto Barroso, Reflexões sobre as competências e o funcionamento do Supremo Tribunal Federal, Consultor Jurídico 26 ago. 2014 (http://www.conjur.com.br/2014-ago-26/roberto-barroso-propoe-limitar-repercussao-geral-supremo).

2 A expressão se tornou clássica a partir da obra de Alexander Bickel, The least dangerous branch: the Supreme Court at the bar of politics, 1986, p. 16 e s. A primeira edição do livro é de 1962.

3 E.g., Jeremy Waldron, The core of the case against judicial review. The Yale Law Journal 115:1346; e Mark Tushnet, Taking the Constitution away from the courts, 2000.

4 A equiparação entre direitos humanos e reserva mínima de justiça é feita por Robert Alexy em diversos de seus trabalhos. V., e.g., La institucionalización de la justicia, 2005, p. 76.

5 Para esta visão processualista do papel da jurisdiçao constitucional, v. John Hart Ely, Democracy and distrust, 1980.

6 A expressão foi utilizada por John Stuart Mill, On Liberty, 1874, p. 13: “A tirania da maioria é agora geralmente incluída entre os males contra os quais a sociedade precisa ser protegida (…)”.

7 Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1997, p. 181. A primeira edição é de 1977.

8 Nas palavras de Eduardo Mendonça, A democracia das massas e a democracia das pessoas: uma reflexão sobre a dificuldade contramajoritária, tese de doutorado, UERJ, mimeografada, 2014, p. 84: “Os perdedores de cada processo decisório não se convertem em dominados, ostentando o direito fundamental de não serem desqualificados como membros igualmente dignos da comunidade política”.

9 A expressão consta do título do livro de Antoine Garapon, O juiz e a democracia: o guardião das promessas, 1999.

10 Ronald Dworkin, The forum of principle, New York University Law Review 56:469, 1981.

11John Rawls, Political liberalism, 2005. A primeira edição é de 1993.

12 Com base em levantamento elaborado pela Secretaria de Gestão Estratégica, do Supremo Tribunal Federal, foi possível identificar 93 dispositivos de lei federal declarados inconstitucionais, desde o início de vigência da Constituição de 1988 – um número pouco expressivo, ainda mais quando se considera que foram editadas, no mesmo período, nada menos que 5.379 leis ordinárias federais, somadas a outras 88 leis complementares. Na imensa maioria dos casos, teve-se o reconhecimento da invalidade de dispositivos pontuais, mantendo-se em vigor a parte mais substancial dos diplomas objeto de questionamento. Embora esse levantamento não leve em conta a abrangência e relevância dos dispositivos que tiveram a sua inconstitucionalidade declarada, confirma a percepção de que, ao menos do ponto de vista quantitativo, a imensa maioria da produção legislativa não é afetada pela atuação do STF.

13 Em ordem cronológica, é possível sistematizar da seguinte forma: (i) declaração de inconstitucionalidade da EC n° 3/93, que havia instituído o IPMF – Imposto Provisório sobre Movimentações Financeiras, sob o fundamento de não terem sido observadas determinadas limitações constitucionais ao poder de tributar, como a anterioridade e a imunidade recíproca dos entes federativos (STF, DJ 09.03.1994, ADI 939, Rel. Min. Sydney Sanches; (ii) Interpretação conforme a EC 20/98, assentando que o teto instituído para o custeio estatal de benefícios do regime geral de previdência não seria aplicável à licença-gestante, de modo a evitar que o repasse de encargos aos empregadores prejudicasse a inserção das mulheres no mercado de trabalho formal (STF, ADI 1.946, DJ 16.05.2003, Rel. Min. Sydney Sanches); (iii) declaração de inconstitucionalidade de dispositivos pontuais da EC 41/2004, apenas na parte em que se instituía variação entre União, Estados e Municípios no tocante ao cálculo da contribuição previdenciária devida pelos servidores inativos, sob o fundamento de ofensa ao princípio federativo (STF, DJ 18.02.2005, ADI 3.128, Rel. p/ o acórdão Min. Cezar Peluso); (iv) suspensão cautelar da parte central da EC 30/2000, que estabelecera um regime especial para o pagamento de precatórios vencidos, com parcelamento em dez anos, sob os argumentos de quebra da ordem de pagamentos e da isonomia, bem como de violação à autoridade das decisões judiciais (STF, DJe 19.05.2011, MC na ADI 2.356, Rel. p/ o acórdão Min. Ayres Britto);(v) declaração de inconstitucionalidade de parte substancial da EC n° 62/09, que pretendeu instituir um novo regime transitório para a regularização dos precatórios, novamente sob os argumentos centrais de quebra da ordem cronológica e da isonomia, bem como de violação ao princípio da moralidade administrativa (STF, DJe 19.12.2013, ADI 4.357 e ADI 4.425, Rel. Min. Luiz Fux).

14 Expressando esse desencanto, escreveu em artigo jornalístico o historiador Marco Antonio Villa (Os desiludidos da República, O Globo, 8 jul. 2014, p. 16): “O processo eleitoral reforça este quadro de hostilidade à política. A mera realização de eleições – que é importante – não desperta grande interesse. Há um notório sentimento popular de cansaço, de enfado, de identificação do voto como um ato inútil, que nada muda. De que toda eleição é sempre igual, recheada de ataques pessoais e alianças absurdas. Da ausência de discussões programáticas. De promessas que são descumpridas nos primeiros dias de governo. De políticos sabidamente corruptos e que permanecem eternamente como candidatos – e muitos deles eleitos e reeleitos. Da transformação da eleição em comércio muito rendoso, onde não há política no sentido clássico. Além da insuportável propaganda televisiva, com os jingles, a falsa alegria dos eleitores e os candidatos dissertando sobre o que não sabem”.

15 V., e.g., Mark A. Graber, The countermajoritarian difficulty: from courts to Congress to constitutional order, Annual Review of Law and Social Science 4:361-62 (2008). Em meu texto Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil, Revista de Direito Administrativo 240:1, 2005, p. 41, escrevi: “Cidadão é diferente de eleitor; governo do povo não é governo do eleitorado. No geral, o processo político majoritário se move por interesses, ao passo que a lógica democrática se inspira em valores. E, muitas vezes, só restará o Judiciário para preservá-los. O deficit democrático do Judiciário, decorrente da dificuldade contramajoritária, não é necessariamente maior que o do Legislativo, cuja composição pode estar afetada por disfunções diversas, dentre as quais o uso da máquina administrativa, o abuso do poder econômico, a manipulação dos meios de comunicação”.

16 O presente tópico beneficia-se da minha longa interlocução com Eduardo Mendonça, que se materializou em dois trabalhos que escrevemos em parceria e, sobretudo, na sua notável tese de doutorado, da qual fui orientador, intitulada A democracia das massas e a democracia das pessoas: uma reflexão sobre a dificuldade contramajoritária, UERJ, mimeografado, 2014. Os trabalhos conjuntos foram publicados na revista eletrônica Consultor Jurídico, como resenhas da atuação do STF nos anos de 2011 e 2012, intituladas, respectivamente, Supremo foi permeável à opinião pública, sem ser subserviente e STF entre seus papéis contramajoritário e representativo.

17 A ideia de democracia deliberativa tem como precursores autores como John Rawls, com sua ênfase na razão, e Jurgen Habermas, com sua ênfase na comunicação humana. Sobre democracia deliberativa, v., entre muitos, em língua inglesa, Amy Gutmann e Dennis Thompson, Why deliberative democracy?, 2004; em português, Cláudio Pereira de Souza Neto, Teoria constitucional e democracia deliberativa, 2006.

18 Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere, 1926-1937. Disponível, na versão em espanhol, em http://pt.scribd.com/doc/63460598/Gramsci-Antonio-Cuadernos-de-La-Carcel-Tomo-1-OCR:“A crise consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”. V. tb., entrevista do sociólogo Zigmunt Bauman, disponível emhttp://www.ihu.unisinos.br/noticias/24025-%60%60o-velho-mundo-esta-morrendo-mas-o-novo-ainda-nao-nasceu%60%60-entrevista-com-zigmunt-bauman.

19 Sobre o tema, v. Corinna Barret Lain, Upside-down judicial review, The Georgetown Law Review 101:113, 2012-2103. V. tb. Michael J. Klarman, The majoritarian judicial review: the entrenchment problem, The Georgetown Law Journal 85:49, 1996-1997.

20 Veto players são atores individuais ou coletivos com capacidade de parar o jogo ou impedir o avanço de uma agenda. Sobre o tema, v. Pedro Abramovay, Separação de Poderes e medidas provisórias, 2012, p. 44 e s.

21 Este tema tem sido objeto de estudo, nos Estados Unidos, por parte da chamada public choice theory, que procura desmistificar a associação entre lei e vontade da maioria. Para um resumo desses argumentos, v. Rodrigo Brandão, Supremacia judicial versus diálogos institucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição, 2012, p. 205.

22 Patrícia Perrone Campos Mello, Nos bastidores do Supremo Tribunal Federal: Constituição, emoção, estratégia e espetáculo, tese de doutorado, UERJ, mimeografada, 2014, p. 399-411, faz uma compilação das justificativas apresentadas por diferentes autores na literatura jurídica americana para esse alinhamento das Supremas Cortes com a maioria. Os principais deles seriam: i) a indicação política dos juízes, que, por isso, seriam sensíveis ao pensamento da maioria; ii) a sujeição dos juízes aos valores da comunidade e aos mesmos movimentos sociais; iii) a interação das Supremas Cortes com a opinião pública (inclusive através do backlash); iv) a preocupação com sua credibilidade e estabilidade institucional (em face das instâncias majoritárias); v) o desejo de reconhecimento ou a preocupação com a imagem de seus integrantes junto à opinião pública.

23 Na composição de julho de 2014: Celso de Mello era integrante do Ministério Público de São Paulo. Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa vieram do Ministério Público Federal. Carmen Lúcia e Luís Roberto Barroso eram procuradores do Estado. Luiz Fux e Teori Zavascky proveem, respectivamente, da magistratura estadual e federal. Rosa Weber, da magistratura do trabalho. Os outros três Ministros, embora não concursados para ingresso nas instituições que integravam, vieram de carreiras vitoriosas: Marco Aurélio Mello (Procuradoria do Trabalho e, depois, Ministro do TST), Ricardo Lewandowski (Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, tendo ingressado na magistratura pelo quinto constitucional) e Dias Toffoli (Advogado-Geral da União).

24 V. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Teoria do poder, Parte I, 1992, p. 228-231, em que discorre sobre a legitimidade originária, corrente e finalística do poder político.

25 Para o aprofundamento dessa discussão acerca de legitimação eleitoral e discursiva, v. Eduardo Mendonça, A democracia das massas e a democracia das pessoas: uma reflexão sobre a dificuldade contramajoritária, mimeografado, 2014, p. 64-86.

26 V. Robert Alexy, Balancing, constitutional review, and representation, International Journal of Constitutional Law 3:572, 2005, p. 578 e s.

27 Tal particularidade foi bem captada por Eduardo Mendonça, A democracia das massas e a democracia das pessoas: uma reflexão sobre a dificuldade contramajoritária, mimoegrafado, 2014, p. 213 e s.

28 Corinna Barret Lain, Upside-down judicial review,The Georgetown Law Review 101:113, 2012-2103, p. 158. V. tb. Robert A. Dahl, Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a national policy-maker, Journal of Public Law 6: 279, 1957, p. 285; e Jeffrey Rosen, The most democratic branch: how the courts serve America, 2006, p. xii: “Longe de proteger as minorias contra a tirania das maiorias ou contrabalançar a vontade do povo, os tribunais, ao longo da maior parte da história americana, têm se inclinado por refletir a visão constitucional das maiorias”.

29ADC nº 13, Rel. Min. Carlos Ayres Britto.

30 Em defesa do ponto de vista de que o CNJ não teria o poder de impor tal vedação, v. Lenio Streck, Ingo Wolfgang Sarlet e Clemerson Merlin Cleve, Os limites constitucionais das resoluções do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). In: http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/15653-15654-1-PB.pdf.

31 ADI nº 3367, Rel. Min. Cezar Peluso, e ADI nº 4.638, Rel. Min. Marco Aurélio. Merece registro, em relação ao segundo ponto, a atuação decisiva da então Corregedora Nacional de Justiça, Ministra Eliana Calmon, na defesa da competência concorrente – e não meramente supletiva – do CNJ.

32 MS nº 26.604, Rel. Min. Cármen Lúcia.

33 ADI nº 4.650, Rel. Min. Luiz Fux. Pesquisa conduzida pelo Datafolha, divulgada em julho de 2015, apurou que 74% da população são contrários ao financiamento empresarial de partidos políticos. Apenas 16% dos entrevistados são favoráveis e 10% não opinaram. V. http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/74-dos-brasileiros-sao-contra-doacoes-eleitorais-de-empresas-diz-pesquisa/, último acesso em 22 jul. 2015. V. tb. http://oglobo.globo.com/brasil/datafolha-tres-em-cada-quatro-brasileiros-sao-contra-financiamento-de-campanha-por-empresas-privadas-16672767, último acesso em 22 jul. 2015.

34 Em versões anteriores deste texto, utilizei a expressão “vanguarda iluminista” para descrever este papel. Mas há uma forma mais autocontida de expressar a mesma ideia, que é a de reconhecer que iluminista é a Constituição, cabendo ao intérprete potencializar esta sua faceta. Este insight surgiu do debate com Oscar Vilhena Vieira, a quem sou grato também por isso.

35347 U.S. 483 (1954).

36 (Obergefel v. Hodges, 576 U.S. __, julg. em 26 jun. 2015). A decisão determina que os Estados admitam a celebração de casamento entre pessoas do mesmo sexo, bem como que reconheçam os casamentos de pessoas do mesmo sexo validamente celebrados em outros Estados.

37 S v. Makwanyane and Another (CCT3/94) [1995] ZACC 3. Disponível em http://www.constitutionalcourt.org.za/Archimages/2353.PDF.

38 90 BVerfGe 241 (1994). V. Winfried Brugger, Ban on Or Protection of Hate Speech? Some Observations Based on German and American Law,Tulane European& Civil Law Forum, n. 17, 2002, p.1.

39 Public Committee Against Torture in Israel v. The State of Israel & The General Security Service. HCJ 5100/94 (1999). Disponível em http://elyon1.court.gov.il/files_eng/94/000/051/a09/94051000.a09.pdf.

40 ADPF nº 132 e ADI nº 142, Rel. Min. Carlos Ayres Britto.

41 ADPF nº 54, Rel. Min. Marco Aurélio.

42 Sobre princípios formais e materiais, e critérios para a ponderação entre ambos, v. Robert Alexy, Princípios formais. In: Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno, Aziz Tuffi Saliba e Mônica Sette Lopes (orgs.), Princípios formais e outros aspectos da teoria discursiva, 2014. Na p. 20, escreveu Alexy: “Admitir uma competência do legislador democraticamente legitimado de interferir em um direito fundamental simplesmente porque ele é democraticamente legitimado destruriria a prioridade da constituição sobre a legislação parlamentar ordinária”.

43 Inúmeros autores têm posição diversa. V. por todos, Jurgen Habermas, Between Facts and Norms, 1996, p. 463 e s.

44 O Superior Tribunal de Justiça tem autorizado a modificação do nome que consta do registro civil, após a cirurgia de alteração do sexo. O primeiro recurso sobre o tema foi julgado pela 3a Turma do STJ em 2007 (REsp 678.933, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. em 22.03.2007), que concordou com a mudança desde que o registro de alteração de sexo constasse da certidão civil. Posteriormente, em 2009, o STJ voltou a analisar o assunto e garantiu ao transexual a troca do nome e do gênero em registro, sem que constasse a anotação no documento, mas apenas nos livros cartorários (REsp 1008398, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. em 15.10.2009).

45 A título exemplificativo, cf.: Tribunal Regional Federal da 4ª Região. AC 2001.71.00.026279-9, j. em 14.08.2007. A matéria encontra-se regulamentada pela Portaria nº 457, de agosto de 2008, do Ministério da Saúde.

46 408 U.S. 238 (1972).

47 Para um estudo da questão, v. Corinna Barret Lain, Upside-down judicial review, (January 12, 2012). Disponível no sítio Social Science Research Network – SSRN: http://ssrn.com/abstract=1984060 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.1984060, p. 12 e s.

48 428 U.S. 153 (1976).

49 410 U.S. 113 (1973).

50 Sobre o tema, v. Robert Post e Reva Siegel, Roe Rage: democratic constitutionalism and backlash, Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review, 2007; Yale Law School, Public Law Working Paper No. 131. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=990968.

51 No caso, a Lei n° 10.628/02 introduziu um §1° ao art. 84, do Código de Processo Penal, estabelecendo que o foro por prerrogativa de função seria mantido mesmo apos o fim da função pública, em relação aos atos praticados no exercício da função. Essa disposição significava, na prática, o restabelecimento do entendimento constante da Súmula 394, do Supremo Tribunal Federal, que havia sido cancelada pela Corte em tempo recente (Inq 687-QO, Rel. Min. Sydney Sanches). No entanto, em um caso singular de reação jurisdicional à reação legislativa, o STF declarou a inconstitucionalidade da lei, afirmando que não caberia ao Congresso rever a interpretação do texto constitucional dada pela jurisdição. V. STF, ADI 2.797, DJ 19.12.2006, Rel. Min. Sepúlveda Pertence.

52 O julgamento do RE 233.332/RJ, sob a relatoria do Ministro Ilmar Galvão, em 1999, assentou o entendimento de que “o serviço de iluminação pública não pode ser remunerado mediante taxa”, dada a sua indivisibilidade. O Congresso Nacional, porém, poucos anos depois, editou a EC n° 39/02, acrescentando a contribuição de iluminação pública ao rol das espécies tributárias previstas na Constituição e, na prática, restabelecendo a cobrança desejada pelos Municípios.

53 Em diversos precedentes, o STF declarou a natureza real do IPTU e, com base nisso, a invalidade de leis municipais que pretendiam fixar alíquotas progressivas, estabelecidas segundo dados da capacidade contributiva dos contribuintes. O entendimento da Corte foi superado pela EC n° 29/2000, que admitiu, expressamente, a progressividade.

54 Ao julgar a ADI 2010/DF, relatada pelo Ministro Celso de Mello, o STF declarou inconstitucional a incidência de contribuição previdenciária sobre os proventos dos servidores públicos inativos. Na sequência, Congresso promulgou a EC n° 41/03, que admitiu expressamente a possibilidade de incidência, a ser imposta por lei do ente responsável por cada sistema próprio. O debate foi devolvido ao Tribunal, que resolveu manter a opção política do constituinte derivado, notadamente a partir do argumento de que inexiste direito adquirido a não ser tributado (STF, DJ 18.02.2005, ADI 3.128, Rel. p/ o acórdão Min. Cezar Peluso).

55 No RE 197.917/SP, julgado sob a relatoria do Ministro Maurício Corrêa, o STF declarou a inconstitucionalidade de lei do Município de Mira Estrela/SP, que aumentara o número de vereadores de nove para onze. Segundo o entendimento firmado, não seria suficiente que os Municípios respeitassem as três amplas faixas então indicadas art. 29, IV, da Constituição – tendo em vista tais patamares, o número de vereadores deveria ser rigorosamente proporcional à população de cada Município, a ponto de o STF haver elaborado uma tabela taxativa, a partir de uma operação de regra de três. Em reação parcial à decisão do Tribunal, o Congresso promulgou a EC 58/09, que introduziu 25 novas faixas populacionais, com margens limitadas de decisão autônoma. Assim, embora não se tenha restaurado a discricionariedade ampla antes existente, o constituinte derivado atenuou a proporcionalidade rigorosa que o STF pretendera impor.

56 Em estudo denso e pioneiro, tendo como marco teórico a teoria dos sistemas, de Niklas Luhmann, Celso Fernandes Campilongo, Política, sistema jurídico e decisão judicial, 2001, p. 63, advertiu: “O problema central do acoplamento estrutural entre o sistema político e o sistema jurídico reside no alto risco de que cada um deles deixe de operar com base em seus próprios elementos (o Judiciário com a legalidade e a Política com a agregação de interesses e tomada de decisões coletivas) e passe a atuar com uma lógica diversa da sua e, consequentemente, incompreensível para as auto-referências do sistema. Essa corrupção de códigos resulta num Judiciário que decide com base em critérios exclusivamente políticos (politização da magistratura como a somatória dos três erros aqui referidos: parcialidade, ilegalidade e protagonismo de substituição de papéis) e de uma política judicializada ou que incorpora o ritmo, a lógica e a prática da decisão judiciária em detrimento da decisão política. A tecnocracia pode reduzir a política a um exercício de formalismo judicial”.

57 No julgamento envolvendo a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em embargos de declaração, foi restringido o alcance das denominadas “condicionantes” ali estabelecidas, para explicitar que não vinculavam, prospectivamente, novas demarcações. V. Pet. 3388 – ED, Rel. Min. Luís Roberto Barroso.

58 Nos Estados Unidos, uma das críticas mais contundentes ao julgamento sobre casamento de pessoas do mesmo sexo (Obergefel v. Hodges, 576 U.S. __, julg. em 26 jun. 2015) veio do Justice Antonin Scalia, liderança proeminente do pensamento jurídico conservador, que afirmou em seu voto dissidente: “Permitir que a questão política do casamento entre pessoas do mesmo sexo seja considerada e resolvida por um seleto e aristocrático painel de nove pessoas sem representatividade é violar um princípio ainda mais fundamental que o de não se admitir a tributação sem lei (“no taxation without representation”): o de não se admitir transformação social sem representação”.

59 Eduardo Mendonça, A democracia das massas e a democracia das pessoas: uma reflexão sobre a dificuldade contramajoritária, mimeografado, 2014, p. 19-20

60 Segundo pesquisa do IBOPE, realizada em 2012, o índice de confiança dos brasileiros no STF é de 54 pontos (em uma escala de 0 a 100). O do Congresso é 39 pontos. V. http://www.conjur.com.br/2012-dez-24/populacao-confia-stf-congresso-nacional-ibope.

61 A expressão tem origem na doutrina canadense, ao comentar disposições da Carta Canadense de Direitos que instituem um diálogo entre a Suprema Corte e o Parlamento a propósito de eventuais restrições impostas a direitos fundamentais. Na sua expressão mais radical – e incomum –, a Carta permite até mesmo que o Parlamento, presentes determinadas circunstâncias, reveja certas decisões juidiciais. Sobre o tema, v. Peter Hogg e Allison A. Bushell, The Charter dialogue between courts and legislatures (or perhaps the chart isn’t such a bad thing after all), Osgoode Hall Law Journal 35:75, 1997. Na literatura americana, v. Mark Tushnet, Weak courts, strong rights: judicial review and social welfare rights in comparative constitutional law, 2008, p. 24-33; e Mark C. Miller, The view of the courts from the hill: interactions between Congress and the Federal Judiciary, 2009. Na literatura brasileira, v. Rodrigo Brandão, Supremacia judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição?, 2011, especialmente p. 273 e s.

62 ADI 14, Rel. Min. Celio Borja, j. 13.09.89. No início da vigência da Constituição de 1988, o STF entendeu que o teto remuneratório do art. 37, XI não se aplicava às “vantagens pessoais”, frustrando, na prática, a contenção dos abusos nessa matéria. Foram necessárias duas emendas constitucionais para superar tal entendimento: a de nº 19, de 1998, e a de nº 41, de 2003.

63 RE 166.772, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 16 dez. 1994.

64 ADI 2240, Rel. Min. Eros Grau.

65 ADI 3682, Rel. Min. Gilmar Mendes. Neste caso, o STF fixou o prazo de 18 meses para o Congresso Nacional sanar a omissão relativamente à edição da lei complementar exigida pelo art. 18, § 4º da CF, tida como indispensável para a criação de Municípios por lei estadual. V. tb. ADI

66MI 943/DF, Rel. Min. Gilmar Mendes.

67AP 565, Rel. Minª Carmen Lúcia (caso Ivo Cassol).

68 Foi o meu caso. Em outra decisão, ao apreciar pedido cautelar no MS 32.326, do qual era relator, expus de forma analítica minha posição: “Este imbroglio relativamente à perda de mandato parlamentar, em caso de condenação criminal, deve funcionar como um chamamento ao Legislativo. O sistema constitucional na matéria é muito ruim. Aliás, o Congresso Nacional, atuando como poder constituinte reformador, já discute a aprovação de Proposta de Emenda Constitucional que torna a perda do mandato automática nas hipóteses de crimes contra a Administração e de crimes graves. Até que isso seja feito, é preciso resistir à tentação de produzir este resultado violando a Constituição. O precedente abriria a porta para um tipo de hegemonia judicial que, em breve espaço de tempo, poderia produzir um curto circuito nas instituições”.

69AP 396, Rel. Minª Carmen Lúcia (caso Natan Donadon).

70 MS 32326, Rel. Min. Luís Roberto Barroso.

Capítulo 6

Posfácio - Contramajoritário, representativo e iluminista

O Supremo, seus papéis e seus críticos

I. Introdução

Meu primeiro sentimento ao escrever este posfácio é o de agradecer ao professor Oscar Vilhena Vieira pela iniciativa deste livro. Ao receber meu artigo A razão sem voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria, com o pedido de que o encaminhasse para eventual publicação em uma prestigiosa revista, Oscar teve a ideia de organizar esta coletânea. Na sequência, elaborou uma lista de colaboradores de primeira linha – com uma ou outra sugestão minha –, conseguiu que cada um enviasse previamente um texto e comandou um memorável seminário de todo o dia na Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Na ocasião, pude dialogar e debater com todos os participantes desta obra, num debate franco, aberto e amistoso. Foi um dia de deleite intelectual e de grande proveito pessoal. Guardo na memória e no coração as discussões de alto nível em que a crítica sincera – ora favorável, ora divergente – estreitou laços de fraterna amizade acadêmica. Oscar é uma dessas pessoas diferenciadas, que além de brilhar com luz própria, ilumina o caminho para os outros. Sua integridade, gentileza e humildade dão um toque de classe à seriedade científica e consistência teórica da sua produção acadêmica.

II. Resposta às críticas

Na concepção original dessa obra, eu deveria, após a leitura dos textos e da realização dos debates, apresentar uma resposta às posições divergentes lançadas pelos participantes. Talvez, em algum lugar do futuro, seja o caso de fazê-lo. Por ora, no entanto, pareceu-me próprio deixar aos leitores a possibilidade dialética de avaliar diferentes visões, sem que o autor do texto que originou o debate se arrogue o privilégio de dar a última palavra. De todo modo, embora abdicando da resposta individualizada aos questionamentos, apresento um comentário geral. Para tanto, extraí do conjunto notável de trabalhos que integram essa coletânea três críticas recorrentes à minha visão dos papéis do Supremo Tribunal Federal:

  1. a de que eu forneço uma legitimação móvel e apriorística para qualquer atuação do Tribunal;
  2. o risco democrático de o STF se arvorar em representante da sociedade; e
  3. a impossibilidade de prestação de uma jurisdição constitucional de qualidade, à vista do volume de processos apreciados pelo Tribunal.

São críticas bem embasadas, que merecem ser enfrentadas com seriedade e rigor científico. Não farei uma defesa analítica de fôlego das minhas teses, já longamente expostas no meu artigo. Porém, alguns breves comentários podem animar o debate e trazer novas reflexões aos leitores.

A primeira crítica é a de que meus argumentos transformariam o STF em um alvo móvel, que nunca pode ser atingido pela crítica democrática, já que lhe conferi uma legitimidade apriorística, isto é, “sobredeterminada”. Nessa linha, segue o argumento, se o Tribunal age contramajoritariamente – i.e., contra o Congresso –, ele está legitimado pela defesa, por exemplo, dos direitos fundamentais. Por outro lado, se ele age no vácuo do Congresso, mas com apoio da sociedade, está legitimado por sua função representativa. Por fim, se ele age contra o Congresso e a opinião pública, mas em nome de um avanço civilizatório, está legitimado por seu papel iluminista. Em suma, não erraria nunca. O argumento é engenhoso, mas a defesa da minha posição é simples. Esses papéis – contramajoritário, representativo e iluminista – não são fungíveis. Se o Tribunal desempenhar um deles, quando deveria desempenhar o outro, sua atuação será ilegítima.

Assim, se o Tribunal for contramajoritário quando deveria ter sido deferente, sua linha de conduta não será defensável. Se ele se arvorar em ser representativo quando não haja omissão do Congresso em atender determinada demanda social, sua ingerência será imprópria. Ou se ele agir como vanguarda iluminista fora das situações excepcionais em que deva, por exceção, se imbuir do papel de agente da história, não haverá como validar seu comportamento. Para que não haja dúvida: sem armas nem a chave do cofre, legitimado apenas por sua autoridade moral, se embaralhar seus papéis ou se os exercer atrabiliariamente, o Tribunal viverá o seu ocaso político. Quem quiser se debruçar sobre um case de prestígio mal exercido, de capital político malbaratado, basta olhar o que se passou com as Forças Armadas no Brasil de 1964 a 1985. E quantos anos no sereno e com comportamento exemplar têm sido necessários para a recuperação da própria imagem.

A segunda crítica, presente em diversos dos papers, é referente ao risco democrático. Não deixa de ser curioso que a teoria constitucional tenha superado suas angústias em relação à dificuldade contramajoritária das cortes constitucionais, mas que veja maiores problemas em uma atuação representativa. Aqui cabem duas observações importantes. A primeira é que o Tribunal não pode se investir de uma pretensão de representação metafísica da sociedade, qual um Oráculo de Delfos fora de época, com as respostas certas para todas as aflições. É necessário que estejam presentes condições concretas e socialmente controláveis de demanda social não atendida pelo processo político majoritário para justificar uma intervenção. A segunda é que este papel representativo – a representação argumentativa da sociedade, na terminologia de Alexy – é eventual e necessariamente subsidiário. Por evidente, o órgão de representação popular por excelência é o Legislativo. Portanto, aprimorar o sistema representativo é a prioridade número um. Somente nas suas falhas mais graves é que se justifica a representação supletiva pelo Supremo. Não há troca de papéis. E mais: juízes constitucionais não são os reis filósofos da República de Platão, portadores da virtude e da verdade. Seu único poder é o do convencimento racional e moral. Se falharem nesse propósito, nada os salvará.

A terceira crítica diz respeito à impossibilidade de prestação de uma jurisdição de qualidade, à vista do volume de processos. Esta talvez seja a crítica mais difícil de responder. Até porque, desde que ingressei no Tribunal, venho insistindo, em conversas internas e em manifestações públicas, na necessidade de se fazerem mudanças profundas, revolucionárias, no modo como o Supremo Tribunal Federal atua. A mais radical é a de que o STF não pode admitir mais recursos extraordinários com repercussão geral do que possa julgar em um ano. Tudo o mais, que não tenha sido selecionado, transita em julgado. Também tenho proposto que a seleção dos recursos com repercussão geral seja feita por semestre, por um critério comparativo. Feita a escolha, designa-se a data de julgamento daquele processo. Por exemplo: a repercussão geral nº 1 (RG 1), selecionada em junho de 2016, será julgada na 4a feira, dia 3 de fevereiro de 2017, como primeiro caso da pauta. A RG 2 será julgada na 4a feira, dia 10 de fevereiro de 2017, como primeiro processo da pauta. E assim por diante. No modelo atual, as pautas são feitas às 5as. feiras, com dezenas de processos para serem julgados na 4a e na 5a feira seguintes, o que é uma fórmula péssima. Sem tempo para se prepararem adequadamente, os ministros votam com pouca reflexão ou pedem vista. Também é procedente a crítica de que o volume astronômico transforma o processo decisório do Tribunal, em mais de 90% dos casos, em uma Corte de decisões monocráticas.

Na vida real, o que acontece é que os ministros e o presidente fazem, de modo individual e improvisado, o que no resto do mundo é feito de maneira institucional. Cada ministro, com seu gabinete, seleciona o que vai levar a Plenário, cabendo ao presidente fazer a pauta. De modo que julgamentos efetivos em Plenário são cerca 100 ou 200 processos por ano (julgamentos em lista não contam), o que não destoa quantitativamente de outros países. Mas, de fato, o volume de processos e a pouca antecedência da pauta compromete a qualidade da atuação do Tribunal e motivam os controvertidos pedidos de vista, apelidados, em alguns casos com justa razão, de “perdidos de vista”. De modo que os que professam essa crítica podem se juntar a mim no esforço de transformar o Tribunal, reduzindo a voracidade terceiro-mundista de tudo julgar, na crença equivocada de que competência é poder, mesmo que mal exercida.

III. Minhas ideias centrais

Parece-me bem, antes de encerrar, reiterar de modo sintético algumas das ideias essenciais do meu texto.

1. As três dimensões da democracia contemporânea

A democracia contemporânea apresenta três dimensões. Na sua dimensão de democracia representativa, o elemento essencial é o voto e os protagonistas são o Congresso Nacional e o Presidente da República. Há problemas diversos na dimensão representativa da democracia brasileira, sobretudo no tocante à eleição para a Câmara dos Deputados. Nela, um sistema eleitoral proporcional e de lista aberta cria um modelo em que mais de 90% dos deputados não são eleitos com votação própria, mas mediante transferência de voto partidário. Nessa fórmula, o eleitor não sabe exatamente quem o elegeu e o parlamentar não sabe exatamente por quem foi eleito. Como consequência, eleitores não têm de quem cobrar e os eleitos não sabem a quem prestar contas. Não há legitimidade democrática que possa ser adequadamente satisfeita por uma equação como essa.

A segunda dimensão é a da democracia constitucional. Para além do componente puramente representativo/majoritário, a democracia é feita também, e sobretudo, do respeito aos direitos fundamentais. São eles pré-condições para que as pessoas sejam livres e iguais, e possam participar como parceiros em um projeto de autogoverno coletivo. Tivemos muitos avanços nessa área: liberdade de expressão, de associação e de reunião assinalam a paisagem institucional brasileira. Ao lado delas, foram agregadas conquistas importantes em temas de direitos sociais, como educação e saúde, e avanços nas liberdades existenciais, com o reforço na proteção dos direitos de mulheres, negros e homossexuais. O protagonista dessa dimensão da democracia é o Judiciário e, particularmente, o Supremo Tribunal Federal.

A terceira dimensão da democracia contemporânea identifica a democracia deliberativa, cujo componente essencial é a apresentação de razões, tendo por protagonista a sociedade civil. A democracia já não se limita ao momento do voto periódico, mas é feita de um debate público contínuo que deve acompanhar as decisões políticas. Participam desse debate todas as instâncias da sociedade, o que inclui o movimento social, imprensa, universidades, sindicatos, associações, cidadãos comuns, autoridades etc. A democracia deliberativa significa a troca de argumentos, o oferecimento de razões e a justificação das decisões que afetem a coletividade. A motivação, a argumentação e o oferecimento de razões suficientes e adequadas constituem, também, matéria prima da atuação judicial e fonte de legitimação de suas decisões.

2. Os três papéis do Supremo Tribunal Federal

Supremas cortes e tribunais constitucionais em todo o mundo desempenham, ao menos potencialmente, três grandes papéis: contramajoritário, representativo e iluminista. Também assim o Supremo Tribunal Federal. O papel contramajoritário identifica, como é de conhecimento geral, o poder de as cortes supremas invalidarem leis e atos normativos, emanados tanto do Legislativo quanto do Executivo. A possibilidade de juízes não eleitos sobreporem a sua interpretação da Constituição à de agentes públicos eleitos foi apelidada por Alexander Bickel como “dificuldade contramajoritária”. Como assinalado, este é um dos temas mais estudados na teoria constitucional. A despeito da subsistência de visões divergentes, entende-se que este é um papel legítimo dos tribunais, notadamente quando atuam, em nome da Constituição, para protegerem os direitos fundamentais e as regras do jogo democrático, mesmo contra a vontade das maiorias.

Em segundo lugar, cortes constitucionais em geral, e o Supremo Tribunal Federal em particular, desempenham, em diversas situações, um papel representativo. Isso ocorre quando atuam (i) para atender demandas sociais que não foram satisfeitas a tempo e a hora pelo Poder Legislativo, (ii) bem como para integrar a ordem jurídica em situações de omissão inconstitucional do legislador. No texto, citei os exemplos da proibição do nepotismo, da imposição da fidelidade partidária e da regulamentação da greve no serviço público. Numa situação um tanto intermediária em relação ao papel contramajoritário e representativo posicionam-se as decisões que interferem com a execução de políticas públicas. Nessa linha, há julgados envolvendo o tema da concretização de direitos sociais, nas quais se determinam providências como fornecimento de medicamentos, melhoria das condições de hospitais e escolas, realização de obras de saneamento e reformas de presídios, entre outras.

Por fim, em situações excepcionais, com grande autocontenção e parcimônia, cortes constitucionais devem desempenhar um papel iluminista. Vale dizer: devem promover, em nome de valores racionais, certos avanços civilizatórios e empurrar a história. São decisões que não são propriamente contramajoritárias, por não envolverem a invalidação de uma lei específica; nem tampouco são representativas, por não expressarem necessariamente o sentimento da maioria da população. Ainda assim, são necessárias para a proteção de direitos fundamentais e para a superação de discriminações e preconceitos. Conforme registrado no texto, situam-se nessa categoria a decisão da Suprema Corte americana em Brown v. Board of Education, deslegitimando a discriminação racial nas escolas públicas, e a da Corte Constitucional da África do Sul proibindo a pena de morte. No Brasil, foi este o caso do julgado do Supremo Tribunal Federal que equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais, abrindo caminho para o casamento de pessoas do mesmo sexo.

Gostaria de enfatizar um último ponto antes de enunciar minha conclusão. Desde que cheguei ao Tribunal, em junho de 2013, tenho procurado, em certos casos, estabelecer um diálogo institucional com o Congresso. Embora, do ponto de vista formal, caiba à Suprema Corte a última palavra sobre a interpretação da Constituição, tal competência não deve significar supremacia nem muito menos arrogância judicial. Em mais de um caso em que havia omissão do legislador ou vácuo decorrente da declaração de inconstitucionalidade de alguma lei, propus uma solução que deveria ser aplicada a partir de 180 dias ou um ano, para que o Congresso pudesse dispor sobre a matéria durante este tempo, se assim desejasse. A ideia ainda não se tornou dominante, mas acho que tem uma chance razoável de ser adotada em algumas situações.

Conclusão

O Brasil enfrenta muitos problemas que vêm de longe. Conseguimos avançar muito, mas ainda estamos atrasados e com pressa. Por essa razão, é preciso ir buscar soluções e respostas originais, fora da caixa. O debate de ideias deve ser universal, mas as soluções devem ser particulares. Nem tudo o que eu penso e disse pode ser universalizado. Cada povo carrega a sua própria história, as suas circunstâncias e os seus desafios. Porém, na frase feliz de Albert Einstein, “não podemos resolver nossos problemas pensando do mesmo modo como pensávamos quando os criamos”.

Brasília, 7 de dezembro de 2015.

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